Público & Pragmático

Emendas parlamentares, 'novo normal' das emergências naturais e PEC 44/23

Autor

  • Laura Mendes Amando de Barros

    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora geral do Município de São Paulo. Professora do Insper.

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30 de junho de 2024, 8h00

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 44, apresentada em setembro de 2023, teve por escopo inicial incluir no artigo 166 do Texto Maior o parágrafo 9º-B, com o objetivo de estabelecer a reserva de 5% dos valores relativos às emendas parlamentares para o enfrentamento de catástrofes e emergências naturais.

À parte das inúmeras — e devidas — críticas incidentes sobre essas emendas, incompatíveis com uma sistemática minimamente democrática, transparente e accountable dos gastos e investimentos públicos, trata-se de iniciativa que pode ser tida como positiva em vários aspectos, consideradas as novas (ou não tão novas…) perspectivas relacionadas à probabilidade e recorrência de desastres dessa natureza.

Realmente, já no ano de 2015, produziu-se, a pedido da Presidência da República e com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o relatório “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima” [1], o qual prenunciava uma série de agravos ambientais – tais como o ocorrido na região sul do país recentemente.

Tal cenário é corroborado por levantamento da Confederação Nacional de Municípios [2], segundo o qual 93% dos municípios brasileiros foram afetados por eventos climáticos entre 2013 e 2022, em razão dos quais quatro milhões e duzentas mil pessoas tiveram que deixar as suas casas.

Em área tão sensível, informada pelos princípios da prevenção, vedação ao retrocesso e dever de progressividade, não se pode conceber tamanho desdém com as perspectivas desastrosas que então se desenhavam — e que vem se agravando com o passar do tempo e a ausência de estratégias efetivas de prevenção.

A iniciativa de alteração do texto constitucional chega, portanto, em bom momento, em que a dimensão catastrófica e incontrolável dos danos ao meio ambiente se apresenta inexorável em toda a sua extensão e potência.

Algumas críticas à redação do projeto

Primeiramente, a reserva do percentual do valor das emendas ficaria originariamente “a critério do deputado ou senador”, expressão paradoxal ao sentido do termo “deverá” que a antecedia.

Desconfia-se, assim, que, caso em uma análise de conveniência e oportunidade o parlamentar autor da emenda concluísse por um juízo negativo nessa análise, poderia simplesmente afastar a reserva.

Outro ponto digno de reprimenda era o fato de o texto inicial contemplar tão somente medidas de ‘enfrentamento e de catástrofes e emergências naturais’, a serem utilizados tão logo tais eventos viessem a ocorrer.

O foco, portanto, eram as tragédias instaladas, os cenários de privação, desespero e prejuízos (das mais diversas ordens) já em andamento.

Não trazia preocupação com a prevenção, com medidas voltadas a impedir tais eventos — em dissonância com as referidas noções de prevenção, progressividade e não retrocesso incorporadas à esfera de direitos fundamentais do cidadão enquanto titular do direito ao meio ambiente seguro e equilibrado.

Não pensar em prevenção em iniciativa tão crucial, e em momento de eloquente gravidade do cenário de rápida e contínua deterioração denotava, mais que insuficiência da iniciativa, legitimação da omissão, do não agir, do não se buscar estar preparado para impedir eventos trágicos (ou, na impossibilidade, minimizar os impactos deles decorrentes).

Conforme apontado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) no Relatório Síntese sobre Mudança Climática 2023 [3], o poder público tem papel fundamental, dentre outras estratégias, na redução das emissões de gases de efeito estufa (inclusive por meio de financiamento, demonstração clara de vontade política, intensificação de medidas políticas voltadas à energia limpa…).

Daí os ajustes apresentados pela Comissão Especial a que submetida a PEC, em nova redação aprovada em 19 de junho último, que incorpora de forma marcante a ideia de prevenção e precaução.

As alterações, aliás, contribuíram para o incremento da efetividade do projeto, na medida em que: vincularam o valor reservado à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, de modo a garantir tratamento e destinação sistêmicos; estendeu a vinculação desses 5% às emendas de bancada de parlamentares estaduais ou Distrito Federal; estabeleceu obrigatória alocação, na lei orçamentária, de recursos destinados ao Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil.

Determinou ainda a transferência direta e imediata da União aos entes subnacionais para ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação de desastres, no âmbito da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, independentemente de convênio ou da demonstração de adimplência do ente.

Essa última inserção, porém, é fonte de grande preocupação e deveria ser analisada com mais vagar e cuidado: a simples e imediata transferência de valores, sem qualquer exigência de prévio projeto, indicação de destinação ou planejamento pode comprometer absolutamente a sua efetividade, subtraindo todo o potencial de auxílio e funcionalidade desses valores.

Tal lógica é incompatível com qualquer estratégia de controle minimamente conforme à sistemática constitucional de aplicação de receitas públicas, mormente no que tange à transparência e controle social — fator esse por si só comprometedor do dispositivo, a demandar revisão com vistas à incorporação de mecanismos de accountability.

Mais uma questão: no caso de não utilização dos valores vinculados até o quarto ano da legislatura, a redação original previa sua reversão aos respectivos parlamentares proponentes das emendas, aos quais seria dado outorgar qualquer destinação que lhes aprouvesse.

Tal opção mostrava-se dissonante do princípio do planejamento da ação pública, da unidade orçamentária, da transparência, impessoalidade, moralidade e da efetividade e eficiência da destinação de valores públicos, com a possibilidade de uso ilegítimo e eleitoreiro — especialmente considerado o momento em que lhes seria ‘devolvido’ o valor (ao final do mandato).

A previsão foi suprimida, passando o montante não utilizado até o final de cada ano ao Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil (Funcap) [4].

Além dessas medidas, a redação atual da PEC determina a desvinculação, para fins de aplicação em ações de preparação, mitigação e prevenção de desastres, no período de dez anos, de até 10% para resposta e recuperação, e até 5% por ano, do Fundaf (Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização); do Proap (Programa de Administração Patrimonial Imobiliária da União); das receitas das agências nacionais de Transportes Terrestres e Aquaviários (ANTT e Antaq); e do Fnac (Fundo Nacional de Aviação Civil).

Trata-se de iniciativa de clara importância para o equacionamento do contexto climático que se desenha, com potenciais catástrofes a desafiar a capacidade estatal — e pública — de pronta e efetiva reação.

Ainda que se tenha uma série de gravíssimas reservas à estratégia de captura orçamentária traduzida nas das emendas parlamentares, e considerado o desproporcional montante que esses valores vêm alcançando nos últimos anos, pode a iniciativa representar um alívio para os desvios, desacertos e desperdícios marcantes de grande parte dos investimentos públicos brasileiros [5].

Espera-se que o Legislativo pátrio, ultimamente tão afeto à polarização e discussão de assuntos que pouco repercutem no incremento da qualidade de vida do cidadão, sensibilize-se com a urgência do tema, e seja capaz de decidir com base nos interesses da nação, e não nos próprios e partidários.

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Referências:

HARTUNG, Paulo; MENDES, Marcos; GIAMBIAGI, Fábio. As emendas parlamentares como novo mecanismo de captura do orçamento. Revista Conjuntura Econômica. FGV. IBRE. Set. 2021. Vol. 75, ano 9. P. 20/23. Disponível em https://www18.fgv.br/mailing/2021/conjuntura-economica/09-setembro/revista/8093427/

[1] Mais em: https://uploads.intercept.com.br/2024/05/RecursosHProduto-2.pdf?_gl=1*1quxzw3*_ga*Mzk4MzMxNDk3LjE3MTkyNDQwNDk.*_ga_9YTE2VWCEQ*MTcxOTI0NDA0OC4xLjEuMTcxOTI0NDYyNC40OC4wLjEzMjcyODM2MTU

[2] Mais em: https://cnm.org.br/storage/noticias/2023/Links/27072023_Estudo_Habita%C3%A7%C3%A3o_Desastre_revisado_area_publica%C3%A7%C3%A3o.pdf.

[3] Mais em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2023-04/IPCC_AR6_SYR_LongerReport.pdf.

[4] Originalmente criado pelo DL 950/69, mas ainda sem fonte de recursos estabelecida até o momento.

[5] Conforme estudo levado a efeito por Paulo, Hartung, Marços Mendes e Fábio Giambiagi, as emendas (parlamentares, de relator e de bancada) somaram, em 2021, cinquenta e quatro por cento do orçamento geral da União, cenário revelador de absoluta distorção, incompatível com as noções mais comezinhas de planejamento, gastos públicos e accountability democrática.

Autores

  • é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora geral do Município de São Paulo. Professora do Insper.

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