Opinião

Uma nova chance aos acordos de leniência da operação 'lava jato'

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28 de junho de 2024, 7h02

Os acordos de leniência voltaram à mesa de negociação. Na iminência do prazo adicional de 60 dias definido na decisão monocrática do ministro André Mendonça, do STF (Supremo Tribunal Federal), empresas lenientes, CGU, MPF, AGU, TCU e PGR têm tempo para alcançar o que até hoje não foi possível: a revisão dos acordos de leniência celebrados no contexto da operação “lava jato”. Até lá, vigora uma espécie de “moratória”, que impede a aplicação de sanções às empresas pelo inadimplemento das obrigações assumidas, especialmente o pagamento de multas e indenizações. Foco total na renegociação.

O ministro André Mendonça, do STF

Há tempos as empresas amargam o pagamento dos valores pactuados nos acordos de leniência. Boa parte delas sustentam que as leniências padeceriam de um “pecado original”: em um contexto de absoluta e irresistível coação, alegam, o punitivismo culminou em patamares de valores demasiadamente altos. Já de partida, as empresas tinham dúvidas sobre a capacidade de honrar com os pagamentos. Com o passar do tempo, a dúvida virou uma certeza.

Uma a uma, as empresas lenientes buscaram as autoridades públicas para rever os termos dos acordos de leniência. Até um novo decreto da Lei Anticorrupção, editado em 2022, previu expressamente a renegociação dos acordos de leniência. As esperadas alterações não vieram.

O pecado original dos acordos de leniência é controverso. Porém, é dado da realidade que as empresas lenientes não conseguem arcar com os pagamentos assumidos. Pelo menos cinco fatores explicam tamanha dificuldade:

(1) de um modo geral, a negociação dos acordos foi demorada — enquanto se negociava com valores ancorados na época da bonança, as empresas batiam mensalmente seus próprios recordes de prejuízo consolidado;

(2) o cenário vislumbrado pelas empresas de acesso aos créditos públicos e privados com a celebração das leniências, cruciais ao desenvolvimento da atividade econômica, não se efetivou (teria o Poder Público descumprido com a sua parte?);

(3) as empresas não conseguiram superar o cenário de crise: várias empresas lenientes contabilizaram os custos econômicos decorrentes da má-gestão com falhas severas de integridade, enquanto parte delas pedira recuperação judicial, como próprio do risco do negócio;

(4) para muitos, o ano de 2013 foi o começo do fim: protestos ostensivos nas ruas, impeachment, escândalos de corrupção, dúvidas sobre a capacidade de as instituições públicas reagirem a cenário tão complexo (especialmente o Judiciário) e retração econômica, ou seja, o cenário de execução dos acordos de leniência é marcadamente diverso do cenário de pactuação dos acordos;

(5) o desenho dos acordos de leniência foi excessivamente simplista quanto ao cumprimento das obrigações, limitando-se a uma análise binária “cumpriu-ou-não-cumpriu”, desconsiderando elementos contextuais e de capacidade subjetiva que, em regra, são atentadas nos demais acordos administrativos e contratos.

Revisão necessária

Não convém debater nesse espaço razões, culpas e oportunismos. A revisão dos acordos de leniência é necessária. O balcão de negociação da vez é o próprio Supremo, que entrou em cena provocado, em março de 2023, pelo PSOL, PC do B e Solidariedade na ADPF 1.051.

No dia 26 de fevereiro de 2024, o ministro André Mendonça promoveu reunião entre representantes dos órgãos públicos e empresas lenientes interessadas. A questão da coação foi superada de forma bastante pragmática: o ministro, que era advogado-geral da União na época da pactuação dos acordos de leniência, questionou diretamente os presentes sobre se tinha ocorrido, ou não, coação no processo de negociação. Silêncio. Quem cala consente? A partir daí, a reunião pode seguir adiante tratando da governança da revisão dos acordos de leniência no âmbito do STF. Aparentemente, o sonho de consumo do balcão único se realizou.

É complexo e desafiador o arranjo de governança definido no Termo de Audiência de Conciliação para revisão dos acordos de leniência. Primeiramente, são muitas as empresas e instituições públicas que se sentam à mesa de renegociação, trazendo todas suas prerrogativas, frustrações, expectativas e interesses. Some-se a isso o fato de cada acordo de leniência ser uma realidade própria. Há diferenças significativas entre as leniências, como os ilícitos que alcançam, o modo de colaboração, o tipo de atividade econômica e a própria estrutura da leniência.

Ciente disso, o Supremo trouxe balizas principiológicas para a dinâmica de revisão: boa-fé na negociação; mútua colaboração e cooperação entre as instituições; confidencialidade; razoabilidade; e proporcionalidade. Mas a dinâmica de revisão é imprecisa. MPF, CGU e AGU devem apresentar relatório de renegociação ao Min. André Mendonça, PGR e TCU serão escutados e, posteriormente, haverá a homologação dos acordos de leniência revistos.

A renegociação está em curso e torcemos para o melhor desfecho, mesmo diante da complexidade do arranjo de governança da repactuação. A tarefa é árdua. Pelo Termo de Audiência de Conciliação, os órgãos devem atuar em coordenação, observando as competências expressas previstas na Lei Anticorrupção e critérios uniformes para renegociação dos acordos de leniência. Entendemos que as diretrizes a seguir podem ajudar:

  1. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) tem regra expressa sobre acordos (art. 26) que se aplica às leniências, inclusive as celebradas no contexto da “lava jato”. Seus importantes parâmetros devem ser observados na repactuação, com especial destaque para o dever de o acordo ser proporcional e equânime. Na prática, isso significa que o conjunto das obrigações pactuadas nem podem ser “leves demais” ou “pesadas demais” diante da dos fatos. Pela Lindb, o acordo será sempre uma solução jurídica e é nesses termos que a leniência precisa ser encarada: como uma solução definitiva, estável e com segurança jurídica sobre seu cumprimento. Pela Lindb, os acordos devem satisfazer interesses gerais. Assim, uma boa repactuação não se resume ao que é melhor para as partes celebrantes — é imprescindível que os efeitos gerais sejam considerados, notadamente o impacto dos termos da repactuação sobre a política de combate à corrupção e os incentivos às futuras negociações de acordos de leniência.
  1. A repactuação é bem-vinda nas leniências, mas é preciso cautela para evitar que os incentivos para futuras celebrações de acordos de leniência se percam. Uma repactuação integral, que praticamente desconsidere as tratativas originais e a estrutura fundamental do acordo, pode assinalar erroneamente que a não há necessidade de concentrar grandes esforços na pactuação (afinal, dá para rever depois). É fundamental que se preserve, pelo menos, o método de colaboração convencionado, as obrigações de integridade assumidas e os critérios para definição dos valores (o que não se confunde com os valores em si). Nada impede, porém, os critérios originalmente considerados no processo de negociação dos acordos de leniência sejam trazidos a tempo presente para definição de novos valores ou formas de cumprimento das obrigações pecuniárias. Do mesmo modo, é natural que os valores pecuniários sejam reduzidos se a empresa assumir mais compromissos relacionados ao programa de integridade.
  1. Cada caso é um caso. Por mais óbvio que seja esse brocardo jurídico, ele precisa ser levado a sério na repactuação das leniências, evitando-se que se construam fórmulas universalizantes e reducionistas da necessária complexidade que particularizam cada um dos acordos. Aqui, a isonomia se aplica muito mais ao processo de repactuação (todas as empresas devem ter o mesmo tratamento legal e as mesmas oportunidades de negociação) do que propriamente ao resultado. A repactuação será exitosa se conseguir particularizar as soluções finais, considerando, entre outros fatores, o contexto de celebração e execução dos acordos; os impactos econômicos, empresariais e operacionais sofridos pela empresa; o grau de colaboração da empresa com o Poder Público; o quão avançada está implementação dos programas de integridade etc.
  2. Para ser válida, a repactuação requer ampla e qualificada motivação. As razões das alterações dos acordos devem ser públicas e transparentes, considerando a sua efetividade para superar os problemas de inexecução da leniência e sua validade legal. Embora não haja o dever de transcrever e explicitar todas as tratativas na renegociação, o aditivo consensual precisa ser motivado para fins de controle social, previsibilidade e segurança jurídica sobre a repactuação das leniências.
  3. Pode ser um erro entender que a repactuação irá resolver o problema da execução das leniências no Brasil. Isso porque o desenho de acordo de leniência adotado no Brasil — com prazos superiores a 20, 30 anos — determina que o acordo tenha natureza de contrato incompleto. É absolutamente previsível que no futuro as empresas passarão por novos desafios, os programas de integridade poderão ser aprimorados (especialmente com a assimilação de novas tecnologias e uso da inteligência artificial), mudarão a dinâmica e a disciplina regulatória dos mercados em que operam, novos desdobramentos fáticos serão revelados etc. Portanto, a repactuação deve normalizar a revisão ordinária dos acordos, a par da revisão extraordinária como hoje evidenciada no STF. Recomenda-se a inserção de uma cláusula de revisão ordinária em periodicidade adequada para a realidade de cada leniência (a solução universal dos cinco anos do Direito Público deve ser rechaçada).
  4. Essa é a oportunidade de trazer para as leniências as melhores práticas em matéria de consensualidade administrativa. O dispute board pode ser uma ótima solução para prevenir eventuais conflitos relativos à execução dos acordos de leniência, assim como a previsão de um verificador independente. Outra boa técnica é a previsão de comitê de governança do acordo de leniência, que pode proferir parecer prévio às revisões ordinárias e aos debates sobre descumprimento de seus termos. Acordos substitutivos de investimento, como os celebrados pela Anatel, e os mais sofisticados contratos de concessão, estes que também têm natureza de contrato incompleto, são bons referenciais.

 

Desejamos sorte e sucesso na repactuação das leniências. Mais do que viabilizar a execução no curto prazo, especialmente quanto ao ability to pay, a revisão dos acordos de leniência deve ser orientada para o seu sucesso do programa de leniência no combate à corrupção no longo prazo.

Para as leniências em repactuação, suas novas cláusulas devem se orientar pela estabilidade dos acordos de um modo aparentemente contraditório, mas de grande efetividade: pela introdução de mecanismos de revisão ordinária de seus termos e o aproveitamento das melhores soluções de eficiência em experimentação na consensualidade administrativa.

Para as futuras leniências, a repactuação hoje deve se preocupar em reforçar a instrumentalidade dos acordos e seus principais incentivos que, de fato, mobilizam as empresas a confessarem e colaborarem.

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