Yin e Yang

Rotina da advocacia ajuda escritora a organizar intensidade da literatura

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18 de maio de 2024, 8h27

Enquanto concedia entrevista via Zoom à revista eletrônica Consultor Jurídico, o vidro em torno de uma vela que a escritora e advogada Renata Belmonte havia acendido explodiu, e a chama cresceu rapidamente, ameaçando se alastrar pela mesa. Foi uma situação potencialmente assustadora, mas Renata calmamente pediu um minuto e evitou um incêndio.

Renata Belmonte já publicou três livros de contos e um romance

O episódio insólito sintetiza os dois lados de Renata. A literatura, para ela, é “um animal feroz”, e sua relação com ela é intensa, alucinante, foge do controle — como quase ocorreu com o fogo na casa dela. Mas o trabalho jurídico a organiza psiquicamente, lhe confere um olhar prático sobre o mundo, permite que tome decisões racionais e resolva problemas com agilidade — tal qual apagar rapidamente a vela e impedir um acidente. O equilíbrio dela depende das duas facetas.

“Eu preciso do Direito, eu preciso da rotina de advogada, eu preciso da Renata que resolve coisas, que toma decisões, que tem um olhar prático para o mundo. A literatura me desorganiza completamente, pede de mim uma entrega absoluta. A literatura não aceita que eu sou casada, que eu tenho filhos, que eu preciso de dinheiro. Eu não poderia ser escritora o tempo todo, eu adoeceria. Meus livros pedem essa alternância, esses respiros”, explica. Porém, ela deixa claro que a advocacia não inspira seus livros.

Sócia do Pamponet, Belmonte, Diniz e Silvany Advogados, ela exerce atividades de relações governamentais e institucionais, incluindo o acompanhamento de agendas do setor produtivo no Legislativo e Executivo, como temas tributários, trabalhistas, regulatórios e ambientais. Também promove estudos sobre essas áreas e assuntos relacionados a políticas de inclusão e diversidade.

Soteropolitana, Renata escolheu fazer Direito — na Universidade Católica do Salvador — por ter um ideal de justiça, querer defender minorias. Depois ela foi para São Paulo, onde mora atualmente, fazer mestrado na Fundação Getulio Vargas e, posteriormente, doutorado na Universidade de São Paulo.

Epifania na infância

Quando tinha sete anos, Renata Belmonte fazia aulas de reforço escolar. Certo dia, seus pais se atrasaram para buscá-la na casa da professora. A docente deixou a menina em uma sala e lhe entregou alguns livros, para que se distraísse. Renata começou a ler um livro sobre uma fábrica de brinquedos e teve uma epifania.

“Aquilo me tirou completamente do espaço onde eu estava, do sentimento de angústia pela demora dos meus pais. Lembro de ter pensado ‘nossa, que trabalho extraordinário é ser um escritor’”, conta Renata.

Aos poucos, ela foi pegando gosto pela leitura, impulsionada pela Coleção Vaga-Lume — série de livros infantojuvenis lançada em 1973 e que fez sucesso nas décadas seguintes. Depois passou aos clássicos, que eram distribuídos pelo jornal A Tarde. Algumas de suas maiores inspirações são Clarice Lispector, Hilda Hilst, J. M. Coetzee e Susan Sontag — “autores que desafiam minhas crenças”, diz.

Renata começou a escrever contos com 19 anos. Em uma internet pré-redes sociais, publicava os textos e blogs e trocava ideias sobre literatura com outros escritores e leitores. Sua primeira coletânea, Femininamente (Casa de Palavras), recebeu o Prêmio Braskem de Literatura de 2003. O livro de contos seguinte, O que não pode ser (EPP Publicações), foi o vencedor do Prêmio Arte e Cultura Banco Capital de 2006. “Aí ficou claro que não era uma brincadeira, eu tinha talento. E que iria tocar a carreira literária paralelamente à jurídica”. O terceiro livro de contos dela é Vestígios da Senhorita B, de 2009 (P55).

Mundos de uma noite só

Renata Belmonte escreveu seu primeiro romance, Mundos de uma noite só, como presente de 30 anos para si mesma. No entanto, devido a contratempos editoriais, o livro só foi publicado, pela Faria e Silva, em 12 de março de 2020 — um dia depois de a Organização Mundial da Saúde declarar a pandemia de Covid-19.

Livro foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceanos

Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do Prêmio Oceanos, a obra narra a jornada de uma mulher que encontra um livro antigo de sua mãe, no qual conta a história da família. A partir daí, confronta-se com a sua vida, sua criação, seus dramas. É um livro construído em torno do mantra da filósofa francesa Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher: torna-se”.

De acordo com Renata, a obra busca desnudar a experiência de mulheres não serem socializadas para serem parceiras, e sim competidoras umas das outras. E muitas vezes por homens que não hesitarão em abandoná-las se lhes convier.

“Assim como fazem os heróis que retornam da guerra, o homem que amo voltará para seu castelo. Desavisadamente. Quando chegar, será recebido com honrarias. Terá desertado. Todos saberão disso e comemorarão sua coragem. Pelo caminho, ele terá me abandonado. Assim como todos os homens que passaram pela minha vida. Desavisadamente”, afirma a protagonista, em trecho do livro.

Em outra passagem, a mãe teoriza que “amar literatura, conhecer de cor e salteado milhões de versos, ser um apaixonado por histórias” não torna alguém um escritor.

“Você pode citar trechos de romances difíceis, adotar um tom arrogante, criticar autores sofisticados, mas os outros saberão que lhe falta o toque mágico necessário. O escritor é alguém que executa muito bem as ordens do invisível. Portanto, além de persistente, você também precisa se permitir o desconhecido para que seu próprio talento se revele. Lamento lhe dizer, mas é do mesmo jeito com o amor e com a beleza. Mesmo que muitos se esforcem, nem todos conseguem”.

“A condição de artista é seleta e sem critérios”, prossegue. “Você pode, certo dia, descobrir que alguém que leu muito menos do que você e que tem um terço da sua idade, escreve coisas com mais força do que as suas. E por mais que você se aborreça, é melhor que admita logo isso, que ultrapasse este sofrimento. Para ser um bom apreciador é necessária uma boa dose de humildade, senão você perde o encanto pelas coisas que elevam o espírito. Naquela cidade de velhos, havia uma mulher humilde que trabalhou até a morte corno cozinheira de um bar de quinta categoria. Nunca existiu, naquele lugar, bife ou pessoa mais digna: ela sabia quem era e entregava o seu melhor. Todo mundo possui algo de único para dar ao mundo, mas é necessário ter coragem para assumir que, muitas vezes, esta oferta é solitária e que nem sempre é bem-sucedida”.

A diferença entre um amante de literatura, um contador de histórias e um escritor é a linguagem, a capacidade de compreensão do humano e a “capacidade de entrega ao desconhecido”, declara Renata. “Mas é claro que um bom escritor tem que ter repertório. Não acredito no ‘chamado’ divino”.

O fim de Mundos de uma noite só abre novas possibilidades de interpretação de capítulos iniciais. O objetivo de Renata é que, desvendado o mistério central, o leitor releia a obra, o que lhe permite entender melhor certos acontecimentos. O livro é a primeira parte de uma trilogia. A segunda está na fase final de escrita e deve ser publicada em 2025.

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