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Dedutibilidade das perdas não técnicas na distribuição de energia elétrica

3 de maio de 2024, 19h37

Por Pedro Simão, Bernardo Fenelon

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Dada as suas especificidades e peculiaridades, a tributação do setor elétrico é sempre um capítulo à parte em tratativas doutrinárias e nos embates travados entre Fisco e contribuintes.

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Uma das questões mais comuns, relevantes e controversas sobre o tema refere-se à dedutibilidade (ou não), da base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), das chamadas “perdas não técnicas” ocorridas na distribuição da energia elétrica.

A Lei º 4.506/64 traz autorização para a dedução, da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, de algumas despesas incorridas pelas empresas, desde que elas sejam consideradas necessárias, usuais ou normais à sua atividade, permitindo, ainda, a dedução dos prejuízos por desfalque, apropriação indébito ou furto “quando apresentada queixa perante a autoridade policial” (artigo 47, §§ 1º, 2º e 3º [1]). A autorização legal foi replicada no Regulamento de Imposto de Renda (artigos 311 [2] e 376 [3], do Decreto nº 9.580/18).

Perdas não técnicas

A distribuição de energia, por sua vez, é uma das etapas do sistema elétrico, realizada após a geração e a transmissão, que tem como finalidade o transporte da energia ao local onde essa será consumida.

Nessa etapa, naturalmente, ocorrem perdas que podem ser classificadas como (1) “técnicas”, quando houver a dissipação natural da energia elétrica transportada; ou, (2) “não técnicas”, quando decorrente de furtos, ligações clandestinas e fraudes (conhecidos vulgarmente como “gatos”). Enquanto as perdas técnicas são calculadas conforme critérios e apurações realizadas pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), as perdas “não técnicas” são apuradas pela subtração das “perdas técnicas” da “perda total” [4].

Nesse contexto, indaga-se: as perdas “não técnicas” podem ser consideradas despesas necessárias, usuais ou normais na atividade de distribuição de energia elétrica para fins de dedução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL?

Através da Solução de Consulta Interna Cosit nº 3/2017 [5], a Receita Federal respondeu ao questionamento firmando entendimento de que as perdas “não técnicas”, decorrentes de furto, não são intrínsecas à atividade desenvolvida pelas distribuidoras de energia elétrica, razão pela qual não poderia integrar o custo do serviço.

Escorando-se no Parecer Normativo CST nº 50/1973, advém o entendimento de que as perdas não técnicas somente poderão ser consideradas como despesas dedutíveis da apuração do lucro tributável “quando ajuizada queixa ou dirigida representação criminal à autoridade policial”.

Posicionamento do Carf

Com o posicionamento vinculante, diversos distribuidores foram desafiados com a lavratura de autos de infração relativos à matéria, os quais levaram à matéria para apreciação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

O Carf, por muito tempo, seguiu o entendimento exarado pela Receita Federal no sentido de que as perdas “não técnicas” não seriam dedutíveis da base de cálculo do IRPJ.

Nesse sentido, por exemplo, vê-se no acórdão nº1402-004.314 [6] exarado pela 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 1ª Seção, que os conselheiros não vislumbraram “as perdas não técnicas como inerentes às atividades desenvolvidas pelas distribuidoras de energia — tem relação direta com a sua gestão” e que apenas seriam dedutíveis se “cumpridos os requisitos do §3º do art. 364, do RIR/99 (instauração de inquérito policial”. Outros casos com fundamentação semelhante podem ser encontrados no Carf, tais como os acórdãos 1402-004.517 [7], 1402-002.147 [8].

Significa dizer que, até recentemente, o Carf não via as perdas “não técnicas” ocorridas durante a distribuição da energia elétrica como despesas operacionais, pois não se enquadrariam como necessárias, usuais ou normais da atividade de distribuição e que, por isso, apenas seriam dedutíveis caso apresentado queixa contra o furto. Inclusive, em alguns casos, o Carf afastou boletins de ocorrência apresentado pelas empresas por considerá-los vagos ou em razão de transcurso de lapso temporal entre o crime e a notícia à autoridade policial.

Contudo, mais recentemente, em acórdãos ainda pendentes de formalização e publicação, a 4ª Turma Extraordinária da 1ª Seção, adotando entendimento até então inédito, acolheu a argumentação da Light Serviços de Eletricidade S.A — responsável pela distribuição de energia elétrica no estado do Rio de Janeiro — para autorizar essa dedução do lucro tributável pelo IRPJ e da CSLL.

O novo posicionamento é o que nos parece mais adequado considerando as disposições legais.

Distribuição de energia e as perdas não técnicas

Não obstante a disposição legal que exige o registro do boletim de ocorrência para deduções em casos de furto, entendemos que a situação das empresas de distribuição de energia elétrica é única e merece interpretação específica.

Spacca

A energia elétrica é um bem incorpóreo cujos mecanismos de distribuição são inúmeros e expostos ao ambiente (linha de distribuição), de modo que inexiste forma integralmente efetiva de controle, vigilância e/ou prevenção que possa ser adotada, unilateralmente, pelas distribuidoras para evitar os chamados “gatos”, notadamente em regiões com problema de segurança pública. A dificuldade de adoção de medidas preventivas ou de controle, inclusive, frustra (para não dizer impede) a individualização/responsabilização do furto e o registro de queixas-crime.

Isso se difere, por exemplo, da situação das empresas varejistas de produtos corpóreos que, além do controle do estoque (quantidade), podem adotar outros mecanismos, como a contratação de empresas privadas de segurança, instalação de câmeras em lojas, que permitam a prevenção ou, se for o caso, a individualização/responsabilização do furto.

Conforme relatório produzido e disponibilizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), as perdas “não técnicas” representaram um custo de R$ 8,69 bilhões para as concessionárias em 2022. A Light Serviços de Eletricidade S.A, cujo caso foi analisado pelo Carf, responde, sozinha e no mesmo período, à quase 20% da participação dessas perdas [9], em razão da situação socioeconômica vivida no estado do Rio de Janeiro.

Como se vê, as perdas “não técnicas” estão intrinsecamente ligadas à organização e mecanismos distribuição da energia elétrica e, assim sendo, à própria atividade de distribuição. Não se tratam, portanto, como fundamentou o Carf por tantos anos, de mera atividade de gestão da energia.

As perdas, sejam elas “técnicas” ou “não técnicas”, são absolutamente naturais no processo de distribuição da energia, de modo que se enquadram perfeitamente no conceito de despesas “normais” da atividade de distribuição passíveis de dedução, nos termos da legislação do imposto de renda.

Exigir o registro da queixa junto à autoridade policial como requisito de dedutibilidade das perdas “não técnicas” cria, ainda, um desequilíbrio econômico no setor elétrico — já que distribuidoras de energia atuantes em locais com maior índice de furtos/fraudes (como Amazonas e o Rio de Janeiro) estarão em desvantagem —, uma vez que os valores de perdas “não técnicas” acima dos patamares regulatórios “não são repassados para a tarifa de energia elétrica, o que implica que toda essa perda de receita seja arcada pelos acionistas da empresa[10].

Nesse cenário, considerando que podem ser consideradas como despesas normais e usuais vinculadas à atividade de distribuição de energia elétrica e ante às peculiaridades do setor, que impede e/ou dificulta a adoção de medidas tendentes a reduzir/acabar com os chamados “gatos”, nos parece mais que razoável e dentro do que se espera de justiça tributária e diminuição de desequilíbrios econômicos, a autorização da dedução das perdas “não técnicas” do lucro tributável pelo IRPJ e CSLL.

 


[1] Art. 47. São operacionais as despesas não computadas nos custos, necessárias à atividade da empresa e a manutenção da respectiva fonte produtora.

§1º São necessárias as despesas pagas ou incorridas para a realização das transações ou operações exigidas pela atividade da empresa.

§2º. As despesas operacionais admitidas são as usuais ou normais no tipo de transações, operações ou atividades da empresa.

§3º. Somente serão dedutíveis como despesas os prejuízos por desfalque, apropriação indébita, furto, por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista ou quando apresentada queixa perante a autoridade policial.

[2] Art. 311. São operacionais as despesas não computadas nos custos, necessárias à atividade da empresa e à manutenção da fonte produtora (Lei nº 4.506, de 1964, art. 47, caput).

§1º São necessárias as despesas pagas ou incorridas para a realização das transações ou operações exigidas pela atividade da empresa (Lei nº 4.506, de 1964, art. 47, § 1º)

§2º As despesas operacionais admitidas são as usuais ou normais no tipo de transações, operações ou atividades da empresa (Lei nº 4.506, de 1964, art. 47, § 2º).

[3] Art. 376. Somente serão dedutíveis como despesas os prejuízos por desfalque, apropriação indébita e furto, por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista ou quando apresentada queixa perante a autoridade policial (Lei nº 4.506, de 1964, § 3º).

[4] Agência Nacional de Energia Elétrica. Relatório de Perdas Energia Elétrica na Distribuição. 2023.

Vide: https://git.aneel.gov.br/publico/centralconteudo/-/raw/main/relatorioseindicadores/tarifaeconomico/Relatorio_Perdas_Energia.pdf. Acesso em: 25/04/2024.

[5] Vide: http://normas.receita.fazenda.gov.br//sijut2consulta/link.action?idAto=81559&visao=anotado. Acesso: 25/04/2024.

[6] Processo Administrativo nº 15586.720168/2018-14. Segunda Turma Ordinária da Quarta Câmara da Primeira Seção. Publicação em 14/04/2020.

[7] Processo Administrativo nº 16682.721141/2018-13. Segunda Turma Ordinária da Quarta Câmara da Primeira Seção. Publicação em 13/04/2020.

[8] Processo Administrativo nº 10384.720878/2014-65. Segunda Turma Ordinária da Quarta Câmara da Primeira Seção. Publicação em 06/05/2016.

[9] ANEEL. Op cit.

[10] ANEEL. Op cit.