Opinião

Projeto de Lei nº 2.796/21: e as nossas crianças?

Autores

  • Julio Massi
  • Daniel Becker

    é sócio do BBL Advogados diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ e organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind vol. 2Regulação 4.0 vol. I e II e Litigation 4.0.

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3 de maio de 2024, 9h23

O participante pode escolher o lado do crime: virar bandido para defender a favela sob seu domínio. Quanto mais PMs matar, mais pontos. A trilha sonora é um funk proibido.” (Procon do Estado de Goiás, em 2002, no pedido de proibição de vendas de Counter-Strike)

Uma escola formadora de Bin Ladens” (Siro Darlan, então juiz da 1ª Vara da Infância e da Juventude em 2002)

Não tem jogo, não tem game falando de amor. Não tem game falando de educação. É game ensinando a molecada a matar. (…) É só pegar o jogo da molecada, o meu filho, o filho de cada um de vocês. O meu neto, o neto de cada um de vocês (…) Eu duvido que tenha um moleque de 8, 9, 10, 12 anos que não esteja habituado a passar grande parte do tempo jogando essas porcarias (…) Hoje a molecada joga com gente de outro país, passam noites jogando, e tudo isso resulta nessa violência no meio de crianças” (Lula, 2024).

Em 2001, logo após o massacre escolar em Columbine, nos Estados Unidos, videogames foram eleitos, junto com outras obras culturais, como elementos subversivos e violentos, responsáveis por incentivar crianças e adolescentes a comportamentos violentos.

Pais processaram desenvolvedoras de jogos — Doom, Quake, Duke Nukem foram os alvos principais —, e políticos corresponderam, aproveitando o palanque criado. Era necessário um bode expiatório que desviasse a atenção do maior bombardeio estadunidense na Guerra do Kosovo e do incômodo fato de que jovens podiam comprar metralhadoras semiautomáticas e granadas via e-commerce.

Desde então, “proteger as crianças” do e dentro do videogame se tornou uma cruzada para políticos ganharem palanque e votos. Apesar de a “proteção das crianças” ser um mote mais antigo que os próprios jogos eletrônicos, ele costuma ser bastante persuasivo e aderente; afinal, políticos costumam ter a mesma idade que pais/eleitores, enquanto crianças e adolescentes ainda não votam e, portanto, não têm vez na discussão.

Aqui no Brasil, o PL nº 2.796/21, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, não poderia, portanto, passar ileso e, naturalmente, teria uma seção dedicada a proteger os menores. É sobre este enfoque específico que o presente texto se dedicará nas próximas linhas.

Erros do PL

É importante regular a relação do consumo de videogame por crianças. Ponto. Ela ajuda tanto pais quanto desenvolvedores a criarem e usarem mecanismos para evitar que menores tenham direitos lesados ao consumirem jogos, especialmente na modalidade multiplayers online, onde há interação com um grande número de usuários, muitas vezes maiores de idade.

Porém, o capítulo III do PL, com uma visão simplória sobre o funcionamento e os mecanismos dentro dos jogos, apresentou uma série de disposições vagas e exigências pouco práticas. Em primeiro lugar, o caput do artigo 15 tenta exprimir que um jogo que possa ser acessado por crianças deve ser concebido por design para proteger seus interesses. Ocorre aqui o primeiro problema da regra:

Quando falamos em “by design“, a primeira pergunta deveria ser: qual é o público-alvo do jogo?

Spacca

Essa pergunta é importante para a responsabilização adequada do desenvolvedor, uma vez que ele não controla a decisão dos pais em, por exemplo, discordar da classificação etária. Nada impede pais ou responsáveis de permitir que o menor jogue um game desenhado para adultos.

Isso pode ocorrer tanto por desconhecimento do teor do produto, quanto por uma decisão consciente de ignorar a classificação indicativa. Neste caso, o desenvolvedor não tem a obrigação, para além da informação da classificação indicativa, em fazer o jogo by design para menores. O fato de uma criança acessar um jogo não torna o produto “para crianças” ou infantil.

Dado que o desenvolvedor também não controla o público-alvo de um jogo e que a classificação indicativa não é restritiva, muitos países com leis similares exigem a coleta de dados para avaliar a porcentagem de jogadores menores de idade. Caso ela seja significativa, pode-se dizer que, apesar da intenção contrária do desenvolvedor, seu público-alvo é infanto-juvenil e, portanto, ele deve ter um compliance mais rigoroso. Logo, o artigo 15 poderia ser reformulado para a seguinte redação, menos problemática e mais adequada:

Art. 15. Desenvolvedores de jogos que tiverem como público-alvo crianças e adolescentes, deverão ter o interesse dos mesmos abarcados no próprio design do jogo, segundo a legislação vigente.

Dado que já existe legislação vigente sobre classificação indicativa, o PL se debruça em mecanismos (features), mas, para abarcar a multiplicidade deles, seria importante, inclusive, diferenciar crianças de adolescentes.

Um exemplo disso é a capacidade de adolescentes portarem seus próprios cartões de crédito, utilizando serviços como NG.Cash, algo que não é permitido para crianças. O que nos leva ao segundo problema: por que não usar a definição direta de criança e adolescente do ECA, que segrega crianças de adolescentes, utilizando o marco de 12 anos de idade incompletos?

Mas não é só. Parece-nos que a redação do artigo 14 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que trata de menores, embora imprecisa, ao menos trata “crianças e adolescentes” como titulares de direito diferentes.

Deveríamos, então, utilizar as faixas etárias do sistema de classificação indicativa brasileiro (ClassInd) para determinar quais recursos desenvolvedores devem disponibilizar?

Há dois grandes pontos sobre classificação etária e proteção de menores: o conteúdo e as funcionalidades. De um lado, o conteúdo é simples de entender e está amplamente descrito pelo ClassInd, International Age Rating Coalition (Iarc) e outros sistemas de classificação etária. As funcionalidades, entretanto, não estão suficientemente descritas.

O próprio guia prático de classificação indicativa fornecido pelo Ministérios da Justiça e Segurança Pública pincelam sobre funcionalidades como compras dentro do jogo, mas não fornecem instruções suficientemente claras para desenvolvedores atingirem o compliance desejado.

Questões como: a partir de qual idade uma criança ou adolescente pode fazer compras in-game? O Banco do Brasil, por exemplo, tem uma conta desenhada para menores de 8 a 17 anos. Vale como baliza para compras in-game de um jogo que tem público-alvo infanto-juvenil? O artigo 17, infelizmente, não responde a questão. É ver e conferir:

Art. 17. As ferramentas de compras dentro de jogos eletrônicos devem garantir, por padrão, a restrição da realização de compras e de transações comerciais por crianças, quando aplicável, garantindo o consentimento dos responsáveis.

A regra é válida para jogos direcionados ao público infantil ou para todos eles? Considerando que ela deve ser restrita por padrão, isso significa que o legislador quer um age gate na sessão de compras? É o que tudo indica. Contudo, o que acontece então com as ofertas de itens dentro do jogo? Esse ponto é, na Europa, um dos mais polêmicos, já que impacta diretamente nos modelos de monetização dos jogos. Pode uma criança interagir com uma roleta ou loot box? E um adolescente? Podemos assumir que sim, já que pacotes de figurinha da Fifa usam o mesmo modelo de sorte e raridade? Podem crianças assistir a um comercial (rewarded ads) para ganhar um prêmio no jogo? E um adolescente? E participar de competições premiadas, como sorteios in-game?

Comunidades e seus gestores

Ainda no artigo 15, mas em seu inciso II, o legislador amplia a responsabilização do desenvolvedor de modo a incluir suas comunidades oficiais. Aparentemente correto, mas a disposição deixa margem para uma confusão acerca da responsabilidade das próprias plataformas e redes sociais que são os reais provedores dos serviços dessas comunidades. Afinal, o próprio desenvolvedor pode colocar regras de conduta nos canais da sua comunidade, mas ele não pode ser responsabilizado por usuários de outra plataforma/serviço.

Cria-se uma espécie de sobreposição de regras, quando aquelas do canal de distribuição deveriam valer. Esse tipo de problema será, provavelmente, resolvido utilizando a régua atômica da responsabilização solidária do Código de Defesa do Consumidor. Portanto, desenvolvedores devem ficar atentos com o que postam ou promovem, além de investirem em community managers.

Nesse ponto, inclusive, o PL poderia tê-los incluído como opção na classificação nacional de atividades econômicas (Cnae), dada sua profusão na indústria de games, livestream e esports. Community managers são peças fundamentais para garantir compliance com esse artigo, em especial para jogos com público-alvo infantil ou que tenham uma diversidade etária na comunidade.

Outro ponto aqui é que community managers são o próximo passo de moderadores de comunidade. O último costuma ser um trabalho voluntário feito por fãs do produto. Após algum tempo na função, lhes é oferecido um posto de gestor de comunidade. Além das funções de moderação, ele também participa de atividades de marketing nos canais oficiais dos produtos.

Não é incomum encontrar menores de idade atuando profissionalmente nesses cargos. Como um primeiro emprego, costumam trabalhar em condições precarizadas e irregulares, estando sujeitos a abusos da legislação trabalhista sobre horário, férias etc. A criação de um Cnae poderia auxiliar algum tipo de regularização dessa profissão que será cada vez mais presente nas indústrias do entretenimento.

Ao menos um acerto!

O artigo 16 começa frisando que se aplica para jogos “direcionados” ao público infanto-juvenil. Ponto para o PL. Ainda que seja vago e use de forma intercambiável o termo “plataforma” para jogo eletrônico, seu teor também está no caminho certo. Todas as plataformas de distribuição costumam exigir algum tipo de canal de suporte do desenvolvedor. Não há prejuízo em positivar tal disposição. Os erros aqui estão nos incisos IV, VI e VII. Apesar de a intenção ser boa, ela não condiz com o dia a dia do desenvolvimento de jogos.

Desenvolvedores indie, grande parte dos brasileiros, não têm, em sua maioria, capacidade de supervisionarem os chats dentro dos jogos. É algo complexo e custoso de desenvolver internamente. Portanto, a única possibilidade para eles é contratar algum terceiro que realize a tarefa. Em sua maioria, esses terceiros são empresas estrangeiras. Na prática isso gera dois problemas: o preço é impeditivo, e os dados precisam ser compartilhados internacionalmente.

123RF

Ainda que o PL seja então uma janela para empresas brasileiras oferecerem o serviço, na prática, ele super onera pequenos desenvolvedores em detrimento dos grandes. Dado que o cenário brasileiro é composto majoritariamente por pequenos players, o PL deveria discriminar o nível de sofisticação e capacidade do desenvolvedor em implementar essas medidas.

Um possível caminho seria, tal como a autoridade nacional de proteção de dados fez em seu guia de segurança da informação para agentes de tratamento de pequeno porte, a dispensa de determinadas obrigações para empresas com um faturamento reduzido, que se enquadrem como PME ou, ainda, no âmbito subjetivo do Marco Legal das Startups.

Caso isso não ocorra, é importante que desenvolvedores e advogados de games se atentem às funcionalidades do chat. Essa decisão origina grande partes das violações de direitos infantis no jogo. Logo, para além de considerar a implementação de um sistema de denúncia, monitoramento, reports etc, considere, antes de qualquer coisa, o design do seu chat.

Conclusões programáticas

Com tudo isso em mente, para aprimorar a redação do PL, seriam interessantes alguns ajustes de rota. Mas duvidamos que haverá mudanças substanciais. A tendência é que o presidente da República aprove a norma sem vetos.

Sem prejuízo, aqui, condensamos algumas das sugestões. Em primeiro lugar, é necessário incluir o público-alvo como um critério de governança, o que envolve a consideração de quem será afetado pelas regulamentações e como elas podem ser implementadas de maneira eficaz. Além disso, é importante criar um anexo que contenha disposições específicas para funcionalidades relevantes, como compras dentro do aplicativo, propaganda, e mecanismos baseados em sorte.

Para além disso, poderia ser proposto um dispositivo que permita ao Ministério da Justiça atualizar o guia prático do ClassInd para incluir diretrizes claras sobre essas funcionalidades e seu impacto na classificação indicativa. Para garantir a aplicabilidade e a relevância das regulamentações, os incisos IV, VI e VII deveriam ser aplicados apenas para jogos que possuem 10 mil ou mais usuários crianças ou, ainda, com base no faturamento da empresa.

Por fim, a criação de um Cnae específico para community managers e a implementação de um dispositivo para regularizar a atuação de menores de idade nessa função são passos essenciais para estruturar o setor e assegurar a proteção adequada aos jovens envolvidos.

Autores

  • é sócio das áreas de Resolução de Disputas e de Proteção de Dados e Regulatório de Novas Tecnologias no BBL - Becker Bruzzi Lameirão Advogados, diretor de Novas Tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) e organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind, O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind, vol. 2,Regulação 4.0, vol. I e II e Litigation 4.0.

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