Opinião

Juízo de admissibilidade e controle de constitucionalidade de MPs pelo Congresso

Autor

  • Fernando Albuquerque

    é advogado atua em questões relacionadas às áreas do Direito Tributário e do Direito Administrativo-Econômico com ênfase em Contratações Públicas e Improbidade Administrativa e membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE.

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28 de junho de 2024, 18h24

Apesar de não se tratar de medida inédita, a decisão do presidente do Congresso de rejeitar parcialmente a Medida Provisória nº 1.227/2024 [1] traz à tona uma questão jurídica muito relevante acerca de tal possibilidade.

Em respeito ao princípio da separação dos poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário devem desempenhar suas atribuições constitucionais de forma independente e harmônica (CF/88, artigo 2º), interrelacionando-se por um mecanismo de controle institucional denominando “freios e contrapesos”  [2].

Em conformidade com tal arranjo constitucional, o artigo 62 da Constituição delega ao presidente da República a função atípica de editar medidas provisórias, as quais terão “força de lei”, exercendo-a de forma excepcional, notadamente quando diante de situação “de relevância e urgência”, de que se traduz em um provimento legal de caráter cautelar  destinado a proteger “situação em que a demora na produção da norma possa acarretar dano de difícil ou impossível reparação para o interesse público”  [3]  [4].

Esta situação demonstra que, além do seu caráter normativo (força de lei), as medidas provisórias também possuem natureza de “proposição legislativa, já que é submetida ao Congresso, que pode aprová-la, com ou sem emendas, ou rejeitá-la” [5] [6], muito embora sujeito a rito legislativo especial.

É incontestável que o excesso de edições de medidas provisórias tem o potencial danoso de gerar distorções no sistema de separação de Poderes, ocasionando em transtorno à atividade do Poder Legislativo com a imposição de regime de urgência e de trancamento de “todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando” (artigo 62, §6º), além de implicar em efetiva usurpação das atribuições que são próprias ao Congresso, além de produzir efeitos imediatos a partir de sua publicação.

Dada à sua inequívoca natureza provisória, e ao seu elevado grau de interferência na função constitucional que é própria ao Congresso, as medidas provisórias deverão ser imediatamente submetidas a este, o qual designará uma comissão mista que as examinará, e posteriormente serão submetidas à apreciação separada pelo plenário de ambas as Casas Legislativas após exame preliminar de admissibilidade (artigo 62, caput e §§ 5º e 9º).

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Usualmente, os filtros de admissibilidade se encontram descritos nos respectivos regramentos processuais [7], a exemplo do que sucede no processo civil (CPC, artigo 330 e 332) e no processo penal (CPP, artigo 395 e 397), sendo que, diversamente, a Carta Magna não especifica a competência para o exercício do juízo de admissibilidade das medidas provisórias, pelo que se faz necessária uma interpretação conforme a Constituição, que harmonize as normas infraconstitucionais com os princípios e regras constitucionais, assegurando-se o devido processo legislativo [8].

Outrossim, sem prejuízo do exercício posterior juízo de admissibilidade pelo plenário de cada uma das Casas Legislativas [9], o princípio da eficiência e a celeridade processual impõe que o juízo de admissibilidade das medidas provisórias seja realizado previamente pelo presidente do Senado na condição de presidente do Congresso, o qual detém o “poder-dever de impugnar as proposições contrárias à Constituição, às leis ou ao Regimento” (artigo 48, inciso XI) [10].

Com efeito, o presidente do Congresso tem a atribuição institucional de velar pela preservação das competências e prerrogativas do Poder Legislativo, de modo que o ato de designação da comissão mista não pode ser tratado como medida meramente protocolar.

Ademais, o exercício do juízo de admissibilidade de medidas provisórias pelo presidente do Congresso se trata de verdadeiro “controle de constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade feito pelo próprio presidente da Casa” [11], o que encontra absoluta conformidade com o sistema de freios e contrapesos, e que não afeta a competência reservado ao plenário de Casa Legislativa para deliberar sobre o mérito de conformidade legislativa.

Poder do presidente do Congresso

Neste caminho, é seguro afirmar que, independentemente de previsão expressa, o presidente do Congresso detém o poder implícito [12] para exercer tal juízo de admissibilidade, ainda mais considerando que em sendo a edição de medidas provisórias uma função legislativa atípica e excepcional, a coibição de eventuais abusos no exercício desta prerrogativa consiste em preservação da competência fundamental do Congresso em editar normas.

Inclusive, a possibilidade de rejeição sumária de medida provisória pelo presidente do Congresso foi ainda destacada pela ministra Rosa Weber (STF) na análise da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.991 ao consignar que “a presente decisão não impede que o eminente presidente do Congresso formule, eventualmente, juízo negativo de admissibilidade quanto à Medida Provisória 1.068/2021, extinguindo desde logo o procedimento legislativo resultante de sua edição” [13].

Spacca

De fato, ao dispor que os “pressupostos constitucionais” das medidas provisórias devem ser analisados prejudicialmente ao mérito de conformidade legislativa que cabe aos plenário de ambas as casas legislativas, compreende-se que tal juízo de admissibilidade abrangerá não apenas os requisitos genéricos de “urgência e relevâncias”, como os limites da delegação constitucional em razão da matéria (§§1º e 10 do artigo 62), além da própria constitucionalidade material.

Vale destacar que tal poder-dever conferido ao presidente do Congresso tem uma ênfase especial no mecanicismo de freios e contrapesos, especialmente considerando que a edição de medidas provisórias representa uma função legislativa atípica, servindo esta para coibir eventuais abusos no exercício desta prerrogativa conferida ao chefe do Executivo.

Em suma, a prerrogativa do presidente do Congresso de realizar o juízo de admissibilidade das medidas provisórias se manifesta como um componente vital do sistema de freios e contrapesos que sustenta o princípio da separação dos poderes.

Tal mecanismo não apenas preserva a integridade do processo legislativo, como também assegura que as medidas provisórias não se desviem de sua finalidade cautelar e excepcional, representando uma salvaguarda essencial contra o abuso de poder e a usurpação das competências legislativas.

Ao exercer esse poder-dever, o presidente do Congresso reafirma o compromisso com a Constituição e com o equilíbrio entre os Poderes, garantindo que as medidas tomadas em nome da urgência e relevância estejam sempre alinhadas com os princípios fundamentais da República.

Na espécie, a rejeição sumária medida provisória pelo presidente do Congresso no exercício do controle de constitucionalidade — formal ou material — opera efeitos “ex tunc“, impedindo assim que que normas jurídicas incompatíveis com a Constituição produzam consequências jurídicas.

 


[1] Dos temas tratados, foram rejeitadas sumariamente as disposições que alteravam a Lei nº 9.430/96 no sentido de restringir as compensações de créditos de PIS e de COFINS aos débitos das referidas contribuições.

[2] O mecanismo de Freios e Contrapesos é inerente ao Princípio da Separação dos Poderes, através do qual cada Poder exercer um grau de controle sobre os demais, evitando abusos e estabelecendo o equilíbrio entre estes.

[3] Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, em “Curso de direito constitucional”, 2018, p. 994.

[4] Em igual sentido: “O pressuposto da relevância do caso para o qual se adote medida provisória expõe a natureza da exigência, enquanto o pressuposto da urgência define, constitucionalmente, o momento da exigência da atuação administrativo-normativa.” (Cármen Lúcia Antunes Rocha, em “Medidas provisórias e princípio da separação de poderes”, 2001, p. 60).

[5] Luciano Henrique da Silva Oliveira, em “COMENTÁRIOS AO REGIMENTO INTERNO DO SENADO FEDERAL – Regras e práticas regimentais da Câmara Alta da República”. Vol. 2, 2021, p. 78.

[6] “A edição de medida provisória gera dois efeitos imediatos. O primeiro efeito é de ordem normativa, eis que a medida provisória – que possui vigência e eficácia imediatas – inova, em caráter inaugural, a ordem jurídica. O segundo efeito é de natureza ritual, eis que a publicação da medida provisória atua como verdadeira ‘provocatio ad agendum’, estimulando o Congresso Nacional a instaurar o adequado procedimento de conversão em lei.” (ADI 293-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 06.6.1990, DJ 16.4.1993).

[7] O Juízo de Admissibilidade é um instrumento comum à Teoria Geral do Processo, com ampla aplicação tanto no Direito Processual Judicial como no Direito Processual Administrativo, o qual não podemos considerar como estranho ao Processo Legislativo, visto que este também possui requisitos de competência, iniciativa e procedimentalidade que lhe são próprios. Em termos gerais, tal instrumento se destina à verificação dos pressupostos intrínsecos e extrínsecos de uma determinada propositura e, como tal, deve ser realizado anteriormente à análise do mérito, podendo ser realizado de forma unitária ou em filtro múltiplo, inclusive como medida de Eficiência e celeridade processual.

[8] O Devido Processo Legislativo consiste no conjunto de procedimentos e regras a serem observados pelos Entes dotados da função de elaborar normas, de modo a assegurar a sua constitucionalidade e juridicidade, conferindo-se os aspectos constitucionais, legais e regimentais quanto à competência, iniciativa, análise e discussão, deliberação/votação, sanção/veto, promulgação e publicação. Além das disposições previstas na Constituição Federal, nas Leis e nos Regimentos Internos, a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis – e atos normativos em geral – devem observar o disposto na Lei Complementar nº 95/1998.

[9] Ao tratar dos procedimentos próprios à apreciação de Medidas Provisórias, o Congresso Nacional editou a Resolução-CN nº 01/2002, a qual dispõe que “a Presidência da Mesa do Congresso Nacional fará publicar e distribuir avulsos da matéria e designará Comissão Mista para emitir parecer sobre ela” (Art. 2º), cabendo ao Plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional decidir, “em apreciação preliminar, o atendimento ou não dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência de Medida Provisória ou de sua inadequação financeira ou orçamentária” (Art. 8º, caput).

[10] À mingua de especificação no Regimento Interno do Congresso Nacional, aplica-se supletivamente o Regimento Interno do Senado Federal, devendo exercer tal “poder-dever” tanto na condição de Presidente do Senado Federal como de Presidente do Congresso Nacional. Tal dispositivo regimental foi invocado em momentos anteriores, notadamente quanto da rejeição sumária pelo Presidente do Congresso Nacional das Medidas Provisórias nsº 33/1989 (inconstitucionalidade material), 446/2008 (ausência de urgência e relevância), 669/2015 (violação à Separação dos Poderes), 979/2020 (inconstitucionalidade material) e 1.068/2021 (ausência de delegação constitucional sobre a matéria).

[11] Luciano Henrique da Silva Oliveira, em “COMENTÁRIOS AO REGIMENTO INTERNO DO SENADO FEDERAL – Regras e práticas regimentais da Câmara Alta da República”. Vol. 1, 2021, p. 121/121.

[12] A Teoria dos Poderes Implícitos tem origem no direito norte-americano (McCulloch vs. Maryland, 1819), segundo a qual, se a Constituição atribui a um órgão uma atividade-fim, deve-se entender que também lhe foram conferidos, implicitamente, todos os meios e poderes necessários para a realização dessa atividade. Tal teoria é aplicável não apenas aos órgãos em si, mas também se estende aos dirigentes desses órgãos, permitindo-lhes exercer todos os meios e poderes necessários para realizar suas atividades-fim de maneira eficaz. Isso é fundamental para a governança e administração pública, pois assegura que os dirigentes possam cumprir suas responsabilidades e obrigações legais, mesmo diante de situações não previstas explicitamente pela legislação.

[13] A referida decisão deixou de ser submetida ao Plenário do STF em razão da perda de objeto da referida ADI em razão da rejeição da citada Medida Provisória pelo Presidente do Congresso Nacional.

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