Licitações e Contratos

Perda do prazo de razões recursais na licitação não gera penalidade

Autor

  • Jonas Lima

    é sócio de Jonas Lima Advocacia especialista em Direito Público pelo IDP especialista em compliance regulatório pela Universidade da Pensilvânia ex-assessor da Presidência da República (CGU).

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3 de maio de 2024, 10h20

A Lei nº 14.133/21, que dispõe sobre Licitações e Contratos Administrativos, não autoriza sanção a licitante que perdeu prazo para envio das razões de recurso administrativo.

Ponto de partida da discussão

Em determinado edital de licitação, pelo regime da “nova lei”, foi identificada a seguinte regra:

“Desde já, fica consignado, em função da desnecessidade de fundamentar a intenção de recurso, que em caso de registrar intenção e deixar de interpor a peça recursal ou interpor recurso com caráter com objetivo meramente PROTELATÓRIO, ficará o licitante que der causa a estes fatos, sujeito à multa de 10% (dez por cento) do valor estimado dos itens em que estiver participando.”

Tal disposição, máxima vênia, revela evidente incompatibilidade com a legislação.

Considerações sobre a desnecessidade de motivação da intenção recursal

Cabe esclarecer que, se ao contrário do antigo regime licitatório, o artigo 165, § 1º, inciso I, da Lei nº 14.133/21 não exige indicação de motivação para a intenção de recurso, isso não implica em transmudar a regra para a interpretação forçada a criar tipicidade de conduta infracional na licitação pelo não envio das razões de recurso.

A supressão da motivação decorreu da constatação de que licitantes, na pressa do certame em andamento, em curto prazo de 15 a 30 minutos, não conseguiam identificar da proposta e dos documentos de habilitação dos seus concorrentes todas as possíveis falhas, uma limitação ao apontamento de tudo o que poderia ser tratado nas razões de recurso.

A motivação na intenção de recurso tinha feições de forçada análise de todo um conjunto de documentos processuais em poucos minutos, restringindo o pleno exercício do direito recursal, razão pela qual a regra foi “exterminada” e não importada para a nova lei.

Considerações sobre a matéria central em análise

Direito sancionatório é restritivo, sendo importante lembrar que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a falta de resposta a solicitações de documentos em licitações, mesmo que por 24 horas, não gera penalidades.

Spacca

A consequência, no caso, seria a desclassificação da proposta ou a inabilitação do licitante (STJ — RMS nº 23.088/PR, relator Ministro Francisco Falcão, 1ª Turma, julgado em 19/4/2007, DJ de 24/5/2007, p. 310).

E quando o Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 754/2015 — Plenário, entendeu que se deveria instaurar processos para apurar condutas de licitantes por abandono de propostas em pregões, o caso tratava de centenas de itens, envolvendo um grupo de licitantes agindo de forma interligada. Por isso, nem o TCU afirmou que perda de faculdade processual em caso isolado teria consequência jurídica além da desclassificação de proposta ou da inabilitação de licitante.

Enfim, muitas empresas foram ilicitamente sancionadas pelo não envio de documentos, por não praticarem um ato processual, enquanto o STJ alertava que o artigo 7º da Lei nº 10.520/2002, então lei de pregão, não poderia ser assim interpretado, com presunção de conduta ilícita, vez que a perda de faculdade processual teria sua respectiva consequência, não penalidade de modo automático.

E para que não pairem interpretações forçadas, nem o artigo 155, inciso IV, da Lei nº 14.133/21 pode ser objeto de confusão quanto ao termo: “deixar de entregar a documentação exigida para o certame”. Isso porque esse trecho da nova lei adveio do artigo 7º da antiga Lei nº 10.520/2002, que já passou pelo crivo do STJ, portanto, em face da segurança jurídica, da coerência de decisões e da visão de continuidade típico normativa, interpretação do STJ sobre conduta que passa da lei antiga para a nova, deve-se considerar o entendimento daquele Tribunal, ao qual compete uniformizar jurisprudência sobre texto de lei federal (artigo 105, inciso II, alíneas “a” e “c”, da Constituição).

Assim, considerando que a “ratio decidendi” ou o “racional” adotado pelo STJ será o mesmo, pois a base do texto da nova legislação continua sendo a mesma ideia da antiga, “deixar de entregar a documentação” não será infração administrativa, como deixar de responder mensagens dentro de sistema também não será, como também deixar de apresentar razões de recurso não será.

São aspectos processuais de consequências simples:

1) não envio de documentação implica em desclassificação de proposta ou em inabilitação de licitante, do mesmo modo que não atender à solicitação de informação ou documento dentro de diligência implica nessas consequências e curso do certame para a próxima proposta; e

2) manifestar a intenção de recurso, mas perder prazo para apresentação das razões recursais não implica em penalidade, mas sim na consequência legal de “trânsito em julgado”, fechando a matéria que poderia ter sido eventualmente discutida e abrindo espaço para o prosseguimento da licitação.

Edital não pode tipificar conduta de modo forçado, até porque, além de não ser o agente público o legislador, sob pena de usurpar a competência do Congresso (artigos 22, inciso XXVII, e 44, ambos da Constituição) basta notar que a matéria de sanções está em uma parte diferente na estrutura sistemática da Lei nº 14.133/21, sendo claro que onde há o regramento de desclassificação de proposta ou inabilitação de licitante não há expressa norma no sentido de que todo aquele que incorrer nessas situações será penalizado.

Feitas tais considerações, cabe comparar o cenário administrativo com o judicial, no qual embora haja especificidade de honorários em recurso (remuneração do advogado da parte contrária), no que importa para compactar, uma multa por litigância de má-fé vem apenas em casos pontuais, como de pode ter em exemplo de recurso ao STJ contra súmula dele próprio, o que poderia implicar no rótulo de recurso manifestamente improcedente e protelatório. Mas a mera perda do prazo de recurso não gera sumária aplicação de multa.

Os juízes não se dedicam a multar a parte que perde prazo para interpor algum recurso, porque isso, simplesmente, leva ao “trânsito em julgado” de certa matéria no processo.

E mesmo que o dever de colaborar com o bom andamento do processo, com atuação de boa-fé, na cooperação para decisão em tempo razoável (celeridade) sejam princípios, respectivamente, dos artigos 5º e 6º do Código de Processo Civil, o magistrado que conduz o processo não tem base legal para multar a parte, simplesmente, pela “perda do prazo de recurso”.

Conclusões

É preciso ter visão além do alcance e considerar a legislação de forma sistêmica, para se evitar forçada interpretação baseada em captura de pontos isolados do texto da lei e a criação de regras sancionatórias dentro de um edital de licitação.

Autores

  • é advogado, sócio de Jonas Lima Sociedade de Advocacia, ex-assessor da Presidência da República, especialista em Direito Público pelo IDP e Compliance Regulatório pela Universidade da Pensilvânia e autor de cinco livros, incluindo "Licitação Pública Internacional no Brasil".

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