Opinião

Obrigações acessórias e o princípio da legalidade em sentido estrito

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15 de maio de 2024, 18h29

O Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, é o diploma normativo que veicula as normas gerais da matéria tributária no Estado brasileiro. Embora não tenha sido, originalmente, confeccionado respeitando o procedimento da lei complementar, concretiza o mandamento constitucional insculpido no artigo 146, III, da Constituição, uma vez que foi recepcionado como lei complementar. Nele, dentre outras temáticas atinentes ao tema tributário, visualiza-se a disposição referente às obrigações tributárias. Esta que se transcreve a seguir:

“Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

1º. A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

2º. A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interêsse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

3º. A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.”

O supracitado dispositivo, ao tratar das obrigações, expressa uma classificação dúplice. A obrigação tributária será principal ou acessória. A primeira se refere à obrigação de dar pecúnia ao Estado, consubstanciando o objeto principal, já que o fim precípuo da existência de tributação é arrecadar receitas ao Estado.

A segunda, obrigações acessórias, refere-se a obrigações de fazer (prestação positiva) ou não fazer (prestação negativa), de natureza instrumental para a realização da primeira obrigação, a principal. Posto que, conforme o enunciado legislativo elencado, está finalisticamente vinculada à arrecadação e fiscalização dos tributos.

Este tema é objeto de divergência interpretativa, no tocante à obrigação acessória, a respeito de qual seria o veículo normativo adequado a introdução, no ordenamento jurídico, de tal obrigação. Posto que alguns acreditam ser possível a imposição de obrigações acessórias por meio de fonte normativa infralegal. Porém, tal visão não merece prosperar, como será demonstrado a seguir.

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Estado de Direito

Em primeiro lugar, é importante ressaltar o conceito de Estado democrático de Direito. Este está expressamente previsto no artigo 1º, caput, da CRFB/88. Seu conceito revela a existência de uma organização político-jurídica baseada na lei, cujo poder irá emanar exclusivamente desta, diretamente, a partir da manifestação do próprio Poder Legislativo, ou indiretamente, a partir dos demais Poderes, o Executivo e o Judiciário. Podendo se extrair de tal conceito a preocupação com a vontade geral, que será expressa democraticamente no poder que exerce tipicamente a capacidade legiferante, posto que formado pelos reais titulares do poder, o povo, em conformidade com o artigo 1º, § único, da CRFB/88.

A partir do postulado do império da lei, o Estado de Direito, é possível inferir, inicialmente, que qualquer obrigação deveria advir de uma lei. Já que vivemos sob uma fórmula de Estado em que o que impera, acima da vontade de qualquer homem, é a vontade da lei, capaz de expressar a vontade geral. O que se harmoniza com a disposição do artigo 5º, II, CRFB/88, que enuncia “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, mandamento protetor da liberdade dos jurisdicionados.

Separação dos Poderes

Em segundo lugar, é importante se referir ao princípio da separação dos Poderes, insculpido no artigo 2º da CRFB/88. Norma que revela a independência e harmonia dos três Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. A respeito da criação de obrigações, é inequívoco que a atividade legislativa é essencial, conforme as razões expostas acima. E quem tem poder para exercê-la é o Poder Legislativo. A sua função típica é a de elaborar leis. Embora os outros também exerçam o poder legislativo, mas de forma atípica, não o fazem da forma que o poder legítimo a exercê-lo, em toda a sua extensão e completude, fá-lo-á.

Neste ponto, é preciso explicitar a diferença do poder legiferante típico e o atípico. O primeiro, típico é expressão da vontade geral, segundo o artigo 1º, § único, da CRFB/88. De modo que é capaz de interferir na liberdade civil. Ou seja, pode inovar na ordem jurídica, criando obrigações, já que, por falar pelo povo, é o povo que obriga a si mesmo. Não há uma quebra da autonomia dos jurisdicionados, quando a sua própria voz lhes impõe obrigações. Ao contrário de uma obrigação heterônoma, cujo locutor da ordem é um terceiro. Caso em que se suprime a autonomia e a liberdade civil, violando a dignidade do povo.

O segundo, atípico, está diretamente relacionado à independência dos poderes, conforme o art. 2º da CRFB. É um poder de legislar que tem o fim de possibilitar a criação dos meios, os instrumentos, de resolução e atendimento das necessidades de cada poder, sem que outro tenha que interferir na sua organização interna. No tocando ao poder legiferante exercido pelo Poder Executivo, ser-lhe-á possível, regulamentando uma lei, estabelecer os modos de realizar um direito abstratamente previsto, criando pontes entre o mundo das ideias e o mundo dos fatos. Ou, também, organizar seu pessoal, realizar concursos e suprir suas necessidades mediante licitação. Do mesmo modo, conduzir-se-á o Poder Judiciário.

Dessarte, o poder de legislar atípico é uma ferramenta da independência entre os poderes, não uma expansão da capacidade de criação de leis. Pois a vontade geral não será expressa se as diferenças, próprias do debate, não a moldar. Será, de outro modo, uma vontade particular, que, inclusive, poderá carecer de imparcialidade. Neste ponto, não poderia me expressão melhor do que uma eminente passagem do ilustre Rousseau [1], dissertando sobre o poder legislativo, diz que “é uma função particular e superior”, a legislativa, “que nada tem de comum com o império humano, pois se aquele comanda os homens não deve comandar as leis, aquele que comanda as leis não deve, tampouco, comandar os homens”.

A necessidade de lei

Assim, voltando a questão das obrigações tributárias acessórias, é evidente, a partir do Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade e a separação dos poderes, que uma obrigação acessória não poderia ser introduzida por uma fonte infralegal. Deve ser, por outro lado, expressão do poder que tipicamente e legitimamente pode exercê-lo, o Poder Legislativo.

Neste sentido, o artigo 97 do CTN, embora reúna várias fontes normativas, capazes de tratar do tema tributário, precisa ser lido conforme a Constituição, para que cada instrumento legislativo ali elencado seja utilizado na medida das suas forças efetivas. Ou seja, não é possível criar uma obrigação por meio de um decreto, pois, neste caso, não há manifestação da vontade geral e não é expressão do poder legislativo típico. É um ato de vontade particular, que carece do debate e capacidade de lapidação dos interesses parciais em imparciais. Não se forma a vontade geral sem se ouvir uma multiplicidade de vozes, pois esta não se confunde com a vontade da maioria. E esta última, por sua vez, não se conforma com o ideal democrático.

Ademais, deve ser considerado que o artigo 97, V, do CTN, é claro em determinar a necessidade de lei, entendida como lei em sentido estrito, para “a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas”. Nisso se insere as obrigações acessórias. E, diante da lógica estrutural de uma norma sancionadora, na qual o antecedente dispõe da prescrição de uma conduta imperativamente vinculada, e o consequente dispõe sobre a penalidade que sua inobservância resultará, não é possível introduzir no ordenamento jurídico as obrigação acessórias, senão por meio de lei em sentido estrito.

Portanto, embora a legislação tributária seja composta por um universo amplo de instrumentos normativos, é necessário analisar a capacidade de veiculação de cada um deles. O que deve ser realizado por meio de uma leitura conforme a constituição, capaz de revelar o limite das forças normativas de cada instrumento normativo. E, assim, concluindo-se pela necessidade inafastável de veiculação normativa, das obrigações acessórias, exclusivamente por meio de lei em sentido estrito.

 


[1] ROUSSEAU; Jean-jaques. O contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Edipro. 2020.

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