Opinião

Reforma tributária: equivocada insistência na tributação das reservas técnicas

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16 de maio de 2024, 19h34

Em artigo publicado aqui mesmo nesta Conjur, destaquei a relevância da aprovação da reforma tributária pela Câmara dos Deputados, que foi posteriormente confirmada pelo Senado. O tom deste texto foi de comemoração, em razão da sua importância para a melhoria do sistema tributário brasileiro. Mas, neste mesmo artigo, o otimismo foi contrabalanceado pela desconfiança, inevitavelmente adquirida por quem atua na área tributária.

Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
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Afinal, os exemplos de deformação da legislação tributária são diários, seja por meio da aprovação de novas leis que aumentam a colcha de retalhos, seja por meio de interpretações administrativas desconectadas dos pressupostos que informam a tributação.

Ao final, foram realizados votos de respeito ao pacto social firmado, que envolveu os esforços de inúmeros setores e que ocorrerá se observados os princípios de uma tributação sobre o consumo com base de incidência ampla, não cumulatividade plena e reduzida quantidade de exceções e regimes especiais. O sucesso desse empreendimento depende, também, da não insistência em discussões improdutivas, responsáveis por levar, ao novo sistema, contencioso judicial do antigo.

Este é, potencialmente, o caso do artigo 219, inciso I, alínea ‘b)’, do Projeto de Lei Complementar n° 68/2024, que pretende instituir o IBS e a CBS. De acordo com esse dispositivo, as seguradoras de saúde, operadoras de planos de assistência à saúde e entidades de previdência complementar registradas na ANS terão, como base de cálculo dos novos tributos, a receita decorrente dos seus serviços, o que incluirá os prêmios e contraprestações, bem como as receitas financeiras decorrentes das reservas técnicas.

Esse dispositivo resgata a lembrança de longa disputa judicial relativa ao PIS e Cofins, que serão — espera-se — adequadamente substituídos pelos novos tributos. Por meio do RE n° 400.479/RJ, em que empresa seguradora litigava contra a União, o Supremo Tribunal Federal analisou o significado do termo faturamento, base de cálculo para as referidas contribuições apuradas no regime cumulativo.

A dúvida era se este conceito abarcava apenas as receitas decorrentes da venda de bens e serviços ou se contemplaria também os valores obtidos a partir do exercício das atividades típicas da pessoa jurídica, ainda que não resultantes do fornecimento de produtos ou obrigações de fazer. O tema era particularmente importante para as seguradoras, sociedades que auferem receitas decorrentes de atividades distintas da venda de mercadorias e serviços.

Após quase duas décadas desde que o processo chegou à Suprema Corte, foi consolidado o entendimento de que faturamento inclui as receitas auferidas em razão da atividade empresarial típica do contribuinte, ainda que não implique circulação de bens ou fornecimento de serviços. No caso das seguradoras, é o que ocorre com o prêmio, contrapartida devida às empresas do setor em função do contrato de seguro, e que pode variar em decorrência dos interesses garantidos e dos riscos previamente estabelecidos.

O prêmio é a principal obrigação do segurado. Trata-se da remuneração direta da seguradora pela fruição das utilidades por elas disponibilizadas em razão do contrato de seguro. Dada a premissa estabelecida pelo STF, era esperada, portanto, a inclusão desses valores na base de cálculo do PIS e da Cofins, já que são efetivas receitas decorrentes do objeto social da empresa.

Spacca

Neste mesmo precedente, votos proferidos por alguns ministros enfrentaram também a tributação das receitas financeiras derivadas de reservas técnicas. Essas aplicações são obrigações legais, impostas para garantir a solvência dessas empresas, o que é fundamental em razão da importância dos bens por ela segurados.

Conforme constou expressamente no voto do então ministro relator Cezar Peluso, bem como dos ministros Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso, essas receitas financeiras possuem origem exclusivamente regulatória e jamais poderiam ser consideradas como contrapartida da atividade empresarial típica do contribuinte. Nos termos do acórdão dos embargos de declaração, disponibilizado em 15 de setembro de 2023, “a constituição das reservas técnicas não é atividade própria do objeto social das seguradoras, a que correspondesse alguma contraprestação do Estado ou dos segurados, mas condição de exercício regular de suas atividades típicas”.

Tributação das reservas técnicas

A decisão proferida nos autos do RE n° 400.479/RJ não ocorreu a partir da sistemática da repercussão geral. Além disso, o caso concreto tratou exclusivamente dos prêmios, o que contribui para a referência à tributação das reservas técnicas, apesar de extensa e fundamentada, ser considerada um obiter dictum, sem eficácia vinculante. De todo modo, trata-se de eloquente indicativo sobre o entendimento do STF acerca da matéria, que não pode ser ignorado, sob pena de aumentar a insegurança jurídica e a manutenção de contencioso tributário desnecessário.

Inclusive, não demorou para que o STF demonstrasse a força do seu entendimento “informal” com relação à tributação das receitas decorrentes de reservas técnicas. Em fevereiro de 2024, foi julgada procedente a reclamação constitucional n° 65.301/SP, que cassou decisão do TRF-3, que havia negado seguimento a recurso extraordinário interposto por empresa seguradora. A decisão contrária à admissão do recurso afirmou que o acórdão recorrido estava em conformidade com o Tema n° 372 da Repercussão Geral.

Neste precedente, o STF autorizou a inclusão das receitas financeiras auferidas por instituições financeiras nas bases de cálculo do PIS e da Cofins. Como as seguradoras são equiparadas às instituições financeiras, não seria possível excluir da tributação os rendimentos auferidos em aplicações destinadas à constituição de reservas técnicas.

Ao analisar a reclamação, o STF considerou indevida a aplicação do Tema n° 372 da repercussão geral. De acordo com a Corte, a tese fixada neste precedente está limitada às instituições financeiras e não pode implicar inclusão das receitas financeiras de reservas técnicas nas bases de cálculo do PIS e da Cofins das empresas seguradoras. A incidência das contribuições deve considerar a realidade operacional de cada uma dessas empresas, que não se confundem.

É interessante notar que a recente decisão da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) [1], favorável à incidência do PIS e Cofins sobre as receitas decorrentes de reservas técnicas, utilizou o Tema n° 372 como fundamento para justificar a tributação. Não é exagero afirmar que esta decisão, proferida no final de 2023, “envelheceu mal”, já que o próprio STF afastou a possibilidade de a referida tese servir de fundamento para tributação das reservas técnicas das seguradoras.

Os votos apresentados no RE n° 400.479/RJ, bem como a decisão proferida na reclamação constitucional n° 65.301/SP, não são novidades para quem conhece a tradicional jurisprudência do STF sobre conceito de receita para fins tributários. No julgamento do RE n° 606.107/RG [2], realizado sob a sistemática da repercussão geral, a Corte fixou o entendimento de que, “sob o específico prisma constitucional, receita bruta pode ser definida como o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”.

Os rendimentos decorrentes das aplicações debatidas neste artigo são, por natureza, destituídos de autonomia e liberdade. São, como visto, destinados ao atendimento de exigências regulatórias e não podem ser livremente usufruídos pelo contribuinte. Esses valores não atendem, portanto, a todos os elementos necessários para caracterizar receita tributável, nos termos do tradicional entendimento do STF.

Estas constatações são importantes, pois, como visto, o artigo 219, inciso I, alínea ‘b)’, do Projeto de Lei Complementar n° 68/2024 classifica os valores das reservas técnicas como receita dos serviços das seguradoras de saúde, operadoras de planos de assistência à saúde e entidades de previdência complementar registradas na ANS. Além disso, os comentários que acompanham o referido projeto afirmam que a base de cálculo escolhida visa capturar “o valor adicionado da atividade”.

O IBS e a CBS não se confundem, evidentemente, com o PIS e Cofins. Mas no que interessa às empresas de planos de assistência à saúde, há inequívoca proximidade entre faturamento, que contempla as atividades típicas da empresa e é base de cálculo dos tributos que serão extintos, e “receitas dos serviços”, expressão contida no referido artigo 219 e eleita como base de cálculo para o novo regramento tributário para essas empresas.

Este fato exige a aplicação do entendimento histórico do STF acerca do conceito de receita no direito tributário. Os reiterados posicionamentos da Suprema Corte rejeitam a possibilidade de os valores obtidos a partir de reservas técnicas serem considerados receitas dos serviços prestados pelas empresas que cumprem este dever legal. Por consequência, tampouco esses valores podem refletir o valor adicionado da operação, pois esses valores não decorrem de contraprestação entregue por uma parte contratante (cliente). Não há qualquer ato de consumo.

Espera-se que o Congresso corrija este equívoco, para que o novo sistema tributário não replique velhas discussões, sobretudo quando suficientemente analisadas pelo intérprete autêntico da Constituição.

 


[1] STJ, REsp n° 2052215/SP, Min. Rel. Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe de 11/12/2023.

[2] STF, RE n° 606.107/RS, Min. Rel. Rosa Weber, Plenário, 22/05/2013.

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