Opinião

Distinguish do Tema 843-STF: não aplicabilidade aos incentivos à ZFM

Autor

  • Pedro Neves Marx

    é advogado mestrando em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e especialista em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária (CEU) e em Processo Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

    View all posts

28 de junho de 2024, 17h18

Nos últimos anos, têm crescido consideravelmente as discussões acerca das subvenções governamentais, propiciando o surgimento de diversas decisões judiciais sobre a matéria.

Nesse contexto, a adoção de mecanismos de uniformização jurisprudencial passou a ser uma tendência na pacificação dessa discussão travada no âmbito do Poder Judiciário.

Para tanto, especialmente após a edição do Código de Processo Civil de 2015, a adoção da sistemática de precedentes tem sido frequentemente adotada como forma de trazer maior estabilidade, integridade e coerência à fixação de jurisprudência.

Todavia, há de se ter cautela com uso do mecanismo de vinculação dos precedentes, pois há nuances presentes em determinados casos concretos que não justificam a aplicação do precedente pela ausência de similitude entre a situação fática e a questão examinada.

Sob esse prisma, o Tema nº 843 do Supremo Tribunal Federal (STF) pretende uniformizar a celeuma envolvendo a “possibilidade de exclusão da base de cálculo de PIS e Cofins dos valores correspondentes a créditos presumidos de ICMS decorrentes de incentivos fiscais concedidos pelos estados e pelo Distrito Federal”.

Por essa razão, a presente opinião legal tem por fim demonstrar que operações envolvendo a Zona Franca de Manaus (ZFM), em virtude da proteção constitucional que lhe foi conferida, acarretam o efetivo afastamento do Tema nº 843 do STF, devendo ser promovido o devido distinguishing no que refere às empresas estabelecidas na ZFM.

De início, importante lembrar que o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) são contribuições sociais que encontram previsão constitucional nos artigos 239 (PIS) e 195, I, b, (Cofins).

O constituinte originário, ao definir a base de cálculo desses tributos, determinou as contribuições sociais deveriam incidir sobre o faturamento, conforme dispunha o artigo 195, I da Constituição.

Posteriormente, a Lei nº 9.718/98, em seu artigo 3º, §1º, trouxe consigo a definição do conceito de receita bruta, classificando-a como “a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para as receitas”.

Portanto, a partir da novel legislação, ficou evidente que as contribuições para o PIS e a Cofins deveriam incidir sobre a totalidade das receitas, pouco importando se provenientes da atividade-fim da empresa ou de outras operações.

Com o advento da Emenda Constitucional nº 20/98, a base de cálculo sobre a qual passariam a incidir as contribuições — que antes era apenas o “faturamento” — foi substituída pela expressão “receita ou o faturamento”.

Spacca

A intenção do constituinte derivado com a edição da EC nº 20 foi conferir constitucionalidade (constitucionalidade superveniente) ao artigo 3º, §1º, da Lei 9.718/98, uma vez que esse dispositivo legal havia sobrepujado o entendimento jurisprudencial firmado acerca do conceito de faturamento.

Mudança no sentido de faturamento

Até então, o STF havia firmado posição no sentido de que o faturamento deveria ser compreendido como o produto de todas as vendas e todas as prestações de serviço.

Diante disso, novamente o STF se viu forçado a definir o verdadeiro alcance da base de cálculo das contribuições para o PIS e a Cofins.

Com o advento da EC nº 20, o conceito constitucional de faturamento ganhou forma mais robusta, visto que o constituinte derivado ampliou o conceito de faturamento, de maneira que o PIS e a Cofins passaram a incidir sobre a totalidade das receitas auferidas das pessoas jurídicas.

A partir do surgimento das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03, delimitou-se a materialidade (fato gerador/base de cálculo) do PIS e da Cofins no faturamento ou receita da pessoa jurídica.

No ano de 2014, a Lei nº 12.973, resultante da conversão da Medida Provisória nº 627/13, alterou dispositivos das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03, classificando a receita bruta de acordo com o disposto no artigo 12 do Decreto-lei nº 1.598/77.

Com essas alterações, as leis do PIS e da Cofins passaram a afirmar expressamente que suas respectivas bases de cálculo devem compreender o conceito de receita bruta de que trata o artigo 12 do Decreto-lei nº 1.598/77.

Por conseguinte, a Lei nº 12.973/14 também alterou o artigo 12 do Decreto-lei nº 1.598/77, dispondo, nos incisos do decreto, que receita bruta compreende: o produto da venda de bens nas operações de conta própria; o preço da prestação de serviços em geral; o resultado auferido nas operações de conta alheia; e as receitas da atividade ou do objeto principal da pessoa jurídica não compreendidas nos itens anteriores.

Uma vez definida a base de cálculo do PIS e da Cofins, compete esmiuçar se a receita de subvenções governamentais (seja investimento ou custeio) está abrangida no aspecto material desses tributos.

Sob esse aspecto, as subvenções governamentais apresentam-se como redução de despesa tributária, e não como receita. Isso ocorre porque as receitas de subvenções, verdadeiramente, compreendem a uma renúncia de receita por parte do ente público que abdica da exação em favor do beneficiário.

Assim, por não representarem ingresso financeiro, uma vez que sequer houve despesa incorrida, as subvenções jamais poderiam ser classificadas como receitas. Não há, portanto, ingresso positivo no patrimônio, mas tão somente a inexistência de perda financeira.

Inconstitucionalidade em créditos de ICMS

A despeito disso, em 2021, iniciou-se o julgamento dessa matéria e a Corte Suprema havia firmado maioria para declarar a inconstitucionalidade na inclusão de créditos presumidos de ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.

Em seu voto, o ministro Marco Aurélio (relator) sustentou serem os créditos presumidos de ICMS espécie de renúncia fiscal que não devem integrar a base de cálculo do PIS e da Cofins, visto que representam mera redução ou compensação de custos, não podendo ser considerados espécie de receita.

Ainda que a maioria do Supremo tenha sido formada em favor do contribuinte, o julgamento foi suspenso pelo pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes, encontrando-se pendente de julgamento até hoje.

Essa discussão tributária ganhou maior importância porque, com a promulgação da Lei nº 14.789/23, foi revogado o artigo 1º, § 3º, X, da Lei nº 10.637/02 e o artigo 1º, § 3º, IX, da Lei nº 10.833/03, restabelecendo a incidência do PIS e da Cofins sobre as receitas de subvenções governamentais (crédito presumido de ICMS).

Essa alteração legislativa, afetou um dos principais incentivos fiscais de ICMS concedido às indústrias estabelecidas na Zona Franca de Manaus.

As indústrias localizadas na ZFM possuem incentivos fiscais concedidos pelo estado do Amazonas por meio da Lei nº 2.286/03, regulamentada pelo Decreto 47.727/23.

Dentre os inúmeros incentivos concedidos às indústrias nela estabelecidas, o crédito estímulo de ICMS é o que mais se destaca por desempenhar papel fundamental no desenvolvimento regional, encontrando fundamento de validade no artigo 13, III, da Lei nº 2.826/03 c/c o artigo 8º do Decreto nº 47.727/23.

Trata-se de subsídio fiscal estadual concedido sob a forma de crédito presumido de ICMS, proporcionando desoneração fiscal que varia de 55% a 100% do montante de ICMS que seria devido na operação de industrialização.

Consoante anteriormente mencionado, a entrada em vigor da Lei nº 14.789/23 permitiu a oneração de PIS e Cofins sobre as receitas de subvenção de investimento, resultando na incidência desses tributos sobre o crédito estímulo de ICMS, diminuindo significativamente o benefício proporcionado por essa renúncia fiscal.

Indiscutivelmente, isso impactou profundamente a política de desenvolvimento econômico idealizada para a ZFM, comprometendo a viabilidade de seu projeto industrial. Tal situação ameaça a principal finalidade para a qual a ZFM foi criada, qual seja, fixar a população na Região Norte, garantir a soberania nacional e contribuir para a preservação da floresta amazônica.

Nunca é demais lembrar que todo o conjunto de incentivos fiscais conferidos à ZFM tem, como fundamento basilar, os princípios constitucionais da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, II e art. 170, VII, ambos da Constituição).

Ademais, todo o arcabouço legislativo de incentivos fiscais outorgados à ZFM — entre os quais se inclui o crédito estímulo de ICMS — deve ser considerado inviolável, uma vez que recebe proteção constitucional.

A inviolabilidade dos incentivos fiscais conferidos à ZFM foi concebida pelo constituinte originário, por meio do artigo 40 do ADCT, tornando esse modelo de benefícios fiscais intocável até 2073 (artigos 90 e 92-A do ADCT).

Nessa perspectiva, Humberto Ávila argumenta que toda proteção constitucional concedida à ZFM lhe conferiu posição federativa diferenciada, de maneira que “os estados são iguais, a não ser o estado do Amazonas, relativamente à concessão de incentivos fiscais dentro da Zona Franca de Manaus”. [1]

Em razão disso, todas as peculiaridades inerentes à ZFM lhe garantem situação diferenciada, estabelecendo um limite intransponível que impede a tributação das contribuições sociais ao PIS e à Cofins sobre o subsídio estadual do crédito estímulo de ICMS.

Foi exatamente o motivo pelo qual o artigo 17 da Lei nº 14.789/23 reiterou a importância de manter intacta a fruição dos incentivos fiscais de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins concedidos à ZFM e às áreas da Sudam e Sudene.

Tanto é verdade, que a intenção do legislador, apresentada na exposição de motivos da supracitada lei, foi taxativa ao afirmar que não faz o menor sentido criar embaraços à utilização dos benefícios fiscais destinados a estimular as regiões da Amazônia, Norte e Nordeste (Emenda Parlamentar nº 11/23).

Cobrança de PIS e Cofins contraria lei

Como se observa, o restabelecimento da cobrança de PIS e Cofins sobre as receitas de subvenções de investimento — em especial a do crédito estímulo de ICMS das indústrias da ZFM — não apenas contraria disposição da própria Lei nº 14.789/23, mas também enfraquece o tratamento tributário favorecido conferido a essa região, que, como visto, merece ser protegido. Essa medida, inevitavelmente, resultará na migração de investimentos industriais instalados na ZFM para grandes centros produtores e de consumo.

Reprodução

Pelas razões expostas e em virtude da posição federativa diferenciada conferida à ZFM, o debate vinculado ao precedente do Tema nº 843, embora guarde alguma relação com a matéria, não possui total similitude com a discussão sobre a possibilidade de tributação do crédito estímulo de ICMS pelo PIS e Cofins.

Nesse contexto, é totalmente justificável a adoção do distinghishing, de forma a não vincular o Tema nº 843 com operações envolvendo a ZFM, visto que, conforme demonstrado, a aplicação do artigo 17 da Lei nº 14.789/23, e principalmente de toda estrutura diferenciada prevista na Constituição, protegem a ZFM de qualquer mitigação ou supressão dos subsídios fiscais outorgados por Amazonas.

Desse modo, toda e qualquer ação judicial que questione a incidência de PIS e Cofins sobre o crédito estímulo de ICMS concedido pela Lei nº 2.826/23 não deve ser sobrestado ao Tema nº 843 por não se fundamentar em idêntica questão de direito (artigo 1036, § 1º, do Código de Processo Civil).

Raciocínio análogo foi aplicado pelo STF ao apreciar a repercussão geral do Tema nº 322, que discutiu a possibilidade de creditamento de IPI isento nas aquisições de insumos, matérias-primas e materiais de embalagem produzidos na ZFM para empresas estabelecidas fora dessa região.

Na espécie, nos autos do RE nº 398.365/RS (Tema nº 844), ao analisar operações que não envolviam indústrias sediadas na ZFM, o plenário do STF adotou interpretação contrária ao contribuinte, não autorizando o creditamento do IPI nas aquisições de insumos não-tributados ou sujeitos à alíquota zero.

Nesse particular, o STF admitiu que, no caso dos benefícios fiscais da ZFM, não poderia ser aplicada a regra geral, demandando uma interpretação diferenciada, em virtude da previsão constante no artigo 43, § 2º, III, da Constituição, combinado com o artigo 40 do ADCT.

Assim, na hipótese, a relatora ministra Rosa Weber autorizou o creditamento do IPI isento decorrente de aquisições de produtos industrializados na ZFM, mesmo que essa interpretação não pudesse ser aplicada às indústrias não sediadas nessa área incentivada.

De igual modo, tal como o precedente supracitado, o Tema nº 843 em que se discute a legitimidade da cobrança de PIS e Cofins sobre o crédito presumido de ICMS, não pode ser aplicado integralmente às operações envolvendo à ZFM.

A discussão acerca da incidência de PIS e Cofins sobre o crédito estímulo de ICMS outorgado pela Lei estadual nº 2.826/23 detém peculiaridade ímpar, porquanto sua análise deve levar em consideração toda a proteção constitucional conferida à ZFM e justifica a inviolabilidade dos benefícios fiscais a ela destinados.

Diante disso, é de fundamental importância que o Amazonas, bem como as entidades de classe representantes dos interesses das indústrias sediadas na ZFM, sejam ouvidas como amici curie para o fim de esclarecer todas suas particularidades existentes na região e, além disso, evidenciar a imperiosa necessidade de que seja realizado o devido distinguish em relação ao Tema 843, uma vez que os efeitos negativos da decisão a ser proferida podem impactar sobremaneira os contribuintes nela instalados.

 


[1] ÁVILA. Humberto. ICMS. Tratamento diferenciado para produtos oriundos da Zona Franca de Manaus. Restrições ao crédito por ausência de convenio interestadual. Alíquotas e créditos diferenciados para mercadorias produzidas no Estado de São Paulo. Exame de constitucionalidade das restrições. Revista Dialética de Direito Tributário. n. 144. São Paulo: Dialética, setembro/2007, p. 6 8

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e especialista em Direito Tributário pelo Centro de Extensão Universitária (CEU) e em Processo Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!