Opinião

Na contramão da simplificação, governo cria mais uma (duvidosa) obrigação fiscal

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29 de junho de 2024, 6h08

Com a reforma tributária em pleno andamento, tendo como pilares constitucionais os princípios da simplicidade e transparência, o governo federal acaba por tomar a direção oposta e instituir mais uma obrigação fiscal, a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi), cujo não adimplemento resultará em gravosas penalidades.

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A Dirbi foi instituída por meio da Medida Provisória (MP) 1.227/2024 (também conhecida como a “MP do Fim do Mundo”) e tem por finalidade impor às empresas a obrigação de prestar informação sobre os valores do crédito tributário referente a impostos e contribuições que deixaram de ser recolhidos em razão da concessão de determinados incentivos, renúncias, benefícios e imunidades de natureza tributária usufruídos pelas pessoas jurídicas.

Para regulamentar a obrigação, em 18/6/2024 foi publicada a Instrução Normativa RFB 2.198/2024, que estabelece o rol de 16 benefícios fiscais que devem ser informados via Dirbi, dentre os quais o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), o Regime Especial de Incentivo para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi), a desoneração da folha de salários e diversos créditos presumidos de PIS e Cofins, tais como o dos setores farmacêutico e agropecuário.

Visando assegurar a efetividade da Dirbi, referida legislação também impôs penalidades bastante gravosas: a não apresentação da Dirbi sujeita o contribuinte a multas de 0,5% a 1,5% da sua receita bruta, limitada a 30% do valor dos benefícios fiscais; além disso, aplica-se multa de 3% sobre o valor omitido, inexato ou incorretamente prestado na Dirbi.

Inicialmente, consigna-se que ora não se busca discutir a (im)possibilidade de instituição de declarações fiscais, até porque o Código Tributário Nacional prevê a possibilidade de imposição de obrigações acessórias no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. O que se pondera é a pertinência e necessidade da criação da Dirbi e as correlatas multas criadas pela MP 1.227/2024.

Da análise da lista de benefícios sujeitos à Dirbi, nota-se que o foco é identificar as desonerações tributárias pertinentes ao Imposto de Renda, Contribuição sobre o Lucro, desoneração da folha de salários e, principalmente, PIS/Cofins.

Disso surge o primeiro ponto de questionamento: qual é a necessidade da Dirbi?

A esse respeito, a exposição de motivos da MP 1.227/2024 invoca a necessidade de aumentar a transparência ativa sobre as renúncias fiscais, a fim de garantir o acesso a informações de interesse coletivo ou geral, facilitando o controle social, bem como contribuir para a redução gradual de benefícios fiscais e melhorar a gestão e a governança dos benefícios tributários.

A despeito da louvável intenção com a busca de informações por meio da Dirbi, o questionamento surge porque com a edição do Decreto 6.022/2007 instituiu-se o Sistema Público de Escrituração Digital (Sped), que consiste num instrumento que unifica as atividades de recepção, validação, armazenamento e autenticação de livros e documentos que integram a escrituração contábil e fiscal, mediante fluxo único, computadorizado, de informações.

Desde então, o Sped evolui para um dos mais moderno e respeitado sistemas de escrituração fiscal, abrangendo desde a emissão eletrônica em tempo real de notas fiscais, até os mínimos detalhes em escrituração fiscal e contábil. Nesse contexto, em relação aos tributos desonerados objeto da Dirbi, o Sped já prevê detalhadas informações na Escrituração Contábil Digital (ECD), Escrituração Contábil Fiscal (ECF), Escrituração Fiscal Digital das Contribuições (EFD-PIS/Cofins), Escrituração Fiscal Digital de Retenções e Outras Informações Fiscais (EFD-Reinf) e o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial).

Todas estas obrigações fiscais no âmbito do Sped já oferecem ao governo federal detalhadas informações que permitem identificar com precisão a apuração dos tributos e respectivos valores desonerados. Ainda, os contribuintes já devem se empenhar para o seu cumprimento, visto que a legislação estabelece penalidade pela sua não apresentação, bem como por prestação de informações incorretas ou omissas.

Portanto, já se nota que a Dirbi acaba por se mostrar como mais uma obrigação acessória para prestar informações já prestadas e que podem ser facilmente identificadas pela administração tributária em auditoria do Sped. Aliás, auditoria esta que comumente é realizada de forma automática e informatizada, sem a necessidade de processamento manual de dados.

Assim, mostra-se bastante questionável a necessidade de criação da Dirbi, quando considerado que as informações já são de conhecimento do Governo Federal, bastando que parametrize seus sistemas para buscá-las.

Outro questionamento relevante é: qual é a relevância e a urgência para a instituição da Dirbi por meio de medida provisória e com efeitos imediatos (e, até mesmo, retroativos)?

A Constituição estabelece que, em caso de relevância e urgência, o presidente da República poderá editar medida provisória, com força de lei. A esse respeito, já vimos que a relevância da instituição da Dirbi é bastante questionável, de forma que a medida feita, por si só, revela-se duvidosa. Outrossim, a urgência da instituição da Dirbi com efeitos imediatos também é bastante duvidosa.

Note que a MP 1.227/2024 foi publicada em 04/06/2024 e a Instrução Normativa reguladora em 18/06. Ocorre que, e bastante preocupante, tal norma estabelece que a Dirbi deverá ser apresentada retroativamente em relação aos períodos de apuração de janeiro a maio de 2024, até 20 de julho de 2024.

Como resultado, o contribuinte que iniciou junho de 2024 sem nunca sonhar com uma obrigação como a Dirbi, agora deverá se adaptar, apurar e prestar as informações sobre cinco meses de atividades em apenas um mês, além de já se preparar para prestar as informações de junho de 2024. E, bastante preocupante, o que é feito às pressas inevitavelmente pode resultar em erros e, como visto, multas bastante pesadas.

Além do absurdo da retroatividade em si, é que, em situações normais, a Dirbi deve ser apresentada até o vigésimo dia do segundo mês subsequente ao do período de apuração, ou seja, após dois meses do respectivo mês de apuração. Contudo, a primeira Dirbi a ser apresentada, abrangendo cinco meses de apuração, deverá ser em apenas um mês.

Dessa forma, com base numa pretensa urgência, impôs-se de imediato a exigência do cumprimento de uma nova obrigação acessória para fornecer informações já prestadas, gerando nova camada de complexidade e burocracia para os contribuintes, sob pena de sofrer severas sanções.

No entanto, a exposição de motivos da MP 1.227/2024 acaba por denunciar a completa falta de urgência da instituição imediata da Dirbi. Isso porque, é esclarecido que a medida foi proposta inicialmente no Projeto de Lei 15/2024, encaminhado pelo próprio presidente da República, prevendo justamente a prestação das informações objeto da Dirbi.

Como resultado, a MP 1.227/2024, neste viés, mostra-se como medida democraticamente duvidosa, que afronta a republicana tripartição dos poderes, pois o Executivo acabou por forçar a sua vontade em sobreposição à matéria já proposta para debates perante o Legislativo. Com efeito, se a instituição da Dirbi foi submetida ao Legislativo, que é o foro adequado para tanto, cabe ao Executivo respeitar o processo legislativo, deixando que siga seu curso e, ao final, se for da vontade dos representantes do povo, que se torne lei.

A exposição de motivos invoca, ainda, a Emenda Constitucional 109/2021, que estabelece regras transitórias sobre redução de benefícios tributários, mediante plano de redução gradual do montante total dos incentivos e benefícios federais de natureza tributária até 2029.

Se a redução dos benefícios fiscais é uma medida necessária desde 2021, a instituição imediata e retroativa da Dirbi em 2024 se mostra ainda menos urgente. Isso porque, se nenhuma medida desta natureza foi tomada até o momento, não há como se admitir que se transfira para o contribuinte a “conta” da demora do governo.

Ainda, a maior parte dos benefícios objeto da Dirbi são referentes ao PIS/Cofins que, em razão da reforma tributária, serão extintos em 2027, de forma que a medida tomada neste momento se mostra tardia e nada urgente.

Por fim, em relação à necessidade de controle dos gastos públicos, não é de hoje que o déficit público se mostra como tema sensível e de grande relevância. Dessa forma, não cabe ao Executivo tomar medidas imediatistas — ainda mais quando estas estão em discussão pelo Parlamento — sob o pretexto de equilíbrio fiscal.

Dessa forma, percebe-se que a instituição imediata e retroativa da Dirbi não possui qualquer urgência que justifique a edição de medida provisória, mostrando a obrigação bastante duvidosa, também, sobre esta ótica.

Diante destas ponderações, tem-se que a instituição imediata e retroativa da Dirbi, além de afrontar a tripartição dos poderes, sobrepondo-se ao processo legislativo — onde o tema já é objeto de debate —, impõe, de forma extremamente truculenta, desnecessário ônus aos contribuintes na busca de informações já existentes no âmbito do Sped, sob pena de graves penalidades, indo na contramão da simplicidade almejada para um moderno sistema tributário.

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