Opinião

Violência psicológica: cifra oculta da criminalidade doméstica e de gênero

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27 de junho de 2024, 20h57

Com o advento da Lei 11.340 de 2006, intitulada Lei Maria da Penha, houve uma maior difusão do conhecimento para o combate aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Ocorre que o senso comum, muitas vezes, compreende a violência de gênero de forma restritiva, referindo-se apenas a uma das formas de violência, qual seja, a violência física.

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É imperioso destacar que no artigo 7º da Lei Maria da Penha, tem-se a previsão, não taxativa, de cinco tipos de violência: física, psicológica, patrimonial, sexual e moral. No entanto, no ordenamento jurídico vigente, encontram-se outras formas de violência, entre as quais, obstétrica e política.

Neste viés, o Código Penal traz em seu bojo a previsão do artigo 147-B que dispõe acerca do crime de violência psicológica. Aqui, destaca-se que o crime em comento não se confunde com a forma de violência denominada psicológica, visto que, no âmbito da forma de violência prevista na legislação extravagante, há adequação normativo-típica a depender a conduta perpetrada para mais de um tipo penal, entre os quais, ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal.

Frisa-se que, mesmo diante de uma maior divulgação das normas de proteção do direito das mulheres, em face de resquícios de uma sociedade patriarcal e de costumes que refletem uma educação diferente para meninos e meninas, muitas vítimas não se percebem no rótulo de vítimas. Sendo assim, não buscam os serviços de proteção. Carece de um fato de maior gravidade para que muitas vezes ao relatar o acontecido perante os órgãos competentes essas vítimas analisem que vinham sofrendo violência de outras formas.

Nesse diapasão, verifica-se a necessidade de uma maior conscientização da população para os tipos de violência doméstica, pois algumas vezes as pessoas minimizam os efeitos nocivos da violência moral e psicológica. No entanto, essas formas de violência podem servir como etapas iniciais do ciclo da violência doméstica e familiar. Desse modo, uma vez combatidas, tendem a evitar que se propaguem tantos casos de violência física que culminam em feminicídios.

Lado outro, analisando pelo prisma criminológico, considera-se que se uma mulher não se considera vítima de violência doméstica ou de gênero, ela não irá procurar os órgãos de proteção e de persecução penal. Por via de consequência, dá-se um descompasso entre a criminalidade real e a criminalidade oficial, ou seja, cifra oculta da criminalidade.

No cotidiano de muitas mulheres, manifestação de ciúme excessivo e perseguição são entendimentos como proteção e demonstração de amor no relacionamento afetivo. Na formação de muitas meninas, não são repassadas informações acerca do que vem a ser violência de gênero e de como se portar nessas situações. Muitas famílias prezam pelas relações matrimoniais, religiosas e sociais em detrimento de mulheres e meninas que se veem diante de constante situações de vulnerabilidade de gênero.

Casos despercebidos e camuflados

Além de um risco para a própria vítima, vislumbra-se a ideia de que se já são veiculados na mídia tantos relatos de violência doméstica e de gênero que chegam ao Judiciário, quantos outros passam despercebidos ou camuflados em falsa normalização de serem apenas um desentendimento de casal ou uma fala impensada sem maiores consequências.

Ademais, muitas mulheres vítimas de violência de gênero não procuram ajuda por vergonha, por receio da exposição, ou seja, há ainda um reflexo de revitimização latente. Ainda que a Lei nº 13.869 de 2019, Lei de Abuso de Autoridade, traga no artigo 15-A previsão expressa contra a sobrevitimização e a estigmatização da vítima, muitas mulheres se sentem desconfortáveis com a exposição da sua privacidade durante o atendimento policial e na tramitação processual.

Em recente julgamento da ADPF 1.107, o Supremo Tribunal Federal decidiu que as partes não podem invocar elementos que façam referência à vida sexual pregressa de mulher vítima de violência com o objetivo de desqualificá-la, sob pena de nulidade.

O julgado acima reflete a preocupação com a vitimização secundária, pois muitas mulheres vítimas se sentem vulneráveis diante dos atos processuais necessários para a elucidação dos casos de violência. Assim sendo, muitas vítimas sequer procuram os órgãos competentes, outras desistem da dar seguimento à marcha processual.

Ocorre que, para que a sociedade perceba uma involução nos casos de violência de gênero, faz-se necessária uma efetiva punição para aqueles que cometeram infrações penais, bem como a conscientização de que essas práticas refletem padrões nocivos de comportamento que não são mais tolerados na vida em sociedade. Não é admissível que, mesmo diante de normas positivadas no âmbito interno e através de compromissos internacionais, a falta de conhecimento ou a falsa percepção das condutas tipificadas como crimes levem a um número irreal para os casos de violência de gênero.

É salutar que mulheres vítimas de violência tenham ciência dos seus direitos e se sintam encorajadas a procurar os órgãos competentes, bem como, uma vez que sejam ali atendidas, recebam tratamento digno com a condição de vítimas em situação de vulnerabilidade de gênero. Dessa maneira, mais mulheres se sentirão confortáveis e servirão de reflexo para tantas outras. Por via de consequência, também irão causar impacto na sociedade que verá resultados efetivos para casos de violência doméstica e de gênero, servindo assim como forma de prevenção para novos casos.

Com base no acima exposto, descortina-se a necessidade de uma maior divulgação no sentido de conscientização da população para os casos de violência que não deixam marcas físicas, mas que geram danos emocionais e psicológicos. Posto que, somente através de uma educação voltada para o fortalecimento de mulheres e meninas, a sociedade terá uma verdadeira transformação na realidade de tantos relatos de violência que trazem desfechos trágicos.

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