Opinião

Flamengo x Caixa: direito à cidade em detrimento dos interesses do capital financeiro

Autor

  • Matheus Corrêa Lima de Aguiar Dias

    é advogado no escritório Cavadas Lainetti & Barreto de Mello Advogados mestre em Direito da Cidade (PPGD/UERJ) membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (IDARJ) e editor na Revista de Direito da Cidade.

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29 de junho de 2024, 7h09

Desde o começo de 2024, muito se tem noticiado acerca do plano de construção de um novo estádio do Flamengo. Explicações para tanto são diversas: o clube de futebol ser o mais popular do país, 2024 ser ano de eleição para prefeito e para presidente da instituição, um executivo da Gávea exercer também o cargo de vereador do Rio de Janeiro [1], etc.

Divulgação

Até a publicação no Diário Oficial do Município da desapropriação do terreno [2] onde se planeja a construção, vinha sendo divulgado um imbróglio entre a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Flamengo quanto ao seu valor. A empresa pública federal resistia a vender por menos de R$ 450 milhões [3] e o clube defendia que o terreno vale R$ 250 milhões, segundo laudo da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) [4].

O espaço escolhido para sediar o estádio está localizado no que antes era um gasômetro, na Região Portuária da cidade do Rio de Janeiro. Essa região se encontra no perímetro da Operação Urbana Consorciada (OUC) do Porto Maravilha, projeto urbano lançado pelo prefeito Eduardo Paes, em 2009.

Uma das principais características desse projeto é o seu desenho institucional, por meio do uso de Fundos de Investimento Imobiliário (FII), regulados pela Instrução Normativa IN nº 472/2008 da CVM e instituídos no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 8.668/93 [5].

Nesse sentido, Alvaro Luis dos Santos Pereira, em tese de doutorado, aponta possíveis explicações para o impasse à definição de um acordo entre as partes. O autor desenvolve o conceito de “insulamento tecnocrático”, [6] quando discorre sobre o objetivo de constituição de uma operação urbana isolada de interferências políticas, que atrapalhassem o andamento do projeto.

Para tanto, o corpo técnico da CEF ficou encarregado de administrar o Fundo de Investimento Imobiliário do Porto Maravilha — FIIPM. Assim, supôs-se que o arranjo institucional criado neutralizaria pressões por interesses políticos, priorizando-se as opiniões técnicas e proporcionando segurança jurídica para os investidores e para o equilíbrio financeiro da operação urbana.

Spacca

Assim, quando do leilão para Oferta Pública de Certificados de Potencial Adicional Construtivo (Cepac) na bolsa de valores, em 2011, a CEF adquiriu a integralidade dos ativos financeiros com o intuito de os revender após valorização imobiliária. Para isso, o edital previu que deveria ser ofertado ao fundo um conjunto de terrenos — dentre os quais o gasômetro — que permitisse a absorção de 75% dos Cepac, sob pena de os certificados ficarem encalhados [7].

Terreno incorporado ao Fundo

Vale salientar que o terreno do antigo gasômetro foi incorporado ao patrimônio do FIIPM em junho de 2013 [8], após o exercício da prerrogativa de poder de compra da terra pela aquisição dos respectivos Cepac, conforme disposto no edital “Oferta Publica de Distribuição Secundaria de Cepac”. [9]

Desse modo, percebe-se que, além do objetivo arrecadatório, a venda de Cepac teve, principalmente, um intuito especulativo [10]. Isso porque a arquitetura financeira desenvolvida tem como premissa a valorização expressiva dos Cepac e dos terrenos com vistas a maximizar a margem de retorno ao capital financeiro privado. Assim, os técnicos da CEF são orientados a tornar a operação o mais rentável possível, atendendo aos investidores.

A nosso sentir, a principal razão para o entrave exacerbado [11] ao desfecho das negociações foi a engenharia financeira do Projeto Porto Maravilha. Como em toda negociação, cada parte possui seus próprios interesses e pontos de vista, esforçando-se para que prevaleçam.

A falta de consenso, então, residiu, dentre outros fatores, na prevalência dos interesses do capital financeiro em detrimento da potencial geração de empregos e opções de serviços e lazer para os moradores do entorno, bem como de atração de turistas. Com efeito, os tribunais já apreciaram ações judiciais [12] que versaram sobre o direito à cidade dentro do perímetro da OUC do Porto Maravilha.

Ainda que, para os investidores privados, possa não ser vantajosa a alienação do terreno por R$ 250 milhões — tendo em vista a alegação de valorização imobiliária pela construção do Terminal Gentileza —, tudo leva a crer que o interesse público estaria mais bem atendido se houvesse sido celebrado o negócio do FIIPM para o Flamengo, beneficiando-se a cidade como um todo, nos termos do que aduz o § 1º do artigo 32 da Lei Federal nº 10.257/2001 (melhorias sociais).

Para concluir, nota-se a influência da lógica privada na reformulação da área portuária do Rio de Janeiro, onde deve ser erguido o novo estádio do Flamengo. O caso do imbróglio entre a CEF e o clube nada mais é do que uma demonstração de que o planejamento urbanístico na localidade vem sendo orientado por cálculos econômicos voltados para estimular o mercado, e não a cidade [13].

 


[1]A página 123 do Diário Oficial da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro de 07/06/2024 revela a nomeação do vereador Marcos Braz para constituir a comissão especial com a finalidade de acompanhar o processo da definição do espaço que sediará a construção do estádio. Vide RIO DE JANEIRO. Câmara de Vereadores. Diário Oficial. Disponível em <https://dcmdigital.camara.rj.gov.br/web/viewer.html?file=../storage/files/2024/6/20240607B550F742.pdf>. Acesso em 21 jun 2024.

[2] PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Diário Oficial do Município de 24 de junho de 2024. Disponível em < https://doweb.rio.rj.gov.br/portal/edicoes/download/6648 >. Acesso em: 24 jun 2024.

[3]O GLOBO. Com frentes na Câmara de Vereadores e no Congresso, entenda jogo político que busca viabilizar estádio do Flamengo. O Globo. Rio de Janeiro, 10 jun. 2024 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/esportes/futebol/flamengo/noticia/2024/06/10/jogo-politico-que-busca-viabilizar-novo-estadio-do-flamengo.ghtml>. Acesso em: 20 jun 2024.

[4] BRASIL. Caixa Econômica Federal. Regulamento do Fundo de Investimento Imobiliário da Região do Porto. Demonstrações contábeis Caixa FII Porto Maravilha Dez 2023. Disponível em < https://www.caixa.gov.br/Downloads/investidores-institucionais-fii-porto-maravilha/Demonstracoes_contabeis_Caixa_FII_Porto_Maravilha_Dez_2023.pdf >. Acesso em 23 jun 2024.

[5] PEREIRA, Alvaro Luis dos Santos. Intervenções em centros urbanos e conflitos distributivos: modelos regulatórios, circuitos de valorização e estratégias discursivas. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2015, p. 87.

[6] PEREIRA, op. cit., p. 147.

[7] PEREIRA, op. cit., p. 202.

[8] PEREIRA, op. cit., p. 212.

[9] PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Edital do Leilão dos CEPAC. Disponível em: https://api.mziq.com/mzfilemanager/v2/d/31984144-b5d8-42f6-b944-26345a820727/38f84a0a-5d19-4053-8c7d-47abc38a0c61?origin=2. Acesso em: 20 jun 2024.

[10] Vide CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 3ª edição revista, ampliada e atualizada. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2009, p. 230.

[11] TIRONI, Eduardo. Flamengo: Prefeito do Rio ameaça desapropriar terreno em prol do estádio. UOL, Aracaju. 28 mai. 2024. Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2024/05/28/flamengo-prefeito-do-rio-ameaca-desapropriar-terreno-em-prol-do-estadio.htm>. Acesso em 03 jun 2024.

[12] Processo nº 0230991-10.2017.4.02.5101; Processo nº 0052698-24.2013.8.19.0001; Processo nº 0069898-10.2014.8.19.0001.

[13] ANDRADE, Leandro Teodoro. Manual de direito urbanístico. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 48.

Autores

  • é advogado no escritório Cavadas, Lainetti & Barreto de Mello Advogados, mestre em Direito da Cidade (PPGD/UERJ), membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (IDARJ) e editor na Revista de Direito da Cidade.

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