Opinião

Impacto do Guia V+ para análise de atos de concentração não horizontal pelo Cade

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17 de maio de 2024, 12h24

A recente publicação do Guia de Análise de Atos de Concentração Não Horizontais (Guia V+) [1] pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) representa um marco significativo para a comunidade antitruste brasileira. Esse documento, em que pese não tenha caráter propriamente vinculante ou normativo, busca elucidar o processo de condução da análise de operações envolvendo atos de concentração não horizontais (integrações verticais e fusões conglomerais), com o objetivo de garantir maior previsibilidade, transparência e consistência e, assim, assegurar segurança jurídica às análises do Cade.

O Guia V+ surge em resposta à crescente complexidade das transações empresariais, especialmente no contexto das fusões verticais e conglomerais, que não envolvem concorrentes diretos. A publicação reflete uma tendência global de maior cautela em relação às operações não horizontais, em virtude do aumento significativo de operações que envolvem múltiplos mercados e que tem gerado inúmeros debates ao redor do mundo.

As integrações verticais ocorrem quando uma organização expande suas atividades para diferentes estágios de uma mesma cadeia produtiva e atua de modo interligado, abrangendo tanto os segmentos a montante (upstream) quanto a jusante (downstream) [2]. Já as fusões conglomerais, costumam ser definidas por exclusão, quando as operações não abarcam relações horizontais ou verticais e as atividades das empresas envolvidas se encontram de alguma forma relacionadas (e.g., destinam-se aos mesmo clientes intermediários ou consumidores; envolvem produtos utilizados ou consumidos em conjunto ou envolvem produtos de processos produtivos similares), mas não atuam em níveis diferentes da cadeia produtiva [3].

Peculiaridades

O processo de análise de operações verticais ou conglomerais segue essencialmente a mesma metodologia prevista no Guia H e consolidados pela experiência antitruste, porém com algumas peculiaridades relevantes. Segundo sugere o novo guia (Guia V+) a análise de tais operações segue cinco etapas principais, quais são: definição dos mercados relevantes, determinação de participação de mercado e definição de nível de concentração, análise do potencial ofensivo à concorrência nos mercados a jusante e a montante, avaliação dos benefícios econômicos líquidos resultantes da operação e a consideração de possíveis remédios antitruste.

Spacca

Existem algumas peculiaridades inerentes às operações não verticais que desafiam a análise da autoridade antitruste, como, por exemplo, a existência de dois ou mais tipos de mercado de produto ou serviço, sendo necessário a definição de mais tipos de mercado relevantes, dimensões geográficas por vezes não coincidentes, o envolvimento de plataformas digitais com suas especificidades, diferentes teorias do dano, a existência de benefícios decorrentes das operações e a implementação de remédios adequados que não vão contra a lógica econômica de integração das atividades da cadeia produtiva.

Principais mudanças

O Guia V+ trouxe diversas inovações cruciais para a análise de atos de concentração não horizontal, sendo importante pontuar as principais alterações estabelecidas pelo novo guia.

Destaca-se as importantes alterações nas abordagens tradicionais de análise de poder de mercado e incentivos econômicos. Anteriormente, fusões e aquisições não horizontais envolvendo empresas com participações de mercado abaixo de 30% não representavam ameaças [4].

Entretanto, o novo guia reconhece que essa análise simplificada pode ser insuficiente e imprecisa [5]. Nesse sentido, uma das inovações significativas foi o reconhecimento de que a influência de um agente que atua no mercado a jusante está mais ligada ao seu poder de compra dos insumos do que à sua participação nas vendas dos produtos no mercado a jusante. Tal alteração rompe com a abordagem tradicional do Cade, que se baseava principalmente na análise de participações de mercado (market share) em cada elo da cadeia produtiva.

Importante ressaltar ainda que, nas hipóteses de aquisições de controle, em que uma empresa adquire mais de 50% das ações da outra, o alinhamento de incentivos e a possibilidade de restrição de mercado de forma prejudicial à concorrência já foi por vezes presumido. No entanto, para a hipótese de aquisições parciais, o Guia V+ reconhece que o alinhamento de incentivos não é unilateral [6] e depende de vários fatores, incluindo o percentual de participação acionária adquirida, a estrutura de governança da empresa-alvo e a dinâmica competitiva do setor.

Dados sensíveis

No que diz respeito aos efeitos das operações não horizontais, o Guia V+ ampliou a discussão sobre o acesso a informações sensíveis de concorrentes. Destacou-se a preocupação de que empresas integradas, atuando tanto no fornecimento de insumos quanto na produção final, possam ter acesso privilegiado a informações concorrentes. No intuito de inibir tais situações, o novo guia estabelece um conjunto de critérios para avaliar o risco de prejuízo à concorrência em operações não horizontais, analisando: estrutura do mercado; natureza da informação compartilhada e sua relevância concorrencial; possibilidade e a probabilidade de obtenção de vantagem competitiva em decorrência do compartilhamento dessa informação e possibilidade de se evitar ou restringir a abrangência do compartilhamento.

Ainda, o guia introduziu a necessária análise do poder de portifólio em fusões conglomerais, tendo em vista que a combinação de empresas em diferentes setores pode criar vantagens significativas para a empresa resultante e assumir caráter anticompetitivo afetando a concorrência e o bem-estar dos consumidores. Nessa hipótese, o Guia V+ sugere que deve ser analisado o grau de concentração nos mercados relevantes, as barreiras à entrada existentes e a presença de produtos complementares.

Conclusão

A publicação do Guia V+ pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) representa um marco significativo na regulação de operações que envolvem atos de concentração não horizontal no Brasil, especialmente no que diz respeito às operações verticais e conglomerais. Este documento não apenas oferece diretrizes precisas e claras para a análise dessas operações, mas também reflete a preocupação do Cade com a segurança jurídica de suas decisões ao fornecer diretrizes transparentes e previsíveis, com o objetivo de promover uma análise mais consistente e eficaz.

Além disso, ao reconhecer as peculiaridades das operações não horizontais, o guia demonstra o compromisso do Cade em se adaptar às mudanças no ambiente empresarial e em promover uma concorrência saudável e dinâmica. Assim, espera-se que o Guia V+ desempenhe um papel fundamental na orientação das futuras análises de fusões e aquisições no Brasil.

 


[1] Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/Guia%20V+/Guia-V+2024.pdf

[2] OCDE. Vertical Mergers in the Technology, Media and Telecom Sector Background. Note by the Secretariat. 2019, p. 5.

[3] CADE. Documento de Trabalho n. 06/2023: Fusões Conglomerais: Teorias do dano e jurisprudência do Cade entre 2012 e 2022.

[4] Como, por exemplo, o voto do conselheiro-relator Sérgio Ravagnani no Ato de Concentração nº 08700.003969/2020-17 (SEI 0921910).

[5] Na análise do Ato de Concentração nº 08700.000627/2020-37, a Superintendência-Geral e o Tribunal do Cade apontaram que apesar das partes não possuírem mais de 30% de participação de mercado, seria necessária uma análise mais aprofundada da operação, tendo em vista o potencial impacto da marca Nike.

[6] Por exemplo, no recente Ato de Concentração 08700.005990/2023-91, houve a análise por parte da Superintendência-Geral da existência de fatores capazes de mitigar o exercício de poder de mercado

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