Opinião

Agências reguladoras e o verificador 'independente'

Autores

  • Luciana Luso de Carvalho

    é conselheira-presidente da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs) mestre em Direito e especialista em Regulação de Serviços Públicos ambos pela UFRGS.

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  • Carlos Roberto de Oliveira

    é diretor da agência reguladora Ares-PCJ (SP) doutor e mestre em Direito pela USP e pós-doutor em Direito Administrativo pela Unesp.

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19 de maio de 2024, 9h25

As agências reguladoras nacionais e infranacionais lutam, desde a instalação das primeiras entidades, em 1997, pela observância à sua conformação jurídica, em especial à efetiva autonomia administrativa, financeira e funcional, indispensável ao exercício da função de Estado, que abrange múltiplas e complexas atribuições nos diversos setores econômicos regulados.

A alteração da forma de atuação do Estado na economia após a Constituição de 1988, com desestatizações e a ampliação de concessões de serviços públicos, acarretou a contrapartida institucional de criação de entidades reguladoras com atribuições estatais para mitigar ingerências políticas e, com isso, promover um ambiente de estabilidade para a atração de investimentos internacionais em contratos de longa duração [1] e a qualificação de serviços públicos.

Assim, às agências foram atribuídas competências para a normatização setorial, controle das atividades reguladas, promoção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, decisão de conflitos e o atendimento aos usuários, além de atribuições relacionadas à outorga no caso das agências federais.

O regime jurídico previsto pelo legislador – autarquias especiais –, que assegurou mandatos para os seus dirigentes, foi o principal instrumento adotado para reduzir influências políticas nos setores regulados mediante a garantia da estabilidade por período determinado, somente extinta em situações específicas previstas em lei.

Esse, em brevíssima síntese, era o quadro institucional e a finalidade que orientou a criação de agências reguladoras no país, causando estranhamento em parcela da comunidade acadêmica e da sociedade, uma vez que constituíram novo modelo institucional inserido na atuação indireta do Estado na economia, mesmo a função reguladora não significando novidade no ordenamento jurídico brasileiro.

Por isso, desde a instituição do modelo regulatório nacional, as agências tiveram forte papel esclarecedor de suas funções, com especial destaque para as imprescindíveis autonomia e tecnicidade frente aos agentes regulados, poderes concedentes, ministérios e secretarias e às instituições de controle externo.

E, passadas quase três décadas da instalação das primeiras agências no país, essas questões permanecem muito atuais, ainda que com algumas nuances distintas do período inicial.

Em relação à autonomia, tem-se, por exemplo, o contingenciamento de recursos próprios, a impossibilidade de ampliação do quadro de servidores, que segue sujeita à decisão do chefe do Poder Executivo, o aporte de superávit em contas centralizadoras do governo, decisões administrativas de gestão sujeitas à autorização governamental e a política remuneratória dos reguladores incompatível com a dimensão e a relevância social e econômica dos setores regulados.

As restrições de autonomia e atribuições são graves, considerando que as atividades reguladas perpassam a vida dos cidadãos, em suas necessidades mais básicas, como o saneamento básico, energia elétrica, transporte e vigilância sanitária, mas também serviços públicos e atividades econômicas stricto sensu, que constituem infraestrutura para a cadeia produtiva, como rodovias, telecomunicações, petróleo e gás.

Diretrizes e avanços

A regulação insuficiente, por redução de recursos humanos, financeiros e tecnológicos constitui prejuízo aos usuários e consumidores, aos agentes regulados, aos poderes concedentes e à sociedade como um todo.

Nessa linha de entendimento são emitidas diretrizes pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) [2], segundo a qual a adequada política de gestão e governança pressupõe elaborar uma política consistente que contemple o papel e as funções das agências reguladoras, a fim de aumentar a confiança de que as decisões regulatórias são tomadas de forma objetiva, imparcial e consistente, sem conflito de interesses, parcialidade ou influência indevida.

Spacca

Nesse cenário, a Lei 13.848/2019, que institui a norma geral das agências nacionais, resultou em avanços importantes em diversos aspectos, objetivando o fortalecimento das agências e da regulação, a autonomia administrativa, independência decisória, processo regulatório, governança e transparência. Além desse alcance, o modelo da Lei 13.848/2019 constitui inspiração para as agências infranacionais, muitas das quais se encontram em processo de estruturação.

Ganha relevo, na perspectiva de reforço da regulação setorial, a Norma de Referência 04/2024, emitida pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que estabelece padrões de governança e garantias de autonomia e independência decisória, espelhados na Lei 13.848/2019.

Verificação e o risco de distorções

Contudo, há um fenômeno que não é recente, mas tem se intensificado à medida que são ampliados os projetos de concessões de serviços públicos ou de atividades estatais, que é o exercício de atribuições regulatórias típicas por consultorias privadas. São os denominados verificadores “independentes”.

Essas consultorias têm atuado nos contratos de concessão de serviços públicos e de bens públicos em que há remuneração variável da concessionária, sujeita à aferição de desempenho. É o caso das concessões comuns ou concessões administrativas (PPPs) de rodovias, parques nacionais, iluminação pública e presídios, dentre outros.

A contratação dessas consultorias privadas é realizada, na maioria dos casos e com expressa previsão contratual, pela concessionária que terá sua atividade avaliada para o recebimento dessa parcela de remuneração. Trata-se, como se percebe, de atividade de controle da concessionária, que contrata a empresa privada que, por sua vez, atestará o desempenho de sua contratante para o recebimento da remuneração variável.

Diante dessa modelagem, distorções que afetem a imparcialidade, isenção, neutralidade ou independência das empresas contratadas podem surgir, já que o processo de escolha e a forma de remuneração desses contratos tendem a ser objeto questionamento.

Não se diga, também, que se trata de mera atividade auxiliar ou acessória. A verificação do desempenho do contratado é extremamente relevante para o poder concedente e para os usuários, que têm com essa avaliação um outro instrumento de indução à qualidade, além da fiscalização tradicional e da aplicação de sanções por inadimplemento contratual. E, claro, a atividade é de grande relevância para a concessionária, que está sujeita a um segundo nível de controle do cumprimento contratual, que se reflete diretamente em sua remuneração e no equilíbrio econômico-financeiro do projeto concessionário.

Além do monitoramento do desempenho da concessionária e cálculo da remuneração variável, essas consultorias privadas são contratadas para outras atribuições regulatórias: verificação do descumprimento contratual e recomendação de penalidades, cálculo de indenização de bens reversíveis e certificação da manutenção preventiva e corretiva de ativos, perfazendo evidente processo regulatório estatal, e destoando do modelo de regulação de Estado que se almeja.

Possível conflito de interesses

A ação de acompanhamento exclusivamente privada de contratos pode gerar incontornável conflito de interesses, maculando o arranjo contratual e ofendendo os princípios da legalidade, impessoalidade e transparência. A adoção de lista de possíveis verificadores para escolha do poder concedente ou pela agência reguladora é inovação sem previsão legal, da mesma forma que a ausência de regramento para essas contratações gera distorções em relação ao exercício de atribuições de Estado.

Tais medidas não alteram o regime privado do contrato firmado entre o verificador e a concessionária, constituindo mero elenco de possíveis empresas verificadoras mais capacitadas para a atividade de controle. Aliás, a seleção de possíveis verificadores pela agência reguladora ou pelo poder concedente, além de não neutralizar o conflito de interesses, pode inclusive atenuar a responsabilidade da concessionária ou do verificador por eventual atuação danosa da consultoria.

Com efeito, a relação entre verificador e a concessionária é privada, a teor do que estabelece o artigo 25, § 2º, da Lei 8.987/95, de modo que, ao final, em última análise, os editais com essa previsão estão atribuindo funções administrativas, de natureza e finalidade pública, ao parceiro privado da concessionária.

Portanto, a questão central que se apresenta é a existência de contrato privado com a concessionária, em que o verificador é terceiro em face da agência e do poder concedente e exerce atividade de controle relacionada diretamente à sua remuneração. Note-se que o artigo 6º, § 1º, da Lei 11.079/2004, que prevê expressamente a remuneração variável vinculada ao desempenho, não autoriza a interpretação de que tal aferição é atividade acessória ou secundária.

Na verdade, o dispositivo expressa uma das formas de controle e monitoramento do serviço adequado, que constitui função de Estado e que não pode ser capitaneada pela concessionária interessada no parecer que lhe assegure direitos contratuais, como o cumprimento integral das metas e padrões de desempenho contratuais, que condicionam a sua remuneração.

A esse respeito, Juarez Freitas assevera que “numa espécie de superação do esquema clássico de Poderes, a regulação assume atribuições indelegáveis, não no campo da formulação de políticas públicas, mas ao implementá-las com imparcialidade” [3].

Aspecto que também merece realce é a imputação do custo desses contratos na tarifa, resultando em duplicidade de custos gerenciais a serem suportados pelo usuário dos serviços, além do custeio da própria agência reguladora. Logo, há um duplo pagamento suportado pelo usuário para o que deveria ser atribuição exercida pelas agências reguladoras, o que também é contrário à eficiência e à modicidade tarifária dos serviços públicos, com expressa vedação do artigo 29 da Lei 11.445/2007, que estabelece:

“Art. 29. Os serviços públicos de saneamento básico terão a sustentabilidade econômico-financeira assegurada por meio de remuneração pela cobrança dos serviços, e, quando necessário, por outras formas adicionais, como subsídios ou subvenções, vedada a cobrança em duplicidade de custos administrativos ou gerenciais a serem pagos pelo usuário, nos seguintes serviços: […]” (grifos do articulistas).

Enfraquecimento das agências reguladoras

Por essas razões, não procede o argumento de que é necessária a previsão de contratação de verificadores em face de deficiências estruturais das agências, pois muitas são superavitárias e têm seus recursos contingenciados, em vez da aplicação na ampliação e na qualificação da função estatal que exercem.

Esse argumento não é explicativo da suposta causa da transferência de parcela da atribuição estatal de controle para a iniciativa privada, mas sim legitimador da redução do papel indispensável das agências em contratos de concessão e atrativos para as consultorias, muitas das quais de abrangência internacional.

Por isso, a atuação do verificador ou outra qualquer denominação que se dê às consultorias privadas contratadas pelas concessionárias, além de transferir indevidamente, contra legem, para o agente privado o exercício de atribuições regulatórias, enfraquece as agências reguladoras, na contramão do que significou a aprovação da Lei 13.848/2019 para as agências federais e dos movimentos de fortalecimento das agências infranacionais, em especial com os novos desafios do saneamento básico previstos na Lei nº 14.026/2020.

O movimento de verificação ou certificação independentes, como tem sido apresentado nos contratos é, inclusive, contrário às orientações da OCDE, que prima pela regulação de Estado e independente para um ambiente adequado de negócios [4].

Entendimentos do TCU

Nesse sentido, em que pesem as ressalvas ao exercício de competências regulatórias pelos órgãos de controle, assistiu razão ao TCU, no que tange ao mérito da questão, ao entender que não há isenção ou imparcialidade do verificador contratado pela concessionária, como assentado nos Acórdãos nº 4.036/20, 4.037/20 e 498/21. O Acórdão nº 4.037/20, relatado pelo ministro Benjamin Zymler, afirmou o seguinte em relação ao verificador, denominado no edital examinado como “relator independente”:

“Acredito não ser possível ao poder concedente exigir do relator independente a imparcialidade que se almeja. Isso porque, nos termos do art. 25, § 2º, da Lei 8.987/1995, por se tratar de contrato firmado com a concessionária, não há qualquer relação jurídica entre o poder público e o avaliador escolhido e, desse modo, inexistem direitos e obrigações recíprocos” [5].

No entanto, apesar de ter considerado contrato específico regulado pela ANTT, o Acórdão nº 1.766/2021 constituiu retrocesso ao entendimento acima, ao aceitar, mediante algumas condicionantes, a figura da consultoria contratada pela concessionária.

As condições estabelecidas visaram a expressamente reduzir conflitos de interesse entre a concessionária e sua contratada – e não a eliminá-los –, incluindo a determinação para supressão do termo “independente”, o que bem demonstra que não há a pretendida imparcialidade. Além disso, determinou o TCU a previsão de responsabilidade solidária do órgão técnico do poder concedente por eventuais irregularidades do verificador [6].

Esse entendimento é preocupante e contribui para a legitimação do exercício de atribuições regulatórias por empresas privadas contratadas pelos agentes regulados, e para a sinalização de que eventuais fragilidades das agências podem ser contornadas pela transferência de competências públicas para a esfera privada de contratos entre consultorias e concessionárias, em vez da reestruturação e previsão legal de medidas e institutos para o fortalecimento da regulação.

Conclusão

Saliente-se que a possibilidade de atuação de consultorias privadas em apoio às agências para atividades acessórias ou complementares está assegurada em lei e é adotada por agências nacionais e infranacionais de longa data. O problema que ora se apresenta diz respeito ao exercício de atribuição de controle, de natureza estatal, de modo parcial em face do contratante dessa atividade, que é o interessado em parecer ou constatação favorável da consultoria em contratos privados de grande expressão econômica.

Portanto, para preservar a atribuição regulatória de controle, promover o equilíbrio econômico-financeiro da concessão e a modicidade tarifária, é indispensável que a atividade de controle seja exercida diretamente ou mediante contrato de apoio firmado pela agência reguladora ou pelo poder concedente, caso o serviço ou atividade não sejam regulados por agência.

O que não é adequado é a mera transferência da atribuição estatal para agente privado, com inegáveis conflitos de interesses e a potencial captura do verificador pelo regulado, que não são sanados por quaisquer condicionantes.

E isso de forma alguma traduz um “feudo” regulatório, como já afirmado por defensores desse modelo, mas sim o respeito ao regime jurídico das agências definido em Lei e às atribuições de natureza pública que não podem ser exercidas pelos agentes privados.

Assim, é necessário que os editais de concessão facultem à agência reguladora (e não à concessionária) a contratação dessas empresas, inclusive com previsão, se necessário, de vinculação de parte do valor de outorga para esse fim.

Dessa forma, de um lado, estariam suprimidos os efeitos danosos que a contratação do verificador “independente” pela concessionária, em especial o conflito de interesses inerente a esse contrato privado, e, de outro, assegurado mais um passo no caminho do necessário fortalecimento das agências reguladoras e da regulação.

 


[1] MENDES, Conrado Hübner. A reforma do Estado e as agências reguladoras: estabelecendo os parâmetros de discussão. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 108-109.

[2] OCDE (2022), Reforma Regulatória no Brasil, OECD Publishing, Paris. DOI: http://doi.org/10.1787/f7455d72-pt

[3] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5ª. ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 33.

[4] Nesse sentido, OLIVEIRA, Carlos Roberto de. Verificador independente em contratos de saneamento básico. (2024). Revista Digital De Direito Administrativo, 11(1), 290-306. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2319-0558.v11i1p290-306

[5] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n.º 4.037/20. Plenário. Relator: Min. Benjamin Zymler Brasília, 8.12.2020.

[6] [6] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n.º 1.766/2021. Plenário. Relator: Min. Walton Alencar Rodrigues. Brasília,  28.07.2021.

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