Opinião

Manifestante desarmado que não invadiu Três Poderes cometeu algum crime?

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28 de junho de 2024, 6h32

Os atos bárbaros perpetrados em 8 de janeiro de 2023 contra as sedes dos Três Poderes da União são dignos de hercúlea repulsa. Não há quem, em sã consciência, concorde com o vandalismo levado a cabo naquele fatídico dia.

Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

No entanto, a punição de tais condutas, mormente na esfera criminal, deve se ater aos limites impostos pela Constituição da República e pela legislação penal e processual penal, sob pena de esvaziamento do Estado democrático de Direito, do devido processo legal, do princípio da presunção de inocência e da própria dignidade da pessoa humana, cuja densidade normativa norteia a integralidade dos direitos fundamentais.

Dito isso, este articulista teve notícia de que a Procuradoria-Geral da República (PGR), a partir de fotografias ou filmagens, vem oferecendo inúmeras denúncias, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), em face dos manifestantes que, na data de 08/1/2023, encontravam-se na área externa da Praça dos Três Poderes, mas que (i) não invadiram a sede dos Três Poderes, (ii) não depredaram o patrimônio público e (iii) não estavam armados.

Na peça acusatória, o órgão ministerial, valendo-se da definição de crime multitudinário, vem requerendo a condenação de inúmeros acusados pela prática dos seguintes crimes:  associação criminosa armada (artigo 288, parágrafo único, do CP); abolição violenta do Estado democrático de Direito (artigo 359-L do CP); golpe de Estado (artigo 359-M do CP); dano qualificado (artigo 163, parágrafo único, I, II, III e IV, do CP); e deterioração de patrimônio tombado (artigo 62, I, da Lei nº 9.605/1998).

Competência

O primeiro questionamento a ser feito, diante dessa conjuntura, é se a Suprema Corte seria, ou não, competente para receber tais ações penais. A resposta à indagação em testilha perpassa, necessariamente, pela análise da premissa sedimentada pelo STF nos autos da Ação Penal (AP) nº 1.060.

Com efeito, na supracitada açãopPenal, o Pretório Excelso firmou compreensão no sentido de que “compete ao STF processar e julgar ação penal ajuizada contra civis e militares não detentores de foro privilegiado quando existir evidente conexão entre as suas condutas e as apuradas no âmbito mais abrangente de procedimentos em trâmite na Corte que envolvam investigados com prerrogativa de foro”. [1]

À luz do posicionamento adotado pela Excelsa Corte, afigura-se forçoso reconhecer que o “parquet” deve, quando do oferecimento da exordial acusatória, descrever a “evidente” conexão entre as condutas dos acusados e as demais apuradas no âmbito daquele Sodalício.

Para além disso, a demonstração da “evidente” conexão, nos moldes delineados pela Suprema Corte, deve ser, diga-se de passagem, lastreada em indícios mínimos de autoria e materialidade, não bastando, desse modo, que a ação penal, ao argumento de se tratar de crime multitudinário, pleiteie a condenação de pessoa que, apenas e tão somente, estava no ambiente externo da Praça dos Três Poderes.

Em suma, o simples fato de o sujeito, desarmado e sem qualquer liame com os vândalos que invadiram e vilipendiaram o patrimônio público, ter estado no exterior da Praça dos Três Poderes revela-se, mercê do artigo 76 do CPP, insuficiente para deslocar a competência para o STF.

Conquanto superada a questão da competência do STF para examinar a matéria, emerge salutar avaliar se as pessoas desarmadas presentes nos atos do dia 08/01/2023, que não depredaram ou invadiram as sedes dos Três Poderes da União e que não tinham ligação com os invasores, praticaram alguma conduta tipificada na legislação penal.

Tese central

No tocante às condutas perpetradas no dia 8/1/2023, a tese central do órgão acusador, até então encampada pela Corte Suprema, está fulcrada, essencialmente, na existência do denominado crime multitudinário ou de autoria coletiva, no qual os agentes agem sob a influência uns dos outros para a prática da infração penal.

Ao julgar a temática no espectro da AP nº 1.413/DF, o Supremo entendeu que “a invasão aos prédios públicos se deu em contexto de crime multitudinário, ou de multidão delinquente, sendo dispensável, portanto, a identificação de quem tenha efetivamente causado os inúmeros danos acima exemplificados e descritos nos relatórios constantes dos autos, e evidenciando-se que os líderes e responsáveis efetivos deverão responder de forma mais gravosa, nos termos da legislação penal.” [2]

Depreende-se do excerto acima que a impossibilidade de identificação e individualização da conduta do sujeito é condição sine qua non para a configuração do crime multitudinário.

Nessa linha de raciocínio, incumbe a PGR demonstrar, a partir de indícios mínimos de autoria e materialidade, que o manifestante invadiu algum prédio público ou pelo menos estava portando, na área externa da Praça dos Três Poderes, algum apetrecho incompatível com uma manifestação pacífica.

Assim sendo, não basta, sob pena da indesejada responsabilidade penal objetiva e da consequente inserção de todos os manifestantes na mesma vala comum, que o Ministério Público anexe à ação penal fotografias ou vídeos da pessoa física nas adjacências (gramado, vias do Eixo Monumental etc.) das sedes dos Três Poderes, presumindo que, em virtude disso, tenha ocorrido um crime multitudinário, porquanto este demanda que o sujeito ativo esteja “ciente de sua atuação em harmonia com os atos de outrem, numa concorrência de vontades bem caracterizada”. [3]

Deveras, é notório que centenas de pessoas não chegaram nem perto dos prédios públicos. Algumas, inclusive, foram filmadas e fotografadas a mais de 300, 400, 500 metros de distância das sedes. Outras, provenientes de outros estados da Federação, aportaram em Brasília na antevéspera ou véspera dos atos do 8 de Janeiro, com o escopo de comparecer a uma manifestação que, ao menos para alguns, se dizia pacífica.

Nesse cenário, considerando que o emprego de violência ou grave ameaça é ínsito aos delitos de Abolição violenta do Estado democrático de Direito e golpe de estado, bem como que a associação criminosa “armada” pressupõe, evidentemente, o porte de alguma arma (de fogo, branca, entre outras), revela-se inquestionável a atipicidade da conduta do manifestante desarmado que não invadiu qualquer prédio público. Por ilação lógica, à míngua de ingresso ou dano causado às sedes dos Três Poderes, é insofismável a inexistência dos crimes de dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

É preciso, portanto, separar o joio (invasores/vândalos) do trigo (não invasores), a fim de se evitar o cometimento de gravíssimas injustiças.

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[1] Informativo 1.108 do STF. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/informativoSTF/anexo/Informativo_PDF/Informativo_stf_1108.pdf

[2] AP 1413, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 03-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 23-11-2023  PUBLIC 24-11-2023

[3] AP 1502, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 14-09-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 16-02-2024  PUBLIC 19-02-2024

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