Justo Processo

A Revogação da Súmula 70 do TJ-RJ em virtude do aparato tecnológico (parte 3)

Autores

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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  • Lúcia Helena Oliveira

    é defensora pública e coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio.

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  • Isabel Schprejer

    é defensora pública subcoordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública-RJ membra do Conselho Penitenciário do RJ e do Comitê do Plano Estadual da Política de Atenção à Mulher Presa e Egressa do RJ e especialista em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.

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18 de maio de 2024, 8h00

Nas últimas duas semanas, levantamos reflexões individualizadas sobre a necessária revogação da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Como já expusemos, o seu conteúdo expressa que “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. A redação do enunciado quer nos dizer que a condenação, em um processo penal, poderá estar baseada unicamente em depoimentos de policiais. Essas ponderações pretendem alertar sobre as implicações ou violações através dessa assertiva, em nosso Estado e por todo o país , ao longo de mais de 20 anos de sua aplicação.

No primeiro artigo, analisamos a questão probatória e toda a ruptura com as garantias fundamentais da presunção de inocência, contraditório e ampla defesa.

Em um segundo momento, coube a reflexão sobre o olhar racial e os efeitos práticos pela aplicação da súmula.

Tecnologia e overruling

Agora, é relevante trazer à baila a questão das inovações tecnológicas ocorridas, que fazem com que o enunciado tenha se tornado ultrapassado, em verdadeiro overruling. Com efeito, a expansão e viabilidade científica-econômico-financeira-social do emprego de recursos audiovisuais para gravação de diligências policiais deve, necessariamente, gerar impactos no processo penal, em especial o standard probatório exigido para uma condenação criminal.

No bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada em 3/2/2022, entendeu pelo acolhimento parcial de embargos de declaração para, dentre outros, “determinar que o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos”.

Em 5/6/2023, tal decisão foi reafirmada pelo ministro Edson Fachin, relator da mencionada ADPF, que manteve a determinação de “estabelecimento imediato de um cronograma para que todas (sem exceção alguma) as unidades policiais do Estado do Rio de Janeiro (com prioridade para que realizem operações em favelas) adotem as câmeras corporais”, devendo ser garantida a regular disponibilização das mídias ao Ministério Público e à Defensoria Pública.

Spacca

Em 7/6/2021, foi publicada no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro a Lei Estadual nº 9.298/2021, que promoveu modificações na Lei Estadual nº 5.588/2009, determinando a implantação de câmeras de vídeo e áudio em uniformes e viaturas policiais. Advieram, ainda, outras normativas estaduais sobre o tema, destacando-se o Decreto do Governador nº 48.394/2023 e a Resolução nº 2421/2022, sendo as câmeras gradativamente adquiridas e incorporadas à atividade policial em todo o estado.

Virada necessária

Diante de tal possibilidade tecnológica e efetiva implementação, inclusive por determinação da Corte Suprema brasileira, não há razão para que parâmetros probatórios fixados no ano de 2003 subsistam, sendo imperiosa a ocorrência de uma virada jurisprudencial, buscando estabelecer maior transparência e confiança em nosso sistema de Justiça Criminal.

Seguindo nesta linha, denota-se imprescindível destacar pontos do voto do ministro Ribeiro Dantas proferido no bojo do AREsp 1.936.393/RJ, interposto pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, do qual era relator:

“Ao lermos a emocionante obra To kill a mockingbird, de HARPER LEE, sentimos todos compaixão pelo pobre Tom Robinson, jovem negro acusado injustamente do estupro de uma moça branca em uma pequena cidade do estado do Alabama, na década de 1930 – no auge da segregação racial norte-americana e das leis de Jim Crow. […]

Abro este voto, assim, com uma pergunta incômoda: como haverá a impiedosa lente da história de enxergar as práticas de nosso sistema judicial em julgamentos como o que agora apresento? Ocuparemos no hall da história jurídica um lugar honroso, ou nos reservará o futuro uma nota de rodapé junto aos ordálios do medievo? […]

O risco de submeter aos horrores do cárcere alguém que não praticou ofensa penal alguma é uma angústia que deve aterrorizar o magistrado, impelindo-o a se cercar de todas as cautelas possíveis antes de decidir por impactar de forma irremediável a vida da pessoa que lhe é trazida para julgamento. Afinal, se a simples existência de um procedimento investigativo penal já é suficiente para tirar a paz de qualquer pessoa, a condenação criminal é o meio (legítimo) mais intenso de que dispõe o Estado para atacá-la em seus bens jurídicos mais preciosos e arruinar a qualidade de sua existência sobre a Terra.

(…)

Nas Cortes locais, adicionalmente, é comum vermos uma sequência de outros argumentos menos atrelados à literalidade do CPP, mas nem por isso menos frequentes. Juízes e Tribunais não raro afirmam que: (I) incidiria presunção relativa ou absoluta de veracidade do que é dito por policiais, enquanto agentes do Estado, razão pela qual incumbiria à defesa o ônus de comprovar sua falsidade; (II) não seria crível que agentes policiais incriminassem dolosamente o réu, inexistindo motivos para que assim agissem; (III) haveria contradição entre as posturas estatais de encarregar a polícia de reprimir a criminalidade para, judicialmente, desconsiderar os depoimentos de seus agentes; e (IV) a alegada mentira no depoimento do policial seria somente uma narrativa inventada pelo réu para tentar escapar da condenação.

Tais conclusões encontram-se estampadas na Súmula 70 do Tribunal que proferiu o acórdão impugnado, segundo a qual ‘o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação’.

(…)

Na verdade, o testemunho policial dispara à frente do relato do réu no quesito da confiabilidade, a partir unicamente da condição pessoal de quem o proferiu, (…)

(…)

A proposta que encaminho aos doutos pares caminha no sentido oposto, visando a impedir que a condenação por qualquer delito se estribe somente nos depoimentos prestados pelos agentes policiais encarregados de sua investigação e repressão. Atento às inovações tecnológicas e às mais modernas compreensões doutrinárias nacionais e estrangeiras, bem como a dados objetivos e independentes que desenham um panorama desolador no Brasil, sugiro que se exija, como requisito para a condenação do réu, a corroboração dos depoimentos dos policiais por gravação em vídeo quanto aos fatos que afirmam ter testemunhado. […]

Penso, com isso, ser possível dar-se um enorme salto de qualidade na segurança das condenações judiciais – mormente, mas não só, pelos crimes de tráfico de drogas, furto, roubo e infrações à Lei 10.826/2003 –, evitando-se o drama jurídico e humano que é o encarceramento de uma pessoa inocente; além de viabilizar a concretização prática de direitos e garantias fundamentais que hoje não passam, nas palavras de Napoleão Bonaparte, de uma ‘muralha de papel’.

(…)

Para não deixar sem respostas as perguntas que formulei nesta introdução, estou convicto de que, mantendo-se o atual entendimento jurisprudencial, o futuro há de olhar para as sentenças judiciais brasileiras (em delitos de tráfico, roubo, furto) neste começo de século como uma curiosa deformidade jurídica, com o mesmo rigor que hoje censuramos a condenação de Tom Robinson. […]” [1].

O paradigmático voto prossegue, abordando, dentre outros temas, a letalidade e tortura policial no Brasil; as dificuldades epistêmicas do testemunho policial; a presunção de não culpabilidade e a inversão do ônus da prova; os sistemas de valoração da prova, justificação racional e standards probatórios. Ainda, o uso de câmeras corporais (body-worn cameras) e automotivas (dashboard cameras), abordando a prova audiovisual enquanto meio racional de comprovação de fatos, bem como a teoria da perda da chance probatória.

 

Especificamente sobre o tema das câmeras corporais e veiculares, assim pontuou o relator:

“Os ganhos de racionalidade probatória para o sistema processual, com a implementação desse sistema, são inimagináveis. A possibilidade de examinar as imagens e o áudio dos fatos narrados na denúncia, se não neutraliza, pelo menos diminui consideravelmente os vieses dos depoimentos de agentes policiais e os riscos de uma armação dolosa contra o réu, pelo uso de artifícios como o ‘kit flagrante’ e similares. Com isso, o nível objetivo de corroboração necessário para a condenação é sobremaneira fortalecido.

Ademais, a existência de gravação da abordagem policial e da prisão resguarda os bons policiais, que certamente são a vasta maioria do corpo funcional da polícia, contra alegações infundadas de abuso formuladas por presos mal-intencionados. Assim, enquanto aumenta a segurança de uma eventual condenação e previne condenações injustas, a gravação atenua também os riscos jurídicos a que os bons policiais (especialmente os militares) estão submetidos, evitando que respondam a procedimentos disciplinares sem justa causa.

Para além desses ganhos práticos, a condenação que se funda não só na palavra dos policiais, mas também na gravação audiovisual dos fatos, resiste melhor ao controle de racionalidade probatória com os critérios propostos no tópico anterior.

Em primeiro lugar, porque surge um meio de corroboração independente da narrativa dos próprios policiais, já que, ressalvadas hipóteses de adulteração do vídeo – estas sim, mais passíveis de comprovação pela defesa –, a gravação não é produzida pessoalmente pelos próprios agentes. Esse acréscimo de corroboração é acentuado porque, além de sua independência, o meio de prova é distinto daquele primeiramente apresentado pelo Estado acusador (qual seja, a prova testemunhal). […]

Pelo segundo critério, o da diferenciação, a evidência em vídeo aumenta as chances de que sejam confirmadas, exclusivamente, as predições da acusação, caso as imagens confirmem a narrativa da polícia; ou as da defesa, se o vídeo registrar um flagrante forjado. Com isso, mitiga-se a chance de que o mesmo elemento probatório se encaixe ao mesmo tempo nas duas narrativas e seja incapaz de diferenciar a maior probabilidade de uma ou outra, o que é a regra quando a condenação se fundamenta unicamente na palavra dos policiais.

Por fim, à luz do critério da falseabilidade, a hipótese acusatória torna-se refutável se o Ministério Público apresenta esse elemento probatório adicional, porque a defesa finalmente terá condições de examinar o material dos autos de maneira mais efetiva e, a partir do que a gravação audiovisual lhe revelar, elaborar uma estratégia dialética ou investigativa que proteja a posição jurídica do réu, viabilizando o exercício de um contraditório real.

Essa aprovação no tríplice exame de racionalidade conduz à possibilidade de que o standard probatório da condenação seja atendido quando os testemunhos dos policiais estejam confirmados por vídeo. Haverá, aqui, uma corroboração coerente da hipótese acusatória pelos elementos probatórios disponíveis, ao mesmo tempo em que a tese defensiva de mentira por parte dos policiais ganha condições de ser rechaçada, caso improcedente. Não digo, é claro, que a condenação será necessária em todos os casos, mas apenas que há um incremento em racionalidade nessa condenação hipotética, quando comparada com as condenações como a destes autos.”

Ao final, o ministro Ribeiro Dantas resume seu entendimento e formula sua proposta:

“Proponho, em síntese, que a palavra do agente policial quanto aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para a demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória. É necessária, para tanto, sua corroboração mediante a apresentação de gravação dos mesmos fatos em áudio e vídeo.

Por sua vez, não havendo a apresentação da filmagem, as provas materiais colhidas pelo policial quando testemunhou os fatos (como a droga, armas ou outros objetos apreendidos na prisão em flagrante) só podem ser utilizadas para fundamentar a condenação se sua vinculação ao réu for corroborada por prova independente da palavra do policial que as arrecadou.

Destaco, finalmente, que embora o presente processo verse sobre o crime de tráfico de drogas, a ratio aqui identificada tem aplicação indistinta a todos os delitos cuja comprovação repouse, somente, na palavra do policial e nos elementos de prova dela derivados (como vemos constantemente em ações penais por roubo, furto, porte ilegal de armas de fogo e outras infrações similares).”

Trata-se de contundente manifestação sobre o tema, advinda de membro da Corte Superior, abrindo portas para o aprofundamento da discussão, surtindo necessário efeito contrário à permanência da Súmula 70 do TJ-RJ.

Comentários finais

Via de consequência, a questão perpassa pelo incentivo a trabalhos de inteligência investigativa pela polícia, bem como a utilização de câmeras corporais e em viaturas, legitimando e conferindo transparência ao atuar da polícia ostensiva. A falta de transparência pode fomentar o aumento da sensação de ilegitimidade/obscuridade em relação à atividade policial, e, nesse sentido, as câmeras corporais são capazes de trazer grandes ganhos para a nossa segurança pública.

A adoção das câmeras, portanto, coloca-nos na direção certa, diminuindo riscos não só para condenações injustas, mas também para os próprios agentes policiais, que ganham maior segurança e resguardo contra eventuais falsas acusações em seu atuar.

Para a conclusão das referidas reflexões, deve-se apontar que as garantias fundamentais resultam no alicerce necessário para a edificação de qualquer decisão penal. A violação aos princípios da ampla defesa, contraditório e, principalmente, presunção de inocência, estipulam uma mácula direta à dignidade da pessoa humana. Por isso, garantir força constitucional a uma sentença condenatória é estabelecer um standard probatório mais elevado.

Nesta linha, a superação da Súmula 70 do TJ-RJ é um caminho para diminuir a incidência do viés racial na criminalização de pessoas, sem perder de mira a proteção da nossa sociedade, pois a segurança pública não pode(ria) ser, jamais, inimiga da preservação da dignidade humana, bem como dos princípios de endereço constitucional.

 


[1] 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, AREsp 1.936.393/RJ, rel. min. Ribeiro Dantas.

Autores

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor de Processo Penal e autor de livros e artigos .

  • é defensora pública, titular da 35ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela Unesa, pós-graduanda em Relações Étnico Raciais pela Uerj, coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública-RJ, coordenadora de Políticas Criminais da Anadep, integrante do Fórum Permanente de Direito Penal da Emerj, professora de Direito Penal e autora de artigos.

  • é defensora pública, subcoordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública-RJ, membra do Conselho Penitenciário do RJ e do Comitê do Plano Estadual da Política de Atenção à Mulher Presa e Egressa do RJ e especialista em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.

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