Diário de Classe

Juízes(as) e advogados(as): confessem!

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29 de junho de 2024, 8h00

A ideia de que possa existir respostas corretas — ou, na gramática da Crítica Hermenêutica do Direito (CHD), uma resposta constitucionalmente adequada (RAC) [1] — para toda controvérsia judicial, talvez seja uma das mais controversas no interior dos debates em teoria do direito; se, por um lado, a “descoberta” dos princípios causou uma ruptura interna no positivismo jurídico, hoje segmentado predominantemente entre inclusivistas e exclusivistas, por outro, a união dos teóricos inseridos nessa “tradição filosófica”, no entorno da resposta cética para o problema da indeterminação da linguagem do direito, parece ter permanecido intocada.

Em outras palavras, após o célebre debate entre H.L.A. Hart e Ronald Dworkin, quando a indeterminação assume contornos graves (hard cases), a resposta positivista permanece, desde então, a mesma: “[a] supreme tribunal has the last word in saying what the law is and, when it has said it, the statement that the court was ‘wrong’ has no consequences within the system: no one’s rights or duties are thereby altered[2].

Evidentemente — sejamos justos — o positivismo mais contemporâneo de autores que partem das considerações de Hart, diferentemente de outros, como Hans Kelsen [3], muitas vezes presta ressalvas a uma noção absolutamente cética sobre a prática jurídica, de modo que reconhecem que algum tipo de respeito, pelos Tribunais, às “promessas do direito” se faz sempre presente, sob pena de uma desintegração absoluta dessa prática, cujo núcleo é composto pelo “respeito mínimo às regras do jogo”, i.e., o jogo, para continuar, precisa, em alguma medida mínima, permanecer centrado nas “regras” e não no capricho do árbitro que conduz a partida.

Ceticismo

De todo modo, algum tipo de ceticismo é, inegavelmente, um elemento essencial de todo e qualquer positivismo jurídico: as decisões de um tribunal são finais, ainda que falíveis, e nada mais pode ser dito além dessa constatação. Essa conclusão para o problema da resposta correta —, para além de nos apresentar um instigante debate teórico-filosófico, tem também influenciado — direta ou indiretamente — importantes construções dogmáticas dentro do direito brasileiro.

A esse respeito, mencionemos, por exemplo, a tese mais substanciosa e bem articulada envolvendo a tentativa de consolidação de algum tipo de sistema de precedentes brasileiro [4], a partir da qual (I) assume-se como premissa de reflexão a natureza indeterminada da atividade de interpretação do material normativo que compõe o ordenamento jurídico, (II) propondo-se uma cisão funcional do organograma hierárquico das Cortes, dividindo-as entre aquelas que resolvem lides concretas e aquelas (de Vértice ou de Precedentes) que ordenarão a “dispersão de sentidos”, gerada nesse “primeiro andar”, por meio de uma “palavra final” [5]. Assim, se essa “última palavra” estiver errada, pouco importa; o caos foi aplacado e a segurança jurídica, atingida; um erro seguro é melhor do que a insegurança de várias tentativas isoladas de acerto.

O problema, no entanto, está na presença de um “não dito” nessa forma de encarar a controvérsia sobre a (in)existência de respostas corretas no direito, que impõe a todos nós — juízes(as) e advogados(as) — o dever moral de uma confissão: se, nos casos mais delicados (hard cases) ou mesmo, caso a tragédia sobrevenha, nos casos mais simples (easy cases) [6], a fronteira entre o ser ou não proprietário, entre a liberdade ou o cárcere, entre receber ou não uma reparação, será definida por aquilo que, no fim, um Tribunal Superior entende que é o direito, o cidadão precisa saber que somos todos estelionatários, que nos engajamos seriamente em debates profundos sobre direitos apenas para manter as aparências, mas, na verdade, não acreditamos minimamente nessa seriedade expressada superficialmente em nossos debates, i.e., não acreditamos que efetivamente existam direitos e aceitamos que, se esses existem, são facilmente superados pelas contingências da vida e suas complexidades rotineiras.

Escrevemos livros, teses e dissertações, sobre direitos, mas, no fundo, sabemos que bastaria a compilação de ementários — ementários das Cortes Superiores —, e o fazemos apenas para justificar a nossa existência e os anos perdidos para nossa formação; o fazemos com a consciência de que a opinião que verdadeiramente importa é aquela que faça coisa julgada em última instância.

No melhor dos cenários, realizamos todo esse esforço apenas como uma tentativa desesperada de convencer o “Leviatã” a ir por um ou outro caminho, sem maiores convicções sobre se o direito estabelece um ou outro como correto. Em outras palavras, sabemos que a postura da personagem interpretada por Julia Roberts, no filme “O Dossiê Pelicano”, vale apenas para uma jovem estudante de direito, cheia de idealismos e esperanças, mas, não para a labuta do dia a dia forense; como pontuado por Hart, todos sabemos que, se o STF ou o STJ errarem, pouco importa, nada se alterará nos direitos de quem quer que seja, e, “jogo que segue”.

Colocações como a de Hart são, claro, um oportuno alerta — juízes erram e essa é só mais uma das várias imperfeições do mundo. No entanto, assumir a discricionariedade, “forte” ou “fraca”, implica uma compreensão abrangente sobre o significado da prática, resvalando em uma descrição específica sobre a maneira como encaramos nossos “empasses”. Dworkin [7], ao lado da tese desenvolvida sobre princípios, direcionou seu foco também para esse “não dito”, oferecendo dois argumentos redentores para todos nós, “operadores do direito”, e que nos possibilitam um “arrependimento eficaz”, quais sejam, os seguintes: (I) o aguilhão semântico e (II) os desacordos teóricos.

Em suas palavras, para o positivismo jurídico — i.e., para aqueles que não reconhecem a existência de respostas juridicamente corretas, em especial nas ditas “zonas de penumbra” [8] —, “[dizer] que alguém tem uma ‘obrigação jurídica’ é dizer que seu caso se enquadra em uma regra jurídica válida que exige que ele faça ou se abstenha de fazer alguma coisa”. Todavia, “[na] ausência de uma tal regra jurídica válida não existe obrigação jurídica; segue-se que quando o juiz decide uma matéria controversa exercendo sua discrição, ele não está fazendo valer um direito jurídico correspondente a essa matéria[9].

Nesses termos, o direito assume a forma de um “conceito criterial”, ou seja, as pessoas — leia-se, nós, operadores do direito – tratam o direito como um conceito da mesma natureza que o conceito de “triângulo”, o qual compartilhado apenas porque aceitamos que, se o objeto examinado tiver três lados, preenchendo, portanto, os “critérios” que definem o conceito, será tido como um triângulo (aguilhão semântico).

Critérios insuficientes

Quando esses critérios se tornam insuficientes ou disputados, não há nada que o próprio direito possa oferecer para nos auxiliar a definirmos o conteúdo de deveres e obrigações, de tal modo que essa definição se dará pelo crivo de uma autoridade física (um Tribunal de Vértice, por exemplo). Contudo, Dworkin dirá que essa é uma leitura (uma descrição) equivocada daquilo que a própria prática nos revela sobre como juízes(as) e advogados(as) agem no dia a dia. Se o direito fosse de fato um conceito como “triângulo” ou “casa”, não haveria qualquer motivo razoável para que a prática jurídica fosse atravessada por uma dinâmica argumentativa: “[se] o direito for realmente um conceito como ‘casa’, então por que os membros de uma prática jurídica haveriam de discutir por tanto tempo sobre a veracidade ou falsidade de proposições jurídicas?” [10].

Analisando casos como Riggs v. Palmer (se o neto que assassinou o avô teria direito à herança), Dworkin demonstra que os juízes não se viram inseridos em uma discussão sobre se um direito pré-existente deveria ser substituído ou afastado naquela oportunidade para dar lugar a um “novo direito” ou alguma noção vaga de “justiça”, e sim em um debate sobre as exigências mesmas do próprio direito para uma situação como aquela [11]; havia, portanto, um contato direto entre (I) concepções teóricas divergentes sobre o direito (desacordos teóricos), de um lado, e, de outro, uma (II) autoridade reivindicada autonomamente pelo próprio direito e reconhecida pelos partícipes do debate [12].

Encarar situações como essa e reduzir a sua complexidade para um debate sobre ajuste de critérios formais de definição [13], se apresenta, assim, como “um insulto, por caracterizar juízes e advogados como ‘tolos’[14] que olham para algo que claramente não tem três lados e pensam: será que não seria o caso de, neste momento, definirmos essa forma geométrica como “quadrado”, pelas razões X, Y e Z? A bem da verdade, mesmo um tolo perceberia a tolice desse questionamento.

Em suma, as considerações de Dworkin nos remetem novamente à necessidade de confessarmos a verdade sobre o que fazemos, no dia a dia forense. De duas, apenas uma conclusão é possível: ou de fato somos todos tolos, e nossos debates sobre direitos, encenações; ou então a descrição da prática jurídica deve necessariamente abranger a noção de resposta correta. Aderir a esse segundo caminho, por sua vez, não significa ter de reconhecer que uma tal resposta pode ser encontrada como um “fato bruto” da realidade; significa apenas que, quando uma juíza decide e uma advogada postula, o fazem acreditando, verdadeiramente e de boa-fé, na possibilidade de que uma tal resposta possa ser atingida (ainda que não seja atingida no final).

Ver as coisas dessa maneira altera completamente o significado da afirmação “a Suprema Corte errou”; se errou, devemos exigir que acerte na próxima [15], de maneira que o erro, tido pela visão semântica do direito como um estado consolidado pela força da autoridade e apenas acidentalmente remediado, traja-se em vestes de transitoriedade acidental, quando essa visão é superada. Enfim, parafraseando-se as palavras de Dostoievski [16] à esposa de um amigo condenado à prisão, se me provassem que não podem existir respostas corretas no direito, e que essa é a verdade, eu preferiria o direito à essa verdade, porque se assim não for, bom, então temos todos — juízes(as) e advogados(as) — algo a confessar.

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[1] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.

[2] HART, H.L.A.. The concept of law: with and introduction by Leslie Green. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.

[3] Com sua cisão clara entre “atos de conhecimento” e “atos de vontade”, sendo a atividade judicante um ato do segundo tipo (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009).

[4] “[dada] a dupla indeterminação do direito, esses julgamentos inevitavelmente produzem um rico manancial de possíveis soluções a respeito do adequado significado que esses dispositivos devem ter à luz do contexto dos casos concretos em que inseridos. Ao fazê-lo, essas Cortes de Justiça causam uma inevitável dispersão a respeito dos significado da interpretação do direito. Trata-se de dispersão que tende a durar enquanto inexistente orientação definitiva sobre a questão emanada da Corte de Precedentes encarregada de dar a última palavra sobre o significado do direito constitucional ou do direito federal ou orientação uniforme da própria Corte de Justiça tomada a partir da forma própria […]”.  (MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 100-105).

[5] Para uma análise crítica completa dessa proposta: STRECK, Lenio Luiz. Precedentes Judiciais e Hermenêutica – o sentido da vinculação no novo cpc/2015. 5 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2024.

[6] Sobre a natureza falaciosa de uma dada cindibilidade entre casos fáceis e casos difíceis, ver: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 87.

[7] DWORKIN, Ronald. Império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[8] HART, H.L.A.. The concept of law: with and introduction by Leslie Green. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.

[9] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[10] MORBACH, Gilberto. Entre Positivismo e Interpretativismo, a Terceira Via de Waldron. 2. ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2021.

[11] DWORKIN, Ronald. Império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[12] STRECK, L. L.; MORBACH, G. (Autonomia do) Direito e desacordos morais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 119, 22 nov. 2019.

[13] STRECK, Lenio Luiz. O que é fazer a coisa certa no direito? São Paulo: Dialética, 2023

[14] MORBACH, Gilberto. Entre Positivismo e Interpretativismo, a Terceira Via de Waldron. 2. ed. Salvador/BA: Juspodivm, 2021.

[15] Esse é o elemento básico da ideia de “constrangimento epistemológico” (STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020).

[16] “[…] Deus me envia, por vezes, instantes em que eu fico inteiramente tranquilo; nesses instantes, eu amo e me sinto amado pelos outros, e é nesses instantes que eu criei em mim um Credo onde tudo é claro e sagrado para mim. Esse credo é muito simples: crer que não há nada de mais belo, de mais profundo, de mais agradável, de mais razoável, de mais viril e de mais perfeito que Cristo; eu falo a mim mesmo com um amor não somente ciumento que não há nada mais, mas que não tem como haver. Mais ainda, se alguém me provasse que Cristo está fora da verdade, e se ficasse provado que a verdade não está em Cristo, eu preferiria então ficar com Cristo a ficar com a verdade. […]” (ARBAN, D. Correspondance de Dostoiévski. Paris: Calman-Lévy, 1949. p. 157).

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