Opinião

Tragédias climáticas, proteção ambiental e responsabilidades

Autor

13 de maio de 2024, 19h08

A tragédia do Rio Grande do Sul é o desastre do ano de 2024. Ao menos espera-se que não seja superada por outra pior. Sua proporção até o momento: 447 municípios, com o número de 147 mortos; 129 desaparecidos; mais de 500 mil desalojados e mais de 2 milhões pessoas atingidas.

Spacca

Supera o desastre de 2023, no município de São Sebastião, no litoral paulista, onde morreram 64 pessoas e ficaram desalojadas 1.800. Se as mudanças climáticas não forem levadas a sério, só restará esperar os próximos, e assistir à reedição da catástrofe.

O Painel intergovernamental das Mudanças Climáticas aponta que a combinação dos riscos climáticos pode ultrapassar a capacidade de adaptação e aumentar consideravelmente os danos (IPCC, Synthesis Report of the IPCC Sixth Assessment Report (AR6), 2023 disponível aqui).

Diante desse cenário, muito vem sendo falado e escrito sobre omissões governamentais quanto à prevenção de enchentes e sistemas de alerta, assim como do avanço de pautas anti-ambientais. Assim, é importante compreender-se de que instrumentos efetivamente dispomos para prevenir e enfrentar desastres climáticos, quais ações e omissões vêm agravando a situação e em que medida esse conjunto de instrumentos e leis se encontram defasados diante da ocorrência de eventos extremos cada vez mais frequentes.

O enfrentamento das mudanças climáticas é feito por duas abordagens principais: a mitigação e a adaptação. A primeira volta-se à redução das emissões e absorção de carbono da atmosfera, de modo a limitar o aquecimento da temperatura na Terra ao máximo de 1,5º C a 2º C. A adaptação, por sua vez, volta-se às medidas para que a sociedade se adapte, nos mais diversos setores, aos efeitos das mudanças climáticas.

Exemplos desses setores são a saúde (com aumento das doenças causadas por vetores, como a dengue, por exemplo); a agricultura; os sistemas de recursos hídricos; as cidades e a prevenção de desastres. As duas abordagens se relacionam fortemente, pois quanto mais falharmos na mitigação, maior será a necessidade de adaptação. Ou, pior, o aumento da frequência e intensidade dos desastres podem tornar a adaptação impossível.

PNMC

No Brasil, estabeleceu-se como marco no tema a Política Nacional sobre Mudança do Clima (conhecida por PNMC), criada pela Lei 12.187/2009. Embora tenha criado alguns instrumentos, como o Plano Nacional sobre Mudança do Clima e o Fundo Clima, trata-se de uma lei de caráter programático, insuficientemente regulamentada para o avanço no tratamento dos problemas.

O Plano Nacional, por exemplo nunca foi atualizado conforme determinado pela legislação. Atualmente, a alteração da PNMC encontra-se em processo da discussão por um grupo de trabalho. Daí a conclusão de não se contar, atualmente, com uma lei climática à altura da importância dessa agenda.

No tocante à adaptação, foi aprovado, em 2016, o Plano Nacional de Adaptação, que estabelece ações em 11 setores. Esse plano também se encontra em debate para atualização. Como a catástrofe gaúcha mostrou, o tema da adaptação, que inclui a resposta a desastres, traz à tona graves problemas sociais. A vulnerabilidade, já existente na sociedade, é agravada.

A esse respeito há quem diga que não existem desastres naturais. Desastres seriam frutos de uma construção social que potencializa a exposição aos riscos. Um exemplo disso é a ocupação de áreas de várzea de rios ou de encostas. Numa abordagem social do problema, enfatiza-se o fato de as populações desfavorecidas serem mais expostas a riscos e menos visibilizadas em suas necessidades adaptativas e também no cenário de um desastre.

Embora a afirmação do caráter de construção social dos desastres seja muito pertinente, as mudanças climáticas acentuam e muito os riscos por elas gerados, combinando os aspectos sociais e naturais, potencializando-os.

Marinha do Brasil
Militares da Marinha levam agua potavel para desabrigados municípios de Eldorado do Sul e Guaíba (RS); enchentes no Rio Grande do Sul

A tendência à maior ocorrência de desastres e o aprendizado extraído de muitas tristes experiências pelo mundo — não só em casos climáticos, quanto também nucleares e industriais — fomentou o desenvolvimento de uma nova área, o Direito dos Desastres, o qual tem como objetivo coordenar ações num ciclo: prevenção e mitigação; preparação; resposta e recuperação. Essa última tem que observar a redução de riscos e prevenção da repetição de desastres. Vale dizer, a recuperação tem que ser mais segura que o estado anterior à ocorrência. Esse elemento foi incorporado na legislação brasileira em 2023 (Lei 14.750).

A peça chave da legislação no tema é a Lei 12.608/2012 que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNDEC) aprovada depois que fortes chuvas fizeram centenas de vítimas nas serras do Estado do Rio de Janeiro. Essa lei foi alterada pela Lei 14.750, em dezembro de 2023, quando se estabeleceu um prazo de 18 meses para a elaboração do Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, pelo governo federal. Infelizmente, a emergência climática não aguarda os prazos legais.

Obrigações

Independentemente do plano, a Lei estabelece diversas obrigações aos três entes da Federação. Os municípios ficam na linha de frente das ações para prevenção; preparação e resposta aos desastres. A eles cabe a incorporação de ações de proteção e defesa civil; a identificação e mapeamento de áreas de risco de desastres; sua fiscalização e a realização de intervenção preventiva e evacuação da população das áreas de alto risco e das edificações vulneráveis.

Além disso, os municípios são responsáveis pela disciplina do uso e ocupação do solo, devendo impedir a ocupação de áreas de risco. Assim, há elementos concretos para eventual responsabilização do prefeito de Porto Alegre, e possivelmente daqueles de outros municípios atingidos, como a falta de alocação orçamentária para prevenção de enchentes.

Outros elementos mais amplos, que podem motivar ações judiciais com pedidos específicos, dizem respeito à necessidade de uma reconstrução resiliente a novos desastres, apta a promover uma adaptação sustentável sob o ponto de vista ambiental e social. Uma reconstrução que ignore os riscos ou que agrave problemas ambientais deve ser descartada.

Aos estados incumbe realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, em articulação com a União e os municípios. Nesse sentido, o atraso de várias horas no envio de informações sobre a iminência das chuvas vem sendo apontado como descumprimento de responsabilidade do governador.

À União incumbe a coordenação geral do sistema e a assistência aos demais entes no exercício de suas funções, além da elaboração do referido do Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil. Esse, quando pronto, não fará milagres se for uma peça formal, vale dizer, se não vier acompanhado de previsões de atuação específica; órgãos; dotações orçamentárias; mecanismos de transparência e controle das ações realizadas. Importante, nas três esferas, que a pauta de prevenção e resposta aos desastres seja integrada às outras políticas públicas, como, aliás, determina a Lei 12.608/2012.

Plano de transformação

O Plano de Transformação Ecológica de iniciativa do Ministério da Fazenda, anunciado desde novembro do ano passado e composto por um conjunto de iniciativas novas e em andamento, prevê um eixo de adaptação que inclui obras de prevenção a desastres, a serem financiadas pelo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Espera-se que esse eixo seja priorizado neste momento, mas sem desconsiderar a necessidade de que a reconstrução da infraestrutura afetada seja resiliente a desastres futuros

Por fim, mas de forma alguma menos importante, deve-se entender a forte relação entre a prevenção de desastres, a recuperação resiliente e a legislação ambiental. Em linhas gerais, seus instrumentos preveem a preservação de vegetação e não ocupação de áreas ambientalmente relevantes, as quais são aptas a capturar e manter estoque de carbono favorável à estabilidade do clima e outros serviços ecossistêmicos e a prevenir riscos de enchentes e deslizamentos.

Estabelecem também o licenciamento com a devida análise prévia do impacto de obras e empreendimentos e sua mitigação. Surpreende, assim, o governador do Rio Grande do Sul ter coordenado a alteração de leis ambientais no Estado, reduzindo seu nível protetivo. Não menos grave é tramitação de muitos projetos de lei enfraquecedoras da proteção no Congresso.

Afinal, como podemos nos preocupar com a emergência climática, com o aumento da frequência e impacto de desastres e ainda reduzir a proteção ambiental? O que explica tal dissonância cognitiva entre a consciência dos riscos de desastres e a assunção de comportamentos contrários à sua prevenção? Pensamento de curto prazo? Ideia de que a prevenção não aparece politicamente? Prioridade ainda a uma visão ultrapassada de desenvolvimento, na qual a proteção ambiental é vista como custo e obstáculo?

O enfrentamento desse cenário de longo prazo vai requerer que a sociedade — e os eleitores — sinalizem fortemente seu desejo de políticas de combate às mudanças climáticas e prevenção sustentável de desastres, articuladas a uma efetiva e avançada preservação ambiental.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!