Opinião

O poder regulatório e a teoria geral do abuso de direito

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15 de maio de 2024, 17h28

A Lei nº 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica) surgiu como resposta aos excessos regulatórios e aos entraves burocráticos que têm marcado o Brasil. Uma de suas principais inovações foi a introdução da figura do abuso de poder regulatório, exemplificada em nove hipóteses normativas dispostas no artigo 4º da LLE. A intenção do legislador foi criar limites à ação do Estado no exercício do poder regulatório, a fim de abalizar a sua atuação e proteger os administrados de eventuais excessos.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Nas palavras do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede doutrinária, “o legislador, ao criar limites à ação do Estado, teve em mira condicionar a parâmetros de racionalidade a edição de normas que, sob justificativas técnicas de proteção do consumidor, prestem-se a criar obstáculos à livre iniciativa e à livre concorrência”. [1]

O poder regulatório encontra raízes no artigo 174, da Constituição, que aduz o direito de o Estado intervir no domínio econômico, restringindo, condicionando ou controlando o exercício de atividades econômicas pelos particulares, visando a atingir os objetivos constitucionais da República. Sobre o conceito de poder regulatório, Floriano de Azevedo Marques Neto aduz que:

O conceito de poder regulatório, é certo, vai além da mera capacidade normativa. Isso por força do próprio art. 174 da CF que em seu texto deixa clara a distinção entre as funções de agente normativo (rectius, capacidade normativa legal e infra-legal) e regulador. Donde se extrai que regular engloba, sem se limitar, as funções próprias ao chamado poder de polícia, atos de liberação de atividades (licenças, alvarás, permissões, autorizações em geral), prerrogativas de fiscalização e de aplicar sanções, poderes adjudicatórios, de coordenação e supervisão, além da capacidade de fixar condições e parâmetros para o exercício de atividades pelos particulares. [2]

Considerando o poder regulatório como o direito de o Estado intervir na ordem econômica, o presente artigo propõe breves reflexões acerca da figura do abuso do poder regulatório à luz da teoria geral do abuso de direito, o que pode contribuir para a compreensão dessa nova figura trazida pela LLE.

Teoria do abuso de direito

A teoria do abuso de direto, em sua gênese, tem como base um conjunto de decisões judiciais dos tribunais franceses, no período entre meados do século 19 e o início do século 20, por meio das quais se buscou atribuir limites ao exercício do direito subjetivo por seu titular. [3]

Uma decisão notável envolveu a construção de uma chaminé por um proprietário de um terreno com a intensão emulativa de apenas criar sombra sobre um terreno adjacente, tendo a corte francesa determinado a sua demolição. [4]

Em outra ocasião, no caso Clement Bayard, decidido pela Corte de Amiens em 1912, analisou a conduta de um proprietário de terra vizinho a um campo de pouso de dirigíveis, que construiu uma estrutura de torres com extremidades pontiagudas de ferro, colocando em risco a circulação dos dirigíveis, tendo a Corte de Cassação reconhecido que o titular da propriedade agia de forma abusiva, responsabilizando-o por sua conduta.[5]

Em todos esses casos, é possível observar a presença de elementos típicos dos atos emulativos, ou seja, atos que visam a prejudicar terceiros sem benefício para o titular do direito. Todavia, ao longo do tempo, a teoria do abuso de direito se desenvolveu cedendo a ótica subjetiva do abuso de direito — baseada no predomínio da vontade do titular do direito — para adotar uma ótica finalista focada na legitimidade da existência do próprio direito. Assim, passou-se a considerar ilegítimo o exercício de um direito que deixe de observar a sua finalidade econômica e social, bem como os deveres impostos pela boa-fé objetiva e bons costumes. [6]

Spacca

Nessa lógica, ao tratar da concepção de ato abusivo, o Código Civil brasileiro, inspirado na codificação portuguesa, dispôs em seu artigo 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Perceba-se que o legislador, ao tratar sobre o tema, optou por criar uma ampla cláusula geral de controle de legitimidade do exercício de situações jurídicas subjetivas. [7]

Sob essa ótica, tem-se fundamental à figura do abuso de direito a contrariedade ao fundamento do próprio direito exercido. O abuso de direito possui uma aparência formal de regularidade, mas contradiz ou deixa de observar os valores que o ordenamento pretende realizar.

Ato abusivo vs. ato ilícito

Um olhar superficial sobre o artigo 187 pode ensejar a equivocada conclusão de que o abuso de direito não seria um instituto autônomo, mas, sim, vinculado ao conceito de ato ilícito, previsto no artigo 186, do Código Civil. Contudo, enquanto no ato ilícito há uma violação direta de um comando legal que supera os limites lógico-formais do direito, no ato abusivo há uma violação aos valores que o ordenamento busca alcançar com determinado direito. [8]

A associação do abuso de direito à teoria dos atos ilícitos vincularia, equivocadamente, esse instituto à prova da culpa na atuação do agente. Todavia, a caracterização de um ato como abusivo prescinde da demonstração de culpa, devendo ser analisada de forma objetiva. Ou seja, basta a análise de conformidade aos valores do ordenamento jurídico que justificam a existência daquele direito exercido.

Conforme explicitam Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva, “ao se referir a ato ilícito no artigo 187, aludiu o legislador à ilicitude lato sensu, isto é, à antijuridicidade que não se confunde com o ato ilícito stricto sensu, previsto no artigo 186 do Código Civil. [9] Assim, concluem os autores que “o ato praticado em abuso do direito não se confunde com o ato ilícito, já que o comportamento do titular do ato abusivo se encontra formalmente autorizado pela ordem jurídica, desvirtuando-se, contudo, ao contrariar a finalidade econômica e social almejada pelo legislador, a boa-fé objetiva ou os bons costumes. [10]

Portanto, os atos abusivos (artigo 187) estão enquadrados na categoria dos atos antijurídicos, incluídos no gênero dos fatos ilícitos lato sensu, assim como o tradicional ato ilícito (artigo 186). Abaixo, representação gráfica elaborada por Anderson Schreiber: [11]

 

Abuso do poder regulatório à luz do abuso de direito

A teoria geral do abuso de direito, com origem na doutrina civilista, é base para outras abordagens dogmáticas de valorações concretas de abuso. Para se dar um exemplo, em tese de doutorado, Fábio Carvalho de Alvarenga Peixoto tratou da “transposição” da noção civilista ao abuso de direitos fundamentais, dispondo que “o abuso de direitos fundamentais é uma extensão, à teoria jusfundamental, das doutrinas civilistas de abuso”. [12]  Ao ser estendida à teoria do abuso de poder regulatório, a noção civilista aduz uma dogmática de limites e efeitos.

O artigo 4º, da LLE, impõe um dever à administração pública de coibir o abuso do poder regulatório, que, como visto, seria o agir em “contrariedade ao fundamento axiológico-normativo do direito exercido”, [13] excedendo a sua finalidade econômica ou social, ou então, os limites impostos pela boa-fé objetiva e os bons costumes. Houve, portanto, a imposição de limites à ação do Estado. [14] Essa linha está em consonância com a doutrina administrativista, como ensina José Vicente Santos de Mendonça:

“No tema do abuso de poder e de sua espécie mais célebre – o desvio de poder -, a literatura tradicional de Direito Administrativo costuma destacar as seguintes afirmações: (i) o administrador se vincula à finalidade indicada pela lei, (ii) tal finalidade pode ser identificada, talvez até de modo objetivo, (iii) o ato administrativo não pode ir contra a finalidade da lei, nem na aparência nem na essência, sendo, caso isso ocorra, inválido, (iv) mesmo o ato administrativo que atende a finalidade pública, mas distinta da indicada na norma que atribui competência para sua prática, é inválido. [15]

Tendo como base a amplitude do conceito de ato abusivo, as hipóteses de abuso contidas nos incisos do artigo 4º, da LLE, podem ser consideradas exemplos que “presumidamente, caracterizam abuso de poder regulatório a ser coibido pela Administração”. [16]

Sob outro viés, não há limites a situações que eventualmente podem ser enquadradas como abuso do poder regulatório. [17] Todavia, as valorações concretas das situações de abuso devem ser realizadas com parcimônia e cautela ante o risco de se declarar abusivo um ato administrativo que, pela interpretação em abstrato do ordenamento jurídico, deveria ser considerado regular.

Na mesma linha da noção civilista, o abuso do poder regulatório ocorre quando o Estado excede seu direito de intervenção no domínio econômico em função da violação dos fundamentos do próprio direito, o que o torna um ato antijurídico (ilicitude lato sensu). [18]

Por fim, vale um apontamento à exceção contida no caput do artigo 4º da LLE, que excetua o abuso do poder regulatório às situações em que o exercício desse poder se dê “no estrito cumprimento de previsão explícita em lei”. Tal exceção, contudo, é desnecessária.

O exercício do poder regulatório subordina-se aos limites objetivos fixados na Lei, diante da primazia do princípio da legalidade. Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual “em última análise, todo e qualquer ato emanado de órgão ou entidades da administração pública está sujeito ao princípio da legalidade, inscrito no art. 37, caput, da Constituição da República” (STF, ADI 4.874, relatora ministra Rosa Weber, DJe 1º/2/2019, destacado).

Assim sendo, é evidente que o poder regulatório deve ser exercido em observância e cumprimento à lei. Isso não se discute. [19] E aqui, mais uma vez, vale frisar a diferença entre ato ilícito e ato abusivo, já que o primeiro indica uma violação direta a um comando legal e o segundo aos valores e finalidades que o ordenamento jurídico busca alcançar com determinado direito.

 


[1] In Abuso de poder regulatório. Coord. Amanda Flávio de Oliveira, Maria João Rolim. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Synergia, 2021, prefácio.

[2] MARQUE NETO, Floriano de Azevedo. Abuso de Poder Regulatório: algo prático na Lei de Liberdade Econômica. In Advocacia Hj. Nº 3, 2020, p. 9.

[3]A noção de abuso do direito tem origem eminentemente jurisprudencial. Não contemplada pelo Código Napoleão, a categoria do abuso surge, ao menos em sua versão moderna, como uma criação dos tribunais franceses, para impedir os resultados iníquos derivados do exercício de direitos subjetivos, aos quais a dogmática liberal havia dado um caráter absoluto. Em sua concepção original, o ato abusivo identificava-se com o ato emulativo, ou seja, aquele praticado com o exclusivo intuito de causar dano a outrem”. SCHREIBER, Anderson. Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Ed. Saraiva.  5ª.ed., p.83

[4] Cour de Colmar, May 2, 1855, Arrêt du 2 mai 1855. Jurisprudence générale du royaume en matière civile, commerciale et criminelle 1er cahier, 2e partie (1856): 9–10 (Fr.)

[5] Cass., Aug. 3, 1915, Arrêt du 3 août 1915, Dalloz. Jurisprudence générale: Recueil Périodique et critique de jurisprudence, de législation et de doctrine en matière civile, commerciale, criminelle, administrative et de droit publique 1re partie (1917): 79 (Fr.).

[6] Cfr.: PEIXOTO, Fábio Carvalho de Alvarenga. Ainda precisamos falar sobre o abuso de direito. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2023-dez-04/direito-civil-atual-ainda-precisamos-falar-sobre-o-abuso-de-direito-parte-1/#sdendnote5sym > (acesso em 26/2/2024).

[7] SCHREIBER, Anderson. Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Ed. Saraiva.  5ª.Ed. p.84.

[8] Como bem ensina Anderson Schreiber: “A associação entre as duas situações, tão distintas entre si, ainda que seja possível remetê-las a uma ilicitude lato sensu, contrariou a tradição nacional, prestando desserviço à identificação bem mais sutil dos atos que se fundam em direitos reconhecidos, mas violam seu embasamento axiológico e finalístico. De ato ilícito em sentido técnico, portanto, não cuida o art. 187 do Código Civil”. SCHREIBER, Anderson. Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Ed. Saraiva.  5ª.ed., p. 85.

[9] TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena D. Fundamentos de Direito Civil: Teoria Geral do Direito Civil. v.1. Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559647842, p. 394. Grifos não estão no original.

[10] Ibid.

[11] SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p.85.

[12] PEIXOTO, Fábio Carvalho de Alvarenga. Racionalização dos parâmetros de identificação do abuso de direitos fundamentais como forma de controle de sua utilização na prática jurisprudencial brasileira. 2022. p. 327 Disponível em: <https://uol.unifor.br/auth-sophia/exibicao/27729> (acesso em 26/2/2024).

[13] SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 85ss.

[14] Segundo entendimento do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: “Não se trata de enfraquecer a ação regulatória do Estado, nem de comprometer o bom desempenho das competências normativas previstas na Constituição. Não se trata, tampouco, de acabar com a presunção de boa-fé do Estado, mas apenas de relativizá-la, deslocando o ônus argumentativo para o ente estatal que pretenda editar normas regulatórias. Nesse sentido, a inovação pode ser compreendida como uma agenda pró-competitiva, fundada na racionalidade econômica, que deve presidir a metarregulação a ser convenientemente exercida no futuro”. In Abuso de poder regulatório. Coord. Amanda Flávio de Oliveira, Maria João Rolim. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Synergia, 2021, prefácio.

[15] MENDONÇA, José Vicente Santos de. In Comentários a Lei de Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019 [livro eletrônico] / coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otavio Luiz Rodrigues Júnior, Rodrigo Xavier Leonardo. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

[16] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Abuso de Poder Regulatório: algo prático na Lei de Liberdade Econômica. In Advocacia Hj. Nº 3, 2020, p. 10.

[17] Em sentido contrário: MENDONÇA, José Vicente Santos de. In Comentários a Lei de Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019 [livro eletrônico] / coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otavio Luiz Rodrigues Júnior, Rodrigo Xavier Leonardo. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

[18] O abuso do poder regulatório não há de ser classificado como um ato ilícito (stricto sensu).

[19] Sobre o tema, Floriano de Azevedo Marques Neto aduz que tal disposição “parece ser um tanto desnecessário, pois se há previsão legal explícita, ou bem ela é abusiva a ponto de se tornar inconstitucional ou ela é determinante para a Administração, descabendo se falar de margem regulamentar ou de ação concreta na qual se vá coibir o abuso”. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Abuso de Poder Regulatório: algo prático na Lei de Liberdade Econômica. In Advocacia Hj. Nº 3, 2020, p. 9.

Autores

  • é advogado do escritório Rolim, Goulart, Cardoso Advogados, mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e especialista em corporate governance pela mesma instituição.

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