Opinião

Inconstitucionalidade da Lei 14.789: revogação da ficção jurídica instituída pela LC 160/2017

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13 de maio de 2024, 18h36

Como é de conhecimento geral, no apagar das luzes de 2023, o Congresso aprovou a Medida Provisória nº 1.185/2023, convertida na Lei nº 14.789/2023, cujos efeitos vigoram desde 1º de janeiro de 2024. Dentre as alterações promovidas, foi revogado o artigo 30 da Lei nº 12.973/2014, com redação dada pela Lei Complementar nº 160/2017, instituindo novas diretrizes [1] para a tributação das subvenções para investimento por IRPJ e CSLL [2], bem como concessão de crédito fiscal.

A alteração normativa acima mencionada inaugura um novo capítulo na novela sobre a tributação das subvenções para investimento, que é pano de fundo de discussões travadas há décadas pelos contribuintes e o fisco [3]. O objetivo do presente artigo é demonstrar a inconstitucionalidade formal da Lei nº 14.789/2023, no tocante à revogação da ficção jurídica contida nos §§ 4º e 5º do artigo 30 da Lei nº 12.973/2014, com redação dada pela Lei Complementar nº 160/2017 [4], uma vez que se trata de matéria reservada ao legislador complementar.

Historicamente [5][6], a legislação tributária distinguiu as espécies de subvenções [7], cabendo destacar as seguintes categorias: custeio, fixando sua tributação; e investimento, inclusive decorrentes de isenção ou redução de impostos, concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos, que não deveriam ser computadas na apuração do lucro real, desde que observados requisitos.

A Lei Complementar nº 160/2017 inseriu os §§ 4º e 5º no artigo 30 da Lei nº 12.973/2014, instituindo ficção jurídica ao determinar que os benefícios fiscais de ICMS são considerados subvenções para investimento [8] e vedar a exigência de outros requisitos não previstos no referido dispositivo[9], com o desiderato de reduzir litígios [10].

De acordo com a exposição de motivos do Projeto de Lei Complementar nº 54/2015, que resultou na Lei Complementar n] 160/2017, a citada ficção jurídica buscou pacificar o contencioso sobre o tema, deixando claro que os benefícios fiscais de ICMS são subvenções para investimento, quando observados determinados requisitos, a fim de impedir que tais valores sejam ofertados à tributação por IRPJ e CSLL [11].

Para espanto geral, a ficção jurídica instituída pelo legislador complementar foi objeto de veto presencial, sob o entendimento de que tais alterações poderiam causar distorções tributárias ao equiparar as subvenções para custeio às subvenções para investimento [12]. O Congresso rejeitou essas razões, derrubando o veto presencial, porquanto houve amplo debate em âmbito legislativo à época.

Spacca

A Receita Federal já reconheceu a ficção jurídica mencionada nas linhas acima, assentando que a Lei Complementar nº 160/2017 classificou todos os benefícios fiscais de ICMS como subvenções para investimento [13]. O posicionamento fazendário foi rapidamente alterado, restando mantido o raciocínio de que a citada ficção jurídica é aplicável aos casos em que houver contrapartida [14].

Ficção jurídica

No Tema Repetitivo 1.182, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a ficção jurídica criada pelo legislador complementar, autorizando a exclusão dos benefícios fiscais de ICMS da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, quando atendidos os requisitos previstos no artigo 30 da Lei nº 12.973/2014 com redação dada pela Lei Complementar nº 160/2017, exceto quanto aos créditos presumidos do imposto estadual, que, nessa linha hermenêutica, não possuem requisitos ou condições para a não incidência dos citados tributos federais.

A interpretação teleológica, portanto, permite concluir que a Lei Complementar nº 160/2017 exerceu a competência outorgada pelos incisos I e II do artigo 146 da Constituição em relação à inclusão dos §§ 4º e 5º no artigo 30 da Lei nº 12.973/2014.

Isso porque, ao equiparar os benefícios fiscais de ICMS às subvenções para investimento, quando atendidos os requisitos previstos no artigo 30 da Lei nº 12.973/2014, com redação pela Lei Complementar nº 160/2017, o legislador complementar pretendeu: encerrar conflito de competência consubstanciado na guerra fiscal vertical, travada entre a União e os estados e o Distrito Federal, acerca da incidência de IRPJ e CSLL sobre as subvenções fiscais; e estabelecer os limites da imunidade recíproca, autorizando a dedução dos valores relativos aos benefícios fiscais de ICMS na apuração do lucro real, sob condições específicas.

O professor Scaff, assim, é categórico ao reconhecer que a Lei Complementar nº 160/2017 buscou pacificar a guerra fiscal vertical entre os estados e o Distrito Federal e a União ao instituir a ficção jurídica que equiparou duas espécies de subvenções econômicas [15], quais sejam custeio e investimento.

De sua parte, Malpighi conclui que a Lei Complementar nº 160/2017 estabeleceu os limites da imunidade recíproca, quando alterou o artigo 30 da Lei nº 12.973/2014, na medida em que afastou a incidência de IRPJ e CSLL sobre todos os benefícios fiscais de ICMS, eliminando a distinção entre subvenção para investimento e custeio [16].

Sendo assim, trata-se de lei materialmente complementar, ou seja, a Lei Complementar nº 160/2017 não versou sobre matéria que poderia ser disciplinada por lei ordinária. É isso o que se espera do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.551, cuja medida cautelar ainda não foi apreciada, visto que não se discute a inconstitucionalidade formal da revogação do artigo 30 da Lei nº 12.973/2014 na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.604.

Diante disso, em atenção à competência constitucionalmente outorgada ao legislador complementar, a Lei nº 14.789/2023 não poderia ter revogado a ficção jurídica contida nos §§ 4º e 5º do artigo 30 da Lei nº 12.973/2014, com redação dada pela Lei Complementar nº 160/2017. Daí por que as novas regras de subvenções para investimento padecem de inconstitucionalidade formal em relação ao IRPJ e à CSLL.

 


[1] SCAFF, Fernando Facury. Subvenções para investimento recebem tratamento surreal na Lei 14.789/23 (conjur.com.br).

[2] A despeito de fugir do escopo limitado do presente texto, convém destacar que também houve revogação dos dispositivos que determinavam a não incidência de PIS e Cofins sobre as subvenções para investimento, inclusive mediante isenção e redução de impostos concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.

[3] HOLANDA, Rodrigo Schwartz. A MP n. 1.885/2023 e a saga do contribuinte brasileiro na tributação do IRPJ/CSLL sobre as subvenções de ICMS: a União contra-ataca. In: Revista de Direito Contábil Fiscal. Volume 5. Edição 10. São Paulo: MP Editora, 2023. Associação Paulista de Estudos Tributários.

[4] Os demais aspectos controversos da Lei n. 14.789/2023 não serão abordados neste artigo em razão de seu escopo limitado.

[5] PEDREIRA, Bulhões. Imposto sobre a Renda – Pessoas Jurídicas. Volume II. Rio de Janeiro: Justec-Editora, 1979. P. 685.

[6] SCHOUERI, Luís Eduardo. GALENDI JÚNIOR, Ricardo André. A classificação das subvenções: origens históricas de um problema contemporâneo. In: Subvenções fiscais: aspectos jurídicos-tributários e contábeis. 1ª Ed. São Paulo: MP Editora, 2023.

[7] A Lei n. 4.320/1964 (arts. 12, 13 e 18) e o Decreto n. 93.872/1986 (arts. 58 a 66) classificaram as subvenções como sociais ou econômicas. A Lei n. 4.506/1964 (art. 44, IV) fixou que as subvenções para custeio integram a receita bruta. A Lei n. 6.404/1976 (art. 182) determinava a classificação das subvenções para investimento como reserva de capital. A redação original do Decreto-Lei n. 1.598/2977 (art. 38, §2º) estabelecia que as subvenções para investimento, inclusive mediante isenção ou redução de impostos concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos, e as doações feitas pelo Poder Público, não deveriam ser computadas na determinação do lucro real, desde que houvesse registro como reserva de capital, a qual somente poderia ser utilizada para absorver prejuízos ou incorporação ao capital social. A Lei n. 11.638/2007 incluiu o art. 195-A na Lei n. 6.404/1976, passando a exigir o trânsito das subvenções para investimento e doações pelo resultado do período e a contabilização em reserva de incentivos fiscais. A Lei n. 11.941/2009 (art. 18), que instituiu o Regime Tributário de Transição (RTT), dispôs de modo semelhante. O art. 30 da Lei n. 12.973/2014 estabeleceu que as subvenções para investimento, inclusive mediante isenção ou redução de impostos, concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos e as doações feitas pelo poder público não serão computadas na determinação do lucro real, desde que seja registrada em reserva de lucros a que se refere o art. 195-A da Lei n. 6.404/1976, que somente poderia ser utilizada para aumento de capital social e absorção de prejuízos, desde que já tenha sido totalmente absorvidas as demais reservas de lucros, exceto a reserva legal. As alterações posteriores serão tratadas no texto.

[8] PINTO, Alexandro Evaristo. As idas e vindas da contabilização e tributação das subvenções. In: Subvenções fiscais: aspectos jurídicos-tributários e contábeis. 1ª Ed. 2023. São Paulo: MP, 2023. P. 48/49.

[9] LEÃO, Martha. ALHO NETO, João. Subvenção para investimento: a interpretação do art. 30, §4º, da lei n. 12.973/2014, incluído pela lei complementar n. 160/2017. In: Subvenções fiscais: aspectos jurídicos-tributários e contábeis. 1ª Ed. São Paulo: MP, 2023. P. 626/632.

[10] BEVILAQUA, Lucas. CECCONELLO, Vanessa Marini. Incentivos Fiscais de ICMS e Subvenções para Investimento: Tratamento após a Edição da Lei Complementar nº 160/2017. In: Revista de Direito Tributário Atual nº 41. P. 255/261.

[11] A referida exposição de motivos assim fixou: “os incentivos e benefícios fiscais de ICMS recebidos pelas pessoas jurídicas, desde que esses valores sejam mantidos em conta de reserva no Patrimônio Líquido, são subvenções para investimentos, sobre eles não incidindo, por consequência, IRPJ e CSLL. Impede-se, com isso, que a Secretaria da Receita Federal do Brasil continue a autuar as empresas beneficiárias de incentivos do ICMS com base em intepretações jurídicas equivocadas, reforçando a segurança jurídica e garantindo a viabilidade econômica dos empreendimentos realizados”.

[12] As razões do citado veto presencial estabeleceram que: “Os dispositivos violam o disposto no artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), incluído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016 (‘Novo Regime Fiscal’), por não apresentarem o impacto orçamentário e financeiro decorrente da renúncia fiscal. Ademais, no mérito, causam distorções tributárias, ao equiparar as subvenções meramente para custeio às para investimento, desfigurando seu intento inicial, de elevar o investimento econômico, além de representar significativo impacto na arrecadação tributária federal. Por fim, poderia ocorrer resultado inverso ao pretendido pelo projeto, agravando e estimulando a chamada ‘guerra fiscal’ entre os Estados, ao invés de mitigá-la.”

[13] Solução de Consulta Cosit n. 11, de 11 de março de 2020.

[14] Solução de Consulta Cosit n. 145, de 15 de dezembro de 2020.

[15]SCAFF, Fernando Facury. Tributação das subvenções, pacto federativo e guerra fiscal vertical (conjur.com.br).

[16] MALPIGHI, Caio Cezar Soares. A Lei Complementar n. 160, de 2017, como Norma Regulamentadora da Imunidade Recíproca sobre o Aproveitamento de Benefícios Fiscais Estaduais. In: Revista de Direito Tributário Atual n. 41. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário. P. 129.

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