Opinião

O Judiciário e o direito à educação

Autor

  • Flávio Dino

    é juiz federal ex-presidente e diretor da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) membro da Comissão Especial de Combate ao Trabalho Forçado (CDDPH/MJ) e mestre em Direito Público.

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28 de junho de 2024, 6h01

Conferir a máxima efetividade ao direito à educação é um dos mais importantes passos para que consigamos remover a mais grave das corrupções que perpassam a história do Brasil: as obscenas desigualdades sociais.

Neste último mês de maio, tivemos uma notícia geradora de esperanças. O índice de crianças alfabetizadas na idade certa (7 anos) voltou a crescer, superando o patamar de antes da Covid-19. Isso significa que as sequelas educacionais deixadas pela pandemia começam a ser revertidas. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), os números de 2023 mostram que 56% dos pequenos estudantes brasileiros do segundo ano do ensino fundamental sabem ler; em 2019, eram 54,7%.

Entre os estados, o Maranhão despontou com o maior crescimento da alfabetização, saindo de 33,1% em 2019 para 56% em 2023. Um avanço que me deixou muito feliz, visto que, durante o período em que fui governador do Maranhão (2015-2022), estruturamos um tripé essencial: infraestrutura escolar, com mais de 1.000 obras educacionais; valorização dos professores, pagando sempre muito acima do piso salarial nacional; e fortalecimento da aprendizagem, com ênfase no regime de colaboração do Estado com os municípios.

Deveres jurídicos

Não há dúvida de que os números ainda estão muito aquém do que a nossa Nação precisa, o que sublinha a imperativa observância de deveres jurídicos.

A Constituição Federal determina, logo no artigo 6º, que a educação é um direito social, portanto, uma obrigação do Estado Brasileiro. No artigo 23, inciso V, a nossa Carta Magna dispõe que é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios proporcionar os meios de acesso à educação. Em seu artigo 205, a Constituição estabelece que a educação, “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Além disso, em seu artigo 214, a Lei Maior ordena a elaboração, a cada dez anos, do Plano Nacional de Educação, com o objetivo de articular as políticas educacionais das diferentes esferas federativas, tendo entre seus objetivos a erradicação do analfabetismo e a universalização do acesso escolar.

No plano infraconstitucional, o Brasil possui vários diplomas normativos que tratam sobre educação, sendo o principal deles a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que instituiu as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). De relatoria do senador Darcy Ribeiro, um dos maiores intelectuais da nossa Pátria, a LDB consagra, no artigo 4º, que o dever do Estado será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade; de atendimento educacional inclusivo às pessoas com deficiência; e do acesso ao ensino para todos os que não concluíram na idade própria. Também merece destaque a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que institui o já mencionado Plano Nacional de Educação, firmando as bases do federalismo cooperativo em matéria educacional.

A proteção constitucional e legal do direito à educação no Brasil articula-se com os compromissos firmados pelo Estado brasileiro no âmbito internacional. Entre eles, destaco os decorrentes da incorporação do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais ao nosso ordenamento jurídico, que reconhece, em seu artigo 13, §1º, que os estados “concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais.

Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”.

Defesa dos direitos educacionais

Com base no acervo normativo acima resumido, a judicialização em defesa dos direitos educacionais é uma realidade bastante frequente. A LDB, em seu artigo 5º, fixa que qualquer cidadão, entidade ou ainda o Ministério Público pode buscar o Judiciário para exigir que o direito à educação seja observado. Recentemente, em setembro de 2022, por meio do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.008.166, com repercussão geral (Tema 548), os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aprovaram a seguinte Tese:

“1. A educação básica em todas as suas fases – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio — constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata. 2. A educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5 anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo. 3. O Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica.”

O mesmo argumento — de que cabe ao Poder Judiciário, em situações excepcionais, determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos reconhecidos como essenciais — foi usado no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 635.679, proposto pelo estado de Goiás. Por ele, o ente federativo buscava reverter decisão da Justiça local que julgou procedente o pedido do Ministério Público, em Ação Civil Pública, de construção de salas de aula em número suficiente ao adequado atendimento da população. A 1ª Turma do STF confirmou a decisão e determinou a construção das salas de aula.

Há muitos outros exemplos merecedores de atenção, tais como:

a) constitucionalidade da política de cotas para acesso ao ensino superior (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186);

b) garantia de acesso à internet na educação básica pública, no contexto da pandemia (Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.926);

c) recentemente, em processo de minha relatoria, a 1ª Turma do STF impediu o desvio de finalidade de recursos educacionais, ao decidir — no Recurso Extraordinário 1.481.956: “Nem o Fundef/Fundeb, nem os juros de mora, podem ser usados para a afetação em outras políticas públicas (pavimentação de ruas, pagamento de dívidas, custeio de serviços em geral etc.). Imposição derivada do artigo 5° da EC n° 114/2021.”

Como se observa, mencionei ao longo do texto ações concretas dos três Poderes da República e dos três níveis da Federação. Fiz questão de assim proceder para demonstrar que, nesta senda trevosa marcada pelas ameaças à democracia, a harmonia entre os Poderes e o federalismo cooperativo são caminhos ainda mais imprescindíveis. Somente com união podemos abrir avenidas de oportunidades para as crianças e jovens do nosso país. E para todos nós.

Autores

  • é ministro do STF. Mestre em Direito Público pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Membro da AML (Academia Maranhense de Letras).

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