Ação rescisória e decisões conflitantes: e a coerência e integralidade do Direito?
19 de maio de 2024, 11h28
Uma ação rescisória está para ser julgada pela Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), visando desconstituir acórdão a partir da ementa a seguir:
“Apelação. Ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem. Sentença de improcedência. Autora que pretende o reconhecimento da união estável com ex-cônjuge falecido. Casamento posterior que não impede o reconhecimento convivência more uxório, desde que comprovada a separação de fato. Inteligência dos artigos 1723, §1º e 1521, VI do Código Civil. Conjunto probatório que também não permite concluir que após a decretação do divórcio da requerente e o de cujus tenham ambos convivido de forma pública, notória, duradoura, com o objetivo de constituir família. Circunstâncias fáticas que afastam a presunção de afeição recíproca, indispensável para a configuração da affectio maritalis. Recurso desprovido.”
O que está em discussão
No caso concreto, a demandante obteve, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava objetivando desconstituir o acórdão.
Uma coisa: os demandados, na confissão judicial e extrajudicial, que é uma espécie de prova, não só concordam com a fundamentação da decisão, na esfera criminal, de que havia, sim, união estável entre N e a autora, como alegam que ocorreu uma prova inverosímil utilizada indevidamente por eles, ou seja, prova falsa, que não correspondia com a realidade e que, nesta data, reconhecem para corrigir o erro cometido. Afirmam, também, que a autora ficou privada de produzir prova em relação ao endereço residencial de N, pai dos réus.
Uma pausa: na questão prejudicial, que como se sabe, é sempre uma questão prévia (ou preliminar); que deve ser resolvida antes de outra questão, o juízo criminal, de formal cabal, entendeu que, sim, há no presente caso o intuito da união estável vivida entre a ré e N.
Um ponto é certo: o fato probante, na questão prejudicial, é o mesmo da ação declaratória de união estável.
Vejamos parte da fundamentação da decisão criminal, após o trânsito em julgado do acórdão rescindendo, que reconhece a união estável entre os conviventes:
“Diante dos fatos comprovados, o que resta configurado é uma enorme insatisfação dos filhos de N, no que tange à possibilidade de partilhar a herança com a ex-esposa, atual companheira de N, no momento da morte deste, desconsiderando, por tudo trazido, que essa era a grande vontade do pai”. Considerando os diversos documentos e depoimentos produzidos em juízo, resta claro que há no presente caso o instituto da união estável vivida entre a ré e N.”
“Frise-se que o fato acima corrobora ainda mais para o entendimento de que o casal – N e a ré – estavam juntos no projeto de constituir família, pois mobiliavam a casa e colaboravam juntos na forma de compra.”
“Como ponto de partida, retorna-se à conclusão chegada anteriormente, no sentido de que a ré vivia com N, em união estável, pública e com intenção de constituir família e esteve na casa da sogra, onde foi bem recebida, apesar da dor e sofrimento daquele momento.”
Não obstante, a ementa do acórdão diz que:
“Conjunto probatório que também não permite concluir que após a decretação do divórcio da requerente e o de cujus tenham ambos convivido de forma pública, notória, duradoura, com o objetivo de constituir família.”
Qual o ponto crucial em jogo? Há duas decisões contraditórias: uma, do juízo criminal, reconhecendo a união estável e a outra, do juízo civil, não reconhecendo o fato, porém, vindas do mesmo Poder Judiciário.
Decisões judiciais contraditórias
Aqui surge um problema jurídico e filosófico. Aliás, o Direito é filho da Filosofia. Existem duas decisões contraditórias para o mesmo fato probante: uma, do juízo criminal, reconhecendo a união estável, e a outra, do juízo civil, não reconhecendo o mesmo fato, porém, emanadas do mesmo Poder Judiciário.
Pode isso, excelências?
Vale lembrar que a jurisdição é una porque é manifestação do poder estatal. É indivisível. De forma cientifica: é uma só!
A questão de competência é evidente que não afasta o fato de existirem duas decisões contraditórias: uma reconhecendo a união estável e a outra não reconhecendo o mesmo fato; porém, vindas do mesmo Poder Judiciário.
Há, sim, uma mitigação, no caso concreto, da independência de jurisdições. Como é sabido, o Direito Penal tem exigência probatória mais rígida para solução de controvérsias, em decorrência do princípio da presunção de inocência.
A propósito, o juízo penal dispõe de melhores meios para atingir a verdade processual.
Efetivamente, repugna conceber que o Estado, em sua unidade, decida por um dos seus órgãos (juízo civil) que não havia união estável e, posteriormente, esse mesmo Estado venha declarar por outro ramo do Poder Judiciário (juízo criminal) que, sim, havia união estável entre os conviventes.
Pois então. Incrível. Chocante. Ofensivo ao prestígio da Justiça. Desprestigio ao cidadão e direitos fundamentais. Gravíssima contradição; pelo qual um mesmo fato probante, a um só tempo, pode não ser e ser.
Um fato pode ser e não ser ao mesmo tempo?
Nesse sentido, a observação de Renato Ferraz, aqui nesta ConJur [1]:
Parmênides, filósofo pré-socrático, 515 a.C, já dizia que “o ser é e não pode não ser e o não ser não é e não pode ser de modo algum”. Na pós-modernidade, Titãs, no álbum Cabeça de Dinossauro, com letra de Arnaldo Antunes, fala: “Não é o que não pode ser”.
Óbvio isso, não é?
Peço socorro ao festejado mestre de todos nós, professor emérito da Escola de Magistratura do TJ-RJ, Lenio Streck, em precioso artigo, aqui nesta ConJur [2]: “É possível que o mesmo fato tenha respostas distintas no direito?” Veja-se a resposta:
“Não, não é possível que o mesmo fato tenha duas respostas diferentes uma da outra no sistema jurídico”. O mesmo fato não pode receber do Estado-juiz soluções diferentes-contraditórias. Desde Aristóteles, sabe-se que uma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser. Juridicamente, também não. (…) Insisto: os mesmos fatos não podem existir e deixar de existir para o mesmo Estado. Isso se dá, concretamente, em virtude das exigências legais de coerência e integridade que caracterizam nosso ordenamento jurídico.”
Do affectio maritalis
Observe-se que a ementa diz que: “circunstâncias fáticas que afastam a presunção de afeição recíproca, indispensável para a configuração da affectio maritalis”.
Como assim?
Sempre com todo o respeito, é um “achismo”. É subjetivismo. Como medir o afeto? Por sinal, o Estado-Juiz tem um “afetômetro”? Existe uma régua para medir o afeto? Por que os conviventes não tinham a intenção de constituir família? Ora, há uma fundamentação genérica. Contrária às robustas provas dos autos.
Por sinal, na fundamentação da decisão criminal, o juízo aduz que: “N e a ré” estavam juntos no projeto de construir família, pois mobiliaram a casa e colaboraram juntos na forma de compra. A ré vivia com N, em união estável, pública e com intenção de constituir família”.
À vista disso, existe muito afeto nessa história…
Lembrei-me de Herbert Vianna: às vezes te odeio por quase um segundo, depois te amo mais…
É a vida como ela é…
Conclusão
Há um fato, e duas decisões contraditórias, emanadas do mesmo Poder Judiciário. Ficou, sim, uma bipolaridade jurídica, não é?
Pois é. E agora, José?
E a coerência e integralidade do Direito?
Independentemente da prova nova e confissão judicial e extrajudicial dos réus, na ação rescisória, é de uma obviedade óbvia que há uma “contradição lógica de assumir-se que um fato poderia ser e ao mesmo tempo não ser”, como diz, de forma genial, Lenio Streck [3].
A pergunta que se põe é: como a Seção de Direito Privado, do TJ-RJ, vai julgar o caso complexo? O Direito, sim, é capaz de fornecer resposta ao caso concreto em nome da coerência e integralidade!
Porém, o Direito jamais poderá ser levando ao absurdo! Ademais, temos que levar o Direito a sério, não é?
Existe, sim, uma resposta correta no Direito! Aliás, a resposta correta em Direito é aquela que, hermeneuticamente, estiver adequada à Constituição.
É preciso, então, buscar uma solução justa para essa questão.
Daí a lição magistral de Alexandre Freitas Câmara [4]:
“O direito processual moderno é um sistema orientado à construção de resultados justos (…) O processo só pode ser aceito como meio de acesso a uma ordem jurídica justa. E é crer possibilidade de construção dessa ordem jurídica justa para que à mesma se possa chegar. Afinal, como disse — com a costumeira sabedoria —Calamandrei, ‘para encontrar a justiça, é necessário ser-lhe fiel. Ela, como todas as divindades, só se manifesta a quem nela crê’.”
Afinal, qual o processo que queremos? Vamos continuar semeando injustiças?
Com a palavra: os juristas que têm que preocupar-se com Justiça… e a doutrina que é para doutrinar…
Referências
[1] FERRAZ, Renato: https://www.conjur.com.br/2023-jun-09/renato-ferraz-stj-maldade-juridica-penhora-salario/
[2] [3] STRECK, Lenio https://www.conjur.com.br/2024-abr-26/e-possivel-que-o-mesmo-fato-tenha-respostas-distintas-no-direito/
[4] CÂMARA, Alexandre Freitas, Relativização da Coisa Julgada, organizada por Fredie Didier Jr, 2008, JusPODIVM 2ª edição, 2008, p.37)
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