Opinião

PL hesita em abolir exoneração prévia de responsabilidade de administradores no direito brasileiro

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  • Cedem

    (Centro de Estudos de Direito Empresarial) é um grupo de estudos credenciado na Comissão de Cultura e Extensão Universitária/CCEx da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e orientado pelo professor doutor José Marcelo Martins Proença. Este artigo foi escrito por Caio de Magalhães Brega e Julia Ruiz Monteiro Alves alunos da graduação na FDUSP que coordenaram as atividades do Cedem em 2023 e revisado pelo próprio professor. As opiniões aqui divulgadas refletem os estudos e discussões dos membros do Cedem a respeito do PL 2.925/2023 no segundo semestre de 2023.

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3 de maio de 2024, 6h03

O PL 2.925/2023, que propõe a reforma da Lei nº 6.404/76 (Lei das S.A.) e da Lei nº 6.385/76, tem como objetivo elevar os padrões de governança corporativa no mercado de capitais brasileiro. Para alcançar esse resultado, buscou remover entraves à tutela indenizatória privada no direito societário, de modo a aperfeiçoar o standard de conduta dos agentes que atuam no mercado de valores mobiliários e garantir maior segurança para os investidores.

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Um dos principais entraves à indenização de investidores no Brasil é o chamado quitus. Conforme o artigo 159, §3º, da Lei das S.A., a aprovação de contas do último exercício social pela companhia exime os administradores de qualquer responsabilidade por atos cometidos no respectivo exercício e impede o ajuizamento de ações de responsabilidade [1], impedindo, também, que os acionistas sejam ressarcidos por eventuais danos sofridos. Vale notar que se trata de instituto histórico no direito brasileiro, mas abandonado em diversos países que servem de referência para nosso direito societário [2].

A inconveniência do sistema vigente é agravada pelo perfil de controle concentrado das companhias brasileiras. Em um ambiente de dominação da companhia por um único acionista, baixo comparecimento dos acionistas minoritários às assembleias e consequente aprovação automática de demonstrações financeiras, a existência do quitus inviabiliza por completo a propositura de ações de responsabilidade contra administradores.

A eficácia preclusiva e exoneratória do quitus no sistema atual é tamanha que a jurisprudência exige, em casos de aprovação de contas do administrador, a anulação da deliberação da assembleia geral que as aprovou como condição para o ajuizamento de ação de responsabilidade [3]. Toda essa conjuntura tem feito o quitus ser criticado duramente por parte da doutrina, que aponta que o instituto contribuiria para a impunidade dos administradores do país [4]. Por isso mesmo, trata-se de questão tratada em detalhe pelo PL 2.925/2023.

Em primeiro lugar, a modificação do §3° e o acréscimo do §3º-A ao artigo 134 da Lei das S.A. propõe a extinção do quitus como existe no sistema vigente. Com a nova redação, a aprovação das demonstrações financeiras da companhia por si só não teria mais o condão de eximir a responsabilidade do administrador.

Passaria a ser necessária, portanto, uma previsão expressamente disposta na ordem do dia da assembleia geral especificando por quais atos os mencionados agentes não poderiam ser responsabilizados. Essa alteração tem o mérito de exigir discussão específica sobre a exoneração do administrador, o que pode aumentar a reflexão sobre a questão, evitando aprovações automáticas e inconsequentes, capazes de prejudicar a companhia posteriormente.

Ausências

Por outro lado, o PL 2.925 deixou de tratar de alguns debates relevantes [5], como a possibilidade de revogação do quitus pela própria companhia em assembleia posterior, os limites objetivos do quitus, especialmente em caso de fraude, e a possibilidade de revogação tácita do quitus em caso de deliberação posterior pelo ajuizamento de ação de responsabilidade [6].

Além disso, a ressalva do §3º-A do artigo 134 demonstra certa relutância na abolição do quitus. Para contornar a regra do §3º-A, seria suficiente apenas adicionar esse tema à ordem do dia e à ata da assembleia geral, ou realizar a assinatura de um termo de exoneração de responsabilidade a cada aprovação de contas. Isso resultaria em um quitus automático, não muito diferente, na prática, do que já ocorre atualmente.

De qualquer forma, a alteração, com as devidas ressalvas, é positiva. Não parece procedente a alegação de que a extinção do quitus, por si só, seria um desincentivo à atuação de profissionais especializados e competentes como administradores de sociedades.

Muito pelo contrário: o efeito esperado da alteração legislativa seria a maior atenção dos administradores à licitude de seus atos, que deixaria de ser reconhecida automaticamente com a aprovação de contas.

No mais, existem meios contratuais, a exemplo dos seguros de responsabilidade, capazes de fornecer segurança ao administrador sem, contudo, impedir por completo a propositura da ação de responsabilidade prevista no artigo 159 da Lei das S.A.

Em resumo, nos parece que a extinção do quitus como ocorre atualmente, com a alteração do §3° e o acréscimo do §3º-A ao artigo 134 na Lei das S.A., facilitaria a responsabilização dos administradores, sem desestimular substancialmente a atuação de pessoas capacitadas na administração de sociedades.

Por outro lado, a mudança é claramente insuficiente para frear a exoneração dos administradores, sendo contornável pelo simples acréscimo do tema à ordem do dia e à ata da assembleia geral. Sugerimos, portanto, que a alteração legislativa proposta no PL 2.925/2023 rompa de forma mais categórica com o sistema do quitus, que, como visto, vai na contramão das tendências globais do direito societário e do mercado de capitais.

Assim, é necessário que a lei exija um quórum qualificado para exoneração prévia de administradores em deliberação específica; ou, melhor ainda, vede expressamente a possibilidade de a companhia realizar deliberação ex ante renunciando à propositura eventual da ação de responsabilidade. Somente assim será possível, de fato, abolir a irresponsabilidade dos administradores por seus atos — hoje tomada como regra no direito brasileiro — e permitir a devida tutela indenizatória dos investidores no mercado de capitais.

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[1] No julgamento do Recurso Especial nº 257.573, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “a aprovação das contas pela assembleia geral implica quitação, sem cuja anulação os administradores não podem ser chamados à responsabilidade” (REsp nº 257.573/DF, Rel. p/acórdão Min. Ari Pargendler, Terceira Turma, j. em 08/05/2001). Assim, o acionista minoritário precisaria ingressar com uma ação de anulação da aprovação de contas dentro do prazo decadencial de dois anos, conforme dispõe o art. 286 da Lei das S.A., e do prazo prescricional do Código Civil, para poder pleitear a responsabilização do administrador.

[2] Itália, Alemanha, Espanha, França e Portugal são alguns dos países que não adotam a aprovação de contas como forma de exoneração da responsabilidade dos administradores (Cf. VIO, Daniel de Avila; SASSERON, Adriano Helena. Contas, Quitus e responsabilidade dos administradores. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. Processo Societário. V. 4. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 190).

[3] STJ, AgRg no Ag 640.050/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão Filho, Quarta Turma, j. em 19.05.2009; e STJ, REsp nº 256.596/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 08.05.2001.

[4] ADAMEK, Marcelo Vieira von; ADAMEK, Carlos Vieira von. O alcance extintivo do quitus diante de recente decisão do superior tribunal de justiça: comentários ao recurso especial no 1.741.338/SP. Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários, vol. II, dez/2021, pp. 230-233.

[5] ADAMEK, 2021, pp. 230-248.

[6] CARVALHOSA, Modesto; LATARROCA, Nilton. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas: Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, vol. 3. artigos 138 a 205, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, pp. 345-346.

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  • (Centro de Estudos de Direito Empresarial) é um grupo de estudos credenciado na Comissão de Cultura e Extensão Universitária/CCEx da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e orientado pelo professor doutor José Marcelo Martins Proença. Este artigo foi escrito por Caio de Magalhães Brega e Julia Ruiz Monteiro Alves, alunos da graduação na FDUSP que coordenaram as atividades do Cedem em 2023, e revisado pelo próprio professor. As opiniões aqui divulgadas refletem os estudos e discussões dos membros do Cedem a respeito do PL 2.925/2023 no segundo semestre de 2023.

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