Diário de Classe

A Peste, de Camus, e o negacionismo que mata e destrói

Autor

  • Bianca Roso

    é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos na linha de pesquisa: Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos bolsista Capes/Proex mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria-UFSM com bolsa Capes pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão: Phronesis: Jurisdição e Humanidades e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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18 de maio de 2024, 8h00

A Peste, do franco-argelino Albert Camus (1913-1960), se passa na cidade de Orã, Argélia, no ano de 194… Isso mesmo, “194…”. O narrador não precisa o ano. Para iniciar a obra ele relata como era a sua cidade. Aqui, ele relata que as pessoas reservam “os prazeres para os domingos e os sábados à noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro” [1]. É nesse cenário que de repente a peste se inicia e rapidamente se propaga.

O protagonista da história é o Dr. Bernard Rieux. Ele é um médico que relata suas experiências após ter compartilhado as angústias diárias dos cidadãos de Orã. A peste é devastadora e tem um alto poder de propagação. O Dr. Rieux dirá, tragicamente, que nesse tipo de situação ele não é mais alguém que cura, mas que diagnostica e isola, pois não há muito o que fazer. A doença é desconhecida e não existem medicamentos para o seu tratamento.

Alarme falso

O narrador mostra que logo no começo da epidemia, quando o médico Rieux recomendava medidas implacáveis, houve resistência por parte das autoridades da cidade. A Prefeitura adotou apenas algumas medidas. O prefeito não queria causar pânico ou inquietar a opinião pública.

Ele considerava as orientações dos profissionais da ciência, incluindo Rieux, um “alarme falso”. Enquanto isso, o médico, Dr. Rieux, alertava que os focos de infecção cresciam. Pela rapidez com que a doença se propagava, se não fosse detida, poderia matar metade da população, em menos de dois meses. Por isso, era necessário tomar medidas de prevenção e adotá-las, conforme previsto na legislação.

As autoridades de Orã também tentaram manipular a divulgação dos números de mortes pela peste. “Os jornais e as autoridades brincam de espertos com a peste. Imaginam que lhe tiram alguns pontos porque cento e trinta é um número menos impressionante que novecentos e dez [2].” Apenas depois do evidente colapso, quando a doença já havia se alastrado e dizimado a população, principalmente as de regiões periféricas de Orã, é que as autoridades tomaram consciência da situação de calamidade, adotando medidas.

Respostas antes das perguntas

O professor Lenio Streck nos ensina que a literatura pode causar angústia e estranhamento, mas ela é capaz de existencializar o direito [3], pois o direito trata da nossa relação com o mundo da vida. No direito, falar em utopias e distopias provoca ruídos e isso angustia o jurista. Ele complementa que:

“O problema é que por vezes ele sequer sabe que está angustiado. Por vezes ele nem quer enfrentar isso. Não quer o estranhamento. Por que os juristas gostam tanto de conceitos prontos, enunciados, súmulas? Porque isso lhes dá uma tranquilidade. É como voltar ao ventre da pré-modernidade, em que tudo está posto. Todas as cartografias asseguram a certeza. Respostas antes das perguntas, eis a terra prometida pelo pensamento dogmático do direito, herdeiro do velho positivismo” [4].

Mudança climática e os efeitos do negacionismo

É nesse sentido que o nosso Estado também vive as consequências de um evento extremo-climático, mas mais do que isso, ele sofre as consequências do negacionismo científico, da simplificação de respostas, fruto do modelo de conhecimento (paradigma) que forjou o senso comum teórico na contemporaneidade. Isso porque a ciência do clima não foi ouvida, mesmo depois de atingir graus de consenso e de certeza nunca alcançados. Assim como, na cidade de Orã, de Camus, os profissionais da ciência não foram respeitados e encontraram resistência por parte dos governantes.

Mesmo após o próprio Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) definir a mudança climática abrupta como o momento em que um limiar crítico do aquecimento foi alcançado. Eis que esse ritmo cruzado acaba por comprometer a nossa própria capacidade de adaptação resiliente (sim, essa é uma informação científica, oriunda da ciência do clima, não se trata de suposições).

O patamar seguro apontado por ela para não ultrapassar esse limiar é conter o aquecimento da terra em 1,5ºC. Chegamos ao nosso limite. De acordo com relatório emitido pela agência europeia Copernicus, de fevereiro de 2023 a janeiro de 2024 a Terra ultrapassou pela primeira vez durante 12 meses consecutivos o limite do aquecimento de 1,5ºC em relação à era pré-industrial, tendo a média de 1,52ºC.

Exemplo trágico no RS

O cientista brasileiro Carlos Nobre [5] nos informa que a busca por soluções de adaptação não é mais um plano futuro, é um plano passado, e que já deveria estar ocorrendo no mundo inteiro, com muito mais rapidez e eficiência. Mas não estamos vendo uma busca por adaptações para eventos que já estão acontecendo. O exemplo trágico é esse, ocorrido no Rio Grande do Sul.

É importante destacar que as narrativas que circundam essa catástrofe climática podem transformar-se em um “desastre dentro de um desastre”. Isto é, são “as mentiras que matam” [6], conforme ilustra o professor Lenio Streck. Isso porque, diante da crise da narração [7] e da consequente simplificação da linguagem surgiu um tipo de indivíduo (phono sapiens) que é capaz de transmitir apenas informações visuais manipuladas, na esteira do negacionismo científico.

Essa é a potência destrutiva da negação. A cidade de Orã, de Camus, nos escancara isso. “Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis… Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro […]? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos” [8]. A cidade de Orã, bem poderá ser substituída por Porto Alegre ou pelo mundo inteiro. É um livro que diz respeito a “194…” ou a “202…”? Longos tempos de luta e resiliência nos aguardam.

Saiba como ajudar as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul

Cobertores, casacos e roupas quentes estão entre os itens mais importantes para doação aos atingidos. Assim como, alimentos, água potável, material de limpeza e higiene pessoal. As doações podem ser entregues nos pontos de coleta da Unisinos: av. Unisinos, 950 – Cristo Rei, São Leopoldo – RS. Mas quem está fora do estado ou até mesmo fora do país também pode contribuir financeiramente:

Banco Banrisul S/A Ag 0410 São Leopoldo – RS, Conta 06.226166.0-4

ASAV Unisinos Solidariedade CNPJ 92.959.006/0008-85 ou realizar a doação pelo Pix da conta solidariedade: [email protected]

 


[1] CAMUS, Albert. A Peste. Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2020, s.p.

[2] CAMUS, Albert. A Peste. Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2020, s.p.

[3] STRECK, Lenio Luiz; KARAM, Henriete. A literatura ajuda a existencializar o direito. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, 2018.

[4] STRECK, Lenio Luiz; KARAM, Henriete. A literatura ajuda a existencializar o direito. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 4, n. 2, 2018, p. 617.

[5] Entenda por que a catástrofe no RS é um evento climático extremo. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/entenda-por-que-catastrofe-no-rs-e-um-evento-climatico-extremo. Acesso em: maio de 2024.

[6] As consequências criminosas das fake News: a urgência na punição. Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/as-consequencias-criminosas-das-fake-news-a-urgencia-na-punicao-por-lenio-streck/. Acesso em: maio de 2024.

[7] BYUNG-CHUL, H. A crise da narração. Petrópolis: Editora Vozes, 2023.

[8] CAMUS, Albert. A Peste. Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2020, s.p.

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos, bolsista Capes/Proex, mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com bolsa Capes, pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão Phronesis: Jurisdição e Humanidades e do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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