Opinião

Ausência de representatividade da Defensoria no CNMP, no CNJ e nos tribunais

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

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19 de maio de 2024, 6h09

A Lei 10.448/02 instituiu que o Dia Nacional da Defensoria Pública é comemorado, anualmente, no dia 19 de maio.

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Tal previsão legal revela-se justa e a mencionada celebração tem razão de ser, já que referida instituição do sistema de Justiça (a mais jovem dentre as previstas no Capítulo IV da Constituição Federal de 1988) foi a única incumbida, expressamente pelo legislador constitucional, de promover os direitos humanos [1] (encontrando-se legitimada, inclusive, a acionar os sistema internacionais de proteção [2]), munus extremamente relevante, ainda mais se considerado que o Brasil, no ano de 2022, foi o quarto país do mundo em que houve o maior número de homicídios praticados contra ativistas da sociedade civil [3].

Constata-se, ainda, que o Poder Constituinte originário adotou o modelo público de assistência jurídica (salaried staff model) e atribuiu à Defensoria Pública a missão de prestar assistência jurídica, integral e gratuita, a todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros (residentes em território nacional) que se encontrem em situação de vulnerabilidade (decorrente de hipossuficiência ou de hipervulnerabilidade, nos termos das 100 Regras de Brasília [4] e de julgados do Superior Tribunal de Justiça [5]).

Conforme sustentamos em sede doutrinária [6], o cotejo entre a Lei Orgânica da Defensoria Pública [7] e a Constituição [8] autoriza concluir, sem margem de dúvidas, que a Defensoria Pública foi a instituição incumbida pelo legislador de garantir a essência do Estado democrático de Direito, viabilizando a efetiva participação dos cidadãos na vida jurídica estatal (exigindo o respeito a direitos individuais e coletivos reconhecidos na Carta Magna) e propiciando, assim, o alcance da tão almejada igualdade material entre os cidadãos.

Importância da Defensoria Pública

Registre-se que o direito de acesso à Justiça e de representação perante os órgãos competentes encontra-se inserido no rol de direitos humanos, sob pena de não haver que se falar na observância do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesse diapasão, André de Carvalho Ramos [9] prescreve que:

“Uma sociedade pautada na defesa de direitos (sociedade inclusiva) tem várias consequências. A primeira é o reconhecimento de que o primeiro direito de todo indivíduo é o direito a ter direitos. Arendt e, no Brasil, Lafer sustentam que o primeiro direito humano, do qual derivam todos os demais, é o direito a ter direitos. (…)

No Brasil, o STF adotou essa linha ao decidir que “direito a ter direitos: uma prerrogativa básica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades” (ADI 2.903, rel. Min. Celso de Mello, Plenário, DJe de 19-9-2008).”

Neste ponto, confira-se trecho de voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes, nos autos do RE nº 1.240.999/SP [10]:

“A importância da Defensoria Pública para a consolidação da democracia e a realização da justiça social é inegável. (…)

Dessa forma, sempre balizados por premissas constitucionais básicas, como a dignidade da pessoa humana, a busca da cidadania, redução de desigualdades, o acesso universal à Justiça, entre tantos outros, sedimentaram-se objetivos institucionais que foram positivados, quase vinte anos depois, com a promulgação da ora questionada Lei Complementar 132, de 7.10.2009.”

Da leitura atenta dos artigos 3º-A, I, II e III, da LC 80/94 e do artigo 1º, I e II, da CF/88, extrai-se que a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a promoção da igualdade material foram definidas pelo legislador constituinte como norte a ser observado em todas as ações desempenhadas pelos Poderes da República, vetores que também constituem a base de atuação da Defensoria Pública, instituição aberta à sociedade civil (oxigenada pela atuação de membro não integrante da carreira no Conselho Superior [11]), e que, por meio da rotina diária de atendimentos, promove a educação em direitos e conhece as demandas da população vulnerável (estrato plural de cidadãos desassistido de políticas públicas), fato que lhe permite exercer a função de ombudsman e priorizar a resolução extrajudicial de litígios [12].

Spacca

Nesse sentido, o relator ministro Gilmar Mendes proferiu voto nos autos da ADI nº 4.636/DF [13], assentando que: “(…) a Defensoria Pública é verdadeiro ombudsman, que deve zelar pela concretização do estado democrático de direito, promoção dos direitos humanos e defesa dos necessitados, visto tal conceito da forma mais ampla possível, tudo com o objetivo de dissipar, tanto quanto possível, as desigualdades do Brasil, hoje quase perenes”.

Não há, portanto, exagero em afirmar, conforme já o fizemos  [14], que a Defensoria Pública constitui o “SUS do Sistema de Justiça” e que os defensores públicos, primordialmente em um país como o Brasil — marcado pela desigualdade de oportunidades e pela necessidade de constante melhoria na prestação de serviços públicos essenciais (relacionados à segurança, saúde, educação, saneamento básico etc.) — são os agentes do sistema de Justiça incumbidos de primeiro fiscalizar a execução das políticas públicas e de adotar, em muitas situações, posturas contramajoritárias (que vão de encontro ao anseio da maioria de ocasião), justamente com o escopo de tutelar os direitos individuais e coletivos dos cidadãos vulneráveis [15].

Parafraseando o compositor Humberto Gessinger [16], podemos afirmar que, em nosso país, somos “todos iguais, mas uns mais iguais que os outros”.

Vácuo

Feitas essas considerações, verifica-se que, passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição Cidadã, a Defensoria Pública ainda não está presente em todas as comarcas e subseções judiciárias do país [17], fato que:

(1) contaria o artigo 98, §1º, do ADCT (dispositivo inserido pela EC nº 80/2014) e as Resoluções 2.887/16 e 2.928/18, editadas pela OEA (Organização dos Estados Americanos), e que prescrevem aos países membros o compromisso de fortalecer as defensorias como meio para defesa dos direitos humanos),

(2) incrementa o volume de demandas reprimidas em nosso país,

(3) materializa, na população vulnerável, um sentimento de não pertencimento ao Estado de Direito previsto abstratamente na Constituição da República

e (4) viola o princípio da proibição da proteção deficiente.

Sobre o tema, destaco o seguinte trecho do voto proferido pelo ministro Herman Benjamin, nos autos do AgInt no REsp 1.573.481/PE [18], precedente em que o relator ressalta o importante papel desempenhado pela Defensoria Pública como instrumento do regime democrático:

“A rigor, mormente em países de grande desigualdade social, em que a largas parcelas da população — aos pobres sobretudo — nega-se acesso efetivo ao Judiciário, como ocorre infelizmente no Brasil, seria impróprio falar em verdadeiro Estado de Direito sem a existência de uma Defensoria Pública nacionalmente organizada, conhecida de todos e por todos respeitada, capaz de atender aos necessitados da maneira mais profissional e eficaz possível”.

Ausência de representatividade

Constata-se, ainda, que, além da ausência física da Defensoria Pública em todas as unidades jurisdicionais, a instituição defensorial, diferentemente do que ocorre com a advocacia e o Ministério Público, não tem representatividade nos Conselhos Nacionais do Ministério Público [19] e de Justiça [20], nos Tribunais de Justiça [21], nos Tribunais Regionais Federais e no Superior Tribunal de Justiça [22], situação que contraria o entendimento contemporâneo da Suprema Corte acerca da simetria existente entre a Defensoria e o Ministério Público e configura um vácuo legislativo, em tese, inconstitucional em órgãos de sobreposição, denotando que a instituição incumbida de prover justiça aos mais necessitados é justamente a alijada da oportunidade de contribuir com a pluralização do debate nesses importantes espaços de decisão.

Neste ponto, destaco trecho do voto proferido pelo relator ministro Edson Fachin, nos autos da ADI nº 6.852/DF [23], que retrata o atual enfoque conferido pelo STF à posição constitucional da Defensoria Pública:

“Na evolução constitucional e jurisprudencial do papel da Defensoria Pública, o  advento da Emenda Constitucional nº 80, de 04 de junho de 2014, representou marco incontestável acerca de sua natureza como instituição voltada à defesa da coletividade, ao alçá-la expressamente ao patamar de expressão e instrumento do regime democrático e lhe atribuir o dever de proteção dos direitos humanos e a tutela de direitos coletivos, abandonando o enfoque anterior, restrito à mera assistência judiciária gratuita. (…)

Nesse sentido, assim como ocorre com o Ministério Público, igualmente legitimado para a proteção de grupos vulneráveis, os poderes previstos à Defensoria Pública, seja em sede constitucional – como a capacidade de se autogovernar – ou em âmbito infraconstitucional – como a prerrogativa questionada de requisição – foram atribuídos como instrumentos para a garantia do cumprimento de suas funções institucionais.”

No mesmo diapasão, confira-se trecho de voto proferido pelo ministro Alexandre de Moraes, nos autos da retrocitada ADI nº 6.852/DF:

“Presente a atual moldura institucional e constitucional da Defensoria, a sua prestação de serviços pode ocorrer em todos os ramos do direito, com particular ênfase na assistência dos hipossuficientes, econômica, social e juridicamente, na proteção da criança e do adolescente, dos direitos de família e do consumidor, no acesso à saúde e moradia, no combate à violência doméstica e na defesa criminal. (…)

Incorporou-se, em nosso ordenamento jurídico, portanto, também em relação à Defensoria Pública, a pacífica doutrina constitucional norte-americana sobre a teoria dos poderes implícitos – inherent powers–, segundo a qual, no exercício de sua missão constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções necessárias, ainda que implícitas, desde que não expressamente limitadas (Myers v. Estados Unidos – US 272 – 52, 118), consagrando-se, dessa forma – e entre nós aplicável também à Defensoria Pública –, o reconhecimento de competências genéricas implícitas que permitam o exercício de sua missão constitucional, apenas sujeitas às proibições e limites estruturais da Constituição Federal.”

Colaciono, ainda, trecho de voto em que a relatora ministra Rosa Weber, nos autos da ADI 5.296/DF [24], retrata a simetria existente entre a Defensoria Pública e o Ministério Público:

“Não bastasse, a particular arquitetura institucional introduzida pela Emenda  Constitucional nº 74/2013 encontra respaldo nas melhores práticas recomendadas pela comunidade jurídica internacional. (…)

Densificado, assim, deontológica e axiologicamente, pelo Poder Constituinte Derivado o paralelismo entre as instituições essenciais à função jurisdicional do Estado que atuam na defesa da sociedade, sem desbordar do espírito do Constituinte de 1988″.

Categorias apartadas

Convém, ainda, refutar eventual argumento de que o acesso de membros da Defensoria Pública à composição dos referidos conselhos e tribunais poderia se dar por meio das seccionais e Conselho Federal da OAB, já que, conforme definido pelo STF, no Tema 1.074, “É inconstitucional a exigência de inscrição do Defensor Público nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil”.

Naquela oportunidade, o ministro Gilmar Mendes, nos autos do RE nº 1.240.999/SP [25], acompanhou o voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, e definiu que “(…) a alteração constitucional de 2014, que modificou a disposição do Capítulo IV da Constituição Federal, eliminou residuais dúvidas em relação à natureza da atividade dos membros da Defensoria Pública. Tais membros definitivamente não se confundem com advogados privados ou públicos. A topografia constitucional atual não deixa margem a discussão. São funções essenciais à Justiça, em categorias apartadas, mas complementares: Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública”.

Conforme apontamos em artigo publicado no ano de 2022 [26], a Proposta de Emenda Constitucional nº 488/2010, que propunha o acréscimo dos membros da Defensoria Pública no artigo 94, caput, da CF/88 foi apensada à PEC nº128/2007, cujo voto do relator na CCJ delegou o exame da matéria a comissão especial que deveria ser criada para tratar do tema [27]. Ocorre que, até o presente momento, não se tem notícia da instalação da referida comissão.

Importante, portanto, que comemoremos, de forma efusiva, o dia 19 de maio, mas que essa data represente momento para refletir sobre a necessidade de que se assegure à Defensoria Pública meios para que, de acordo com sua autoadministração, possa se desincumbir do seu mister constitucional e se fazer presente, de per si, em todas as esferas, tal como assegurado às demais instituições do sistema de Justiça.

 


[1] Art. 134, caput, da CF/88

[2] Art. 3º-A, VI, da CF/88

[3] Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-03/brasil-e-o-4o-pais-que-mais-mata-ativistas-de-direitos-humanos> Acesso em 28 abr. 2024.

[4] Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf Acesso em 28 abr. 2024

[5] AgInt no AREsp n. 1.220.572/SP, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe de 26/3/2019; EREsp n. 1.192.577/RS, relatora Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, DJe de 13/11/2015.

[6] REIS, Rodrigo Casimiro. (Re)pensando Custos Vulnerabilis e Defensoria Pública: por uma defesa emancipatória dos vulneráveis. Maurilio Casas Maia (Org.). São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021. P. 200.

[7] Art. 3º-A, I, II e III, da LC 80/94

[8] Art. 1º, II e III, da CF/88

[9] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2020. P. 33.

[10]  Rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 17/12/2021.

[11] Art. 101, caput, e 105-B, caput, ambos da LC 80/94

[12] Art. 4º, II, da LC 80/94

[13] Tribunal Pleno, DJe 10/02/2022

[14] REIS, Rodrigo Casimiro. Defensoria Pública e Covid-19 no cenário intra e pós-pandêmico/organizadores Alberto Carvalho Amaral, Cleber Francisco Lopes e Maurilio Casas Maia. 1. Ed. Belo Horizonte: D´Plácido, 2021. P. 153/174.

[15]  Registre-se que, no ano de 2023, 60,1% da população brasileira recebeu 1 salário mínimo por mês. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/12/06/ibge-60-pontos-percentuais-dos-brasileiros-vivem-com-at-1-salrio-mnimo-por-ms.ghtml> Acesso em 28 abr. 2024.

[16] GESSINGER, Humberto. Ninguém=Ninguém. IN: HAWAII, Engenheiros do. Gessinger, Licks & Maltz. Rio de Janeiro: RCA Records, 1992.

[17] Disponível em: <https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/pesquisa-nacional-2020/analise-nacional/> Acesso em 28 abr. 2024.

[18] Segunda Turma, DJe 27/05/2016

[19] Art. 130-A da CF/88

[20] Art. 103-B da CF/88

[21] Art. 94, caput, da CF/88

[22] Art. 104, parágrafo único, II, da CF/88

[23] Tribunal Pleno, DJe 29/03/2022

[24] Tribunal Pleno, DJe 26/11/2020

[25] RE n. 1.240.999/SP, rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 17/12/2021.

[26] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-fev-19/reis-defensoria-direito-constitucional-compor-tribunais/> Acesso em 28 abr. 2024.

[27] Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=359981> Acesso em 28 abr. 2024

Autores

  • é defensor público do estado do Maranhão, chefe de gabinete de ministra do Superior Tribunal de Justiça, mestrando em Direito Constitucional (IDP), especialista em Direito Constitucional (Unisul), professor do LLM em Processo nas Cortes Superiores na Faculdade Mackenzie Brasília e ex-Assessor da Presidência do STJ e da Corregedoria Nacional de Justiça.

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