Paradoxo da Corte

Nulidade de algibeira não tem chance num recente julgado do STJ

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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28 de junho de 2024, 8h00

O exercício profissional revela que há julgamentos que marcam época e, pela sua relevância, estão vocacionados a potenciar precedentes em prováveis futuras situações análogas.

Spacca

Chamo a atenção para o formidável desfecho, aliás, aguardado com muita expectativa pela comunidade jurídica paulista do Recurso Especial 2.101.901/SP, então interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça bandeirante, que rechaçara a alegação de nulidade da sentença arbitral, lastreada no defeito de revelação, visto que um dos árbitros deixara de informar certa relação profissional com uma empresa que mantinha negócios com a parte que o indicara para atuar num determinado processo arbitral.

Por maioria de votos, na sessão do dia 18 de junho passado, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça desproveu a mencionada impugnação, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi.

O mais interessante nesse julgamento é que os cinco ministros, na motivação dos respectivos votos declarados, não divergiram quanto aos pressupostos legais que devem prevalecer no que se refere ao dever de revelação.

Ocorre que a maioria, formada pela eminente relatora e pelos ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze, além da fundamentação teórica, examinaram a questão sob a perspectiva de seus pontos peculiares.

A rigor, como tenho afirmado, vieses de argumentação jurídica que não se importam com a aplicação das regras do direito em situações concretas tornam o julgamento estéril e puramente dogmático.

Dever de revelação

Considerando o caráter preponderantemente consensual da arbitragem, durante o procedimento de escolha dos árbitros, têm estes o dever de declinar absoluta isenção ao assumir o encargo para atuar de forma independente e imparcial. É esse o momento no qual os árbitros indicados têm também o dever de revelar qualquer relação que não seja de conhecimento público, mínima que seja, com uma das partes. A inobservância do dever de revelação, que realmente tenha relevância, já evidencia inaptidão para o exercício legítimo da função de árbitro.

A rigor, é exatamente o que ocorre na esfera do processo estatal, no qual o juiz deve, de logo, afastar-se de um determinado caso se tiver alguma espécie de relacionamento que possa comprometer a sua imparcialidade e independência.

Com efeito, dispõe o artigo 146 do Código de Processo Civil que o próprio juiz pode reconhecer a sua suspeição, remetendo os autos ao seu substituto legal. Dúvida não há de que o juiz que descumpre esse mister afasta-se da postura de impessoalidade, isto é, do dever de declinar aspecto crucial que caracteriza a pedra angular da imparcialidade.

O artigo 14 da Lei de Arbitragem, nesse particular, faz expressa remissão ao Código de Processo Civil, aplicando aos árbitros os mesmos motivos de impedimento e de suspeição, previstos respectivamente nos artigos 144 e 145.

Nos domínios da arbitragem, destarte, exige-se a imparcialidade e a independência dos árbitros como pressuposto de validade do respectivo processo. Daí, porque o parágrafo 1º do aludido artigo 14 dispõe que: “As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”.

Esse conhecido critério da “dúvida justificada”, adotado pelo texto legal pátrio, segundo ensina Gary Born, deve ser analisado de forma objetiva, ou seja, “qualquer objeção em relação à imparcialidade ou independência do juiz deve fundamentar-se em provas suficientes a afastar o árbitro” (International Commercial Arbitration, vol. 1, Kluwer Law International, 2009, pág. 1.477-1.478).

Ações anulatórias

Ocorre que, mais recentemente, embora sem dispormos de estatística atualizada, a experiência revela que tem aumentado à toda evidência o número de ações anulatórias ajuizadas pela parte que sucumbiu (portanto, depois de a sentença ter sido proferida), com fundamento na falha do dever de revelação imposto ao árbitro e, portanto, da exigência de imparcialidade.

Numa obra pouco conhecida e hoje rara, intitulada O Advogado da Roça (Rio de Janeiro, Typ. Fonseca, 1917, pág. 28), ressalta Manoel Martins da Costa Cruz que a parte derrotada pode suscitar tudo que desejar nas razões de um eventual recurso de apelação, mas não pode apontar vício formal atinente à pessoa do magistrado que tenha ocorrido antes da prolação da sentença. Nestes casos, frisa ele com peculiar simplicidade trata-se de “nulidade de algibeira”, expressão essa que ficou consagrada no nosso vocabulário jurídico, a indicar o comportamento desleal do litigante matreiro, que imagina ter ficado com uma carta na manga, para utilizá-la após o proferimento da sentença, caso lhe seja desfavorável.

E, assim, no âmbito do processo arbitral, a parte que desejar arguir a incapacidade do árbitro por algum motivo de suspeição, a teor do artigo 20 da Lei n. 9.307/96, deverá “fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem”.

Constata-se, no entanto, que, na maioria das ações anulatórias, a parte que sai derrotada no processo arbitral guarda “no bolso do colete” a alegação (tardia) de suspeição do árbitro, para suscitá-la na ação judicial em que busca a anulação da sentença arbitral. Configura-se aí um caso clássico da denominada “nulidade de algibeira”!

Como bem frisado por Hermes Marcelo Huck, em original ensaio intitulado As táticas de guerrilha na arbitragem (publicado na coletânea 20 anos da lei de arbitragem, São Paulo, Gen-Atlas, 2017, p. 312):

“Há práticas processuais de guerrilha que extrapolam os limites e podem ser consideradas litigância de má-fé. A tática primeira do guerrilheiro arbitral é fugir do processo. Tão logo notificado do requerimento de arbitragem ou se queda silente ou encaminha a petição à Câmara argumentando sobre o descabimento da arbitragem. São os brados de inarbitrabilidade objetiva ou subjetiva que primeiro são ouvidos pelas Câmaras. A lei oferece instrumentos para superar tais chicanas, porém a inafastável consequência dessas práticas — por mais infundadas que sejam — implicam o retardamento do início do processo. Não raro, a parte fugitiva, esgotadas as manobras diversionistas, acaba por surgir no dia da audiência para assinatura do termo, reiterando protestos e clamando ameaças de nulidade. Essa é apenas a tática inicial, pois outras tantas podem surgir, na sequência… Cabe também mencionar o velho estratagema de retardar o processo apresentando impugnações frívolas ao nome do árbitro indicado pela parte contrária ou ao presidente do tribunal. Casos há em que o guerrilheiro apresenta impugnação ao próprio árbitro por ele nomeado. Não raro, para postergar a formação do tribunal, a parte chicaneira submete questionários despropositados a serem respondidos pelos árbitros já indicados, e, quando não, levanta exigências solicitando revelações descabidas, que resultam em impugnações igualmente descabidas. A literatura arbitral é prolífica em tratar casos dessa estirpe que, ao final, são resolvidos — mas não raro —, implicam renúncias desnecessárias e significativo atraso no curso do processo.”

Em determinadas circunstâncias, ainda mais graves, a alegação de suspeição ocorre apenas na petição inicial da ação anulatória da sentença arbitral. Nesses casos, em várias ocasiões, age a parte demandante imbuída de inequívoca má-fé, pois retira do árbitro a oportunidade de apresentar esclarecimentos aos fatos que lhe são imputados, porque toma conhecimento de tais alegações somente depois de ajuizada a ação anulatória.

Importa consignar que a arguição de parcialidade é muito séria, em particular, para o árbitro impugnado, uma vez que, em regra, atinge ela de modo indelével a sua própria honra! Todavia, no nosso direito, não há previsão alguma para uma adequada reprimenda àquele que ajuizou uma ação anulatória despida de provas.

Aduza-se, outrossim, que a alegação extemporânea atinente à suspeição do árbitro, por motivos anteriores à própria instauração do processo arbitral, não pode ser acolhida quando deduzida como alicerce da ação anulatória. E isso porque operou-se, de forma inequívoca, preclusão temporal acerca dessa questão. É dizer: a suspeição do árbitro não alegada no momento processual oportuno, no bojo do processo arbitral, não mais pode ser objeto de discussão em futura ação anulatória.

Fundamentos

Pois bem, no caso julgado pela 3ª Turma, acima referido, a causa petendi deduzida na ação anulatória escudava-se em dois fundamentos, a saber: a) o árbitro declarou no questionário enviado pela câmara que nunca havia atuado na função anteriormente; e b) omitiu que integrava escritório de advocacia que prestava serviços para uma empresa que depende financeiramente da parte que o indicou como coárbitro.

O voto vencedor, da ministra relatora Nancy Andrighi, assevera que eventual omissão no dever de revelação por si só não é motivo suficiente para anulação da sentença arbitral. Tal posição longe está de flexibilizar o dever de revelação. E isso, porque se descortina imprescindível a existência de um conjunto probatório irrefutável, apto a demonstrar que o árbitro, ao escamotear algum fato relevante, tinha em mente beneficiar uma parte em detrimento da outra, textual:

O fato não revelado apto a anular a sentença arbitral precisa demonstrar extinguir a confiança da parte e abalar a independência e a imparcialidade do julgamento do árbitro. Para tanto, são necessárias provas contundentes, não bastando alegações subjetivas desprovidas de relevância no que tange aos seus impactos…”

Na hipótese concreta, entendeu a eminente ministra que todos os argumentos expendidos pela demandante recorrente já eram de conhecimento público desde o início da arbitragem.

Salientou outrossim que seu convencimento decorre da circunstância de que no caso em apreço há uma peculiaridade, qual seja, a de que a alegação de parcialidade foi suscitada apenas após a prolação da sentença que foi desfavorável à parte que, posteriormente, ajuizou a indigitada ação anulatória.

O ministro Ricardo Cueva, a seu turno, acompanhando a relatora, seguiu a mesma linha de raciocínio, pontuando que, à luz das diretrizes internacionais e nacionais que orientam as relações entre os protagonistas do processo arbitral, se de um lado há o dever de revelação, de outro, há o denominado “dever de curiosidade ativa”, pelo qual as partes devem igualmente, na medida do possível, sindicar as condições pessoais do árbitro indicado pelo outro litigante.

Nesse sentido, ainda, o pronunciamento judicioso e convergente do ministro Marco Aurélio Bellizze, acrescentando, com arrimo nas diretrizes da IBA (International Bar Association), que a mera alegação de quebra do dever de revelação não implica automaticamente parcialidade do árbitro, in verbis:

“(…) a violação ou a inadequada observância do dever de revelação pelo árbitro, isoladamente considerada, não tem o condão de anular automaticamente a sentença arbitral, devendo o Poder Judiciário, a esse propósito, no âmbito da correlata ação, se assim provocado tempestivamente, examinar se o fato não revelado tem o condão de, concretamente, comprometer a parcialidade e a independência do árbitro na solução do conflito de interesses que lhe foi submetido” (destaques no original).

Desse modo, ao negar provimento ao mencionado recurso especial, a 3ª Turma manteve a improcedência do pedido de ação anulatória, num caso que teve grande repercussão, ao concluir que, à míngua de prova robusta, não restou demonstrada qualquer ofensa ao princípio da confiança.

Ressalte-se, por fim, a conclusão do ministro Ricardo Cueva, ao afirmar que o Superior Tribunal de Justiça, por força da Emenda Constitucional nº 45, passou a ter a prerrogativa de ser o guardião do sistema arbitral brasileiro e, assim, nessa condição, tem prestigiado, tanto quanto possível, a higidez das sentenças arbitrais, em prol da segurança jurídica.

De minha parte, tenho convicção de que este importantíssimo precedente vira uma página da exitosa trajetória da arbitragem no Brasil, ao mesmo tempo que tem o mérito de contribuir para a correta delimitação do dever de revelação imposto aos árbitros.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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