PARADOXO BRASILEIRO

Concentração e autonomia expõem rusgas do presidencialismo de coalizão

 

28 de junho de 2024, 18h52

A concentração de poder e as autonomias dos poderes constituídos, paradoxalmente, expuseram as fissuras do chamado presidencialismo de coalizão termo utilizado para designar o sistema político brasileiro vigente, em que o presidente governa com uma maioria parlamentar construída, muitas vezes, com partidos que não integram a base ideológica do governo.

Michel Temer debateu as fissuras do presidencialismo de coalizão em Lisboa

Essa conclusão foi obtida na mesa “O que Fica do Presidencialismo de Coalizão?”, que aconteceu nesta sexta-feira (28/6), durante o XII Fórum de Lisboa, cuja moderação foi feita por José João Abrantes, presidente do Tribunal Constitucional de Portugal e professor da Universidade Nova de Lisboa. O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Lisbon Public Law Research Centre (LPL) da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getulio Vargas (FGV Justiça).

O debate jogou luz sobre a discussão constante sobre o sistema de governança do país, que, mesmo com plebiscitos históricos que demarcaram a vontade popular, ainda está na pauta de setores do Legislativo que desejam uma alteração constitucional.

A fala que abriu o painel foi do ex-presidente Michel Temer (MDB), que assumiu o cargo em 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff (PT), eleita em 2014. Segundo ele, o Brasil muitas vezes teve presidentes, mas não teve presidencialismo. Isso porque, tanto em momentos autoritários, como nas ditaduras Vargas e militar, quanto nos períodos democráticos, houve dificuldade dos governantes de respeitar a separação de poderes.

“No nosso sistema sempre deu-se a entender que a União era mais poderosa do que os estados e os municípios”, disse Temer, citando que isso vem desde as capitanias hereditárias, passando pelo Império e desaguando no período republicano.

“Não tenho nenhum apreço pela ideia do chamado presidencialismo de coalização, mas tenho apreço, sim, pela ideia do cumprimento rigoroso do texto constitucional”, afirmou o ex-presidente. Para ele, uma das funções do Executivo é “executar” o que o Legislativo aprova, além de ter boa relação com o Congresso para que medidas provisórias e outras normas enviadas por ele não caduquem.

“Nos últimos tempos, o Legislativo ganhou um poder muito significativo. Na verdade, derivava do próprio texto constitucional. Eu trouxe o Congresso para governar comigo porque o meu período foi curto e a gente fazia reformas fundamentais para a comunidade brasileira, e, portanto, precisava de apoio. Mas o fato é que o Legislativo foi ganhando uma autonomia própria.”

Sobre o controle que o Legislativo exerce no orçamento, com a criação de emendas impositivas, Temer disse que não vê com maus olhos as atuais circunstâncias. “O Legislativo está tomando conta cada vez maior da chamada governabilidade. E a própria distribuição das verbas orçamentárias cabe fundamentalmente ao Legislativo.”

Não restou nada

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, apresentou um pensamento mais cético sobre o sistema político brasileiro. “O problema do que restou do presidencialismo de coalizão é, na verdade, objeto de uma resposta simples, em quatro letras: nada.”

“A governança no mundo constitucionalista se apoia numa divisão de poderes, dos quais dois (Executivo e Legislativo) são expressamente poderes políticos e devem exprimir o povo, sem que isso signifique que o terceiro poder (Judiciário) não tem uma dignidade”, continuou o professor.

“No século 18, as tarefas do Executivo e do Legislativo eram muito separadas, porque naquela época prevalecia a ideia de que o Estado não intervinha no domínio econômico. Era cada um por si, dentro do mais rude capitalismo. Hoje, o Estado é social. Busca assegurar a felicidade do povo, cuidar de todas as necessidades do povo.”

ConJur
Último dia do XII Fórum Jurídico de Lisboa teve debates no auditório da reitoria da faculdade
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Auditório da reitoria da faculdade lisboeta ficou repleto no último dia do XII Fórum Jurídico de Lisboa
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Painel reúne Dieter Grimm, ex-juiz do Tribunal Constitucional Federal Alemão; Gilmar Mendes, decano do STF, e Nuno Piçarra, juiz da Corte Europeia de Justiça.
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Reprodução/Fórum de Lisboa
Especialistas participaram nesta sexta-feira da mesa “arranjos institucionais de persecução e controle no estado democrático”
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Reprodução/YouTube
Painel sobre tensões entre a jurisprudência das cortes internacionais e a jurisprudência constitucional, no XII Fórum de Lisboa
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Alexandre de Moraes falou sobre o futuro da democracia representativa no Fórum Jurídico de Lisboa
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Painel sobre tensões entre a jurisprudência das cortes internacionais e a jurisprudência constitucional, no XII Fórum de Lisboa
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ConJur
Riccardo Marchi durante sua palestra no último dia do XII Fórum Jurídico de Lisboa
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Reprodução/Fórum de Lisboa
Mesa em Lisboa discutiu importância da Constituição no combate às ameaças antidemocráticas
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Reprodução/YouTube
Ministro Alexandre de Moraes, do STF, durante painel sobre "O Mundo em Eleições e o Futuro da Democracia Representativa" no XII Fórum de Lisboa

Esse novo Estado, disse o professor, necessita de sintonia entre os poderes, que é intermediada pelos partidos políticos. Essa suposta maioria formada pela coalizão se mostra frágil, e uma das razões para isso é a individualização dos legisladores. “Os partidos políticos têm perdido força.”

Morte anunciada

O advogado e professor Flávio Pansieri mencionou a “crônica de uma morte anunciada” do presidencialismo de coalizão. “As inúmeras reformas políticas feitas desde 2006 desestruturaram aquela fragmentação político-partidária que nós tínhamos, para culminar na eleição de 2022, basicamente com 410 deputados, cerca de 80% da casa, alocados em sete partidos ou federações.”

“Apenas parte desses deputados cumpre o compromisso de ser base do governo. Todos se sentem livres”, afirmou Pansieri, citando que houve nos últimos anos uma “parlamentarização do orçamento”.

“Mais de 50% dos recursos que até o próprio Supremo Tribunal Federal disse que não podem ser alocados em emendas do relator ou individuais continuam sendo alocadas em emendas do relator ou individuais. Hoje, todos os parlamentares têm emendas individuais específicas a partir de seus partidos, independentemente do apoio ao governo federal”, disse ele. “Parece-me que precisamos repensar um modelo que já existe.”

Manuelita Hermes Rosa Oliveira Filha, professora do IDP e procuradora da Advocacia-Geral da União, disse que, em determinado momento, houve uma espécie de “hiperpresidencialismo”, que resultou em regimes totalitários, como as ditaduras vigentes no país no século 20. O que aconteceu depois, segundo ela, foi uma tentativa de moderar esse poder com uma maior participação do Parlamento, o que resultou no presidencialismo de coalizão.

“Somos o país da reforma. E, para termos as reformas, precisamos ter governabilidade, vontade política, diálogo e cooperação entre Legislativo e Executivo.”

“E vamos ter impasses, vamos ter essa maioria, eleição direta para presidente, e não necessariamente haverá sintonia. E eu pergunto: quando houve essa sintonia? Perene, estável? Essa é nossa dificuldade. Por isso eu trago esse olhar para o passado, porque, além de pensarmos em reformas, devemos pensar na nossa formação política, na cultura política do nosso país”, disse a procuradora.

Assista ao terceiro dia de debates do XII Fórum de Lisboa:

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