LUTA PELA IGUALDADE

'É muito importante que as mulheres, de forma paritária, ocupem os espaços de poder'

 

27 de junho de 2024, 19h56

Em novembro do ano passado, a advogada Daniela Teixeira foi nomeada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para ser a quinta mulher no quadro de 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça. Não por acaso, a baixa representatividade feminina nas cortes brasileiras é uma preocupação constante para a magistrada.

Daniela Teixeira Spacca

A ministra Daniela Teixeira, do STJ

Também não por acaso, a ministra elegeu como uma de suas prioridades no STJ a atenção aos processos relativos a estupros de pessoas vulneráveis. E com ótimos resultados. “Considerando recesso forense, feriados etc., momentos em que a corte não funciona, já julgamos 160 processos de estupro de vulneráveis e estupro. Ou seja, nesse pequeno período, já julgamos mais de 30% dos feitos. O que é um número significativo”, disse Daniela em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico e ao Anuário da Justiça.

Na conversa, a magistrada falou também sobre a atuação do Poder Judiciário na proteção às mulheres e sobre a necessidade urgente de aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, em todas as instâncias da Justiça brasileira, “para evitar a reprodução de estereótipos de gênero nas decisões”.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Ministra, como tem sido sua experiência em um tribunal superior em que, do total de 33 integrantes, apenas cinco são mulheres? Acredita que essa falta de igualdade afeta as decisões tomadas pelo STJ quanto a questões de gênero?
Daniela Teixeira — Temos apenas cinco mulheres e, antes do meu ingresso no tribunal, a última nomeação de uma mulher havia ocorrido dez anos atrás. E essa disparidade ocorre também em outros tribunais. No STF, temos apenas uma ministra. Nas cortes superiores como um todo, temos um total de 95 ministros, sendo apenas 17 mulheres, ou seja, 18%. Infelizmente, se analisarmos os números nos anos de 2023 e 2024, veremos que apenas 19 de 62 tribunais brasileiros (Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Tribunais Regionais do Trabalho) aumentaram o número de mulheres em suas composições, e 24 deles diminuíram.

Entendo que é muito importante que as mulheres, de forma paritária, ocupem os espaços de poder. O Judiciário precisa parecer minimamente com a população em que ele está inserido, e a população brasileira é composta de 51,5% de mulheres e 48,5% de homens. É preciso que a mulher esteja no Poder Judiciário, porque o Judiciário dita normas de conduta, normas de moral, e um Judiciário sem mulheres significa que não temos o olhar de metade dos clientes do Judiciário, que são as mulheres.

ConJur — Logo após chegar à corte, a senhora afirmou que pretendia zerar o volume de processos de 2022 e 2023 relativos a estupros de vulneráveis, um volume que a surpreendeu. Em que pé está essa meta pessoal?
Daniela Teixeira — Quando cheguei ao gabinete, nos últimos dias de novembro de 2023, o acervo contava com mais de 11 mil processos. Mas uma coisa me chamou a atenção: havia 511 processos relacionados a crimes de estupro de vulneráveis, cometidos contra pessoas com menos de 14 anos. E, desde então, considerando recesso forense, feriados etc., momentos em que a corte não funciona, já julgamos 160 processos de estupro de vulneráveis e estupro. Ou seja, nesse pequeno período, já julgamos mais de 30% dos feitos. O que é um número significativo.

ConJur — Em um julgamento em que seu voto saiu vencido (placar de 3 a 2), a 5ª Turma do STJ tratou como excepcionalidade o caso de um homem que, aos 20 anos, engravidou uma menina de 12. Foi algo frustrante?
Daniela Teixeira — Como magistrada, não posso ter sentimentos por nenhum processo. A turma julgou, está julgado. A soberania da maioria deve prevalecer e não devo comentar processos. Seguirei essa norma da Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) à risca. Na advocacia, eu tinha como aviso de cabeceira o decálogo de Eduardo Couture. Ensinamentos que trouxe para a magistratura, especialmente o número 9: “IX — OLVIDA: A advocacia é uma luta de paixões. Se em cada batalha fores carregando tua alma de rancor, sobrevirá o dia em que a vida será impossível para ti. Concluído o combate, olvida tão prontamente tua vitória como tua derrota”.

O conselho se aplica ainda mais à magistratura, que não pode ser uma luta de paixões. Assim tenho agido nos 8.696 processos que já julguei monocraticamente ou em colegiado (até o dia 8 de abril deste ano). Estudo, sofro, decido. Pronto, acabou. Como magistrada, não posso torcer por uma tese, um processo ou uma parte. Julgado o caso, devo esquecê-lo e me preocupar com o próximo. A fila é imensa e tenho de ter o espírito leve para julgar um por um, sem esperar reconhecimento ou aplauso e sem temer críticas ou dissabores.

Espero estar fazendo um trabalho justo e me deixa feliz estar com a consciência tranquila. Até agora eu me arrependi de apenas um despacho e não tive nenhum problema em reconsiderar a decisão para dormir tranquila.

ConJur — O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pelo CNJ, completou três anos recentemente, passando de uma recomendação para uma resolução há apenas um ano. Como a senhora avalia o impacto dessa norma nas decisões judiciais?
Daniela Teixeira — A aplicação do protocolo deve permear as decisões judiciais, em todas as instâncias do Poder Judiciário, quando estivermos julgando demandas que envolvam as peculiaridades dos crimes contra mulheres e as diversas formas de violência que elas podem sofrer, para evitar a reprodução de estereótipos de gênero nas decisões.

Por exemplo, nos processos de violência contra a mulher, eu tenho decidido que o juiz da localidade onde está a vítima é quem deve fixar as medidas protetivas cabíveis ao caso, sempre ouvindo a vítima antes. Entendo que a melhor solução para a segurança da mulher é ouvi-la, saber dela se ainda estão presentes as ameaças. Não acho razoável que eu decida, daqui de Brasília, apenas lendo as alegações do réu, sobre a segurança de uma mulher que está a milhares de quilômetros. Essas decisões não me trazem alegria, mas a sensação de que estou cumprindo o meu dever, analisando cada processo individualmente.

E, para tanto, além de cumprir a Meta 8 do CNJ (prioridade para os processos sobre violência de gênero distribuídos até 2022), antes aplicável apenas à Justiça dos estados, mas que foi corretamente encampada pelo STJ, temos uma equipe específica e dedicada a trabalhar com esses processos. Tão logo chegam ao gabinete, os processos com essa temática são triados e encaminhados à análise de uma equipe responsável por assegurar prioridade em seu processamento.

ConJur — As medidas protetivas são o tipo de decisão de juízes e juízas que pode evitar feminicídios, por exemplo. A seu ver, elas têm sido aplicadas a contento?
Daniela Teixeira — Os magistrados têm atuado de forma diligente para aplicar as medidas protetivas de urgência, não apenas para tentarmos evitar os feminicídios, mas também outros crimes e atos relacionados a outras formas de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Precisamos entender, todavia, que os magistrados e as magistradas atuam nos processos com base nos indícios e elementos de prova que existem nos autos, e a implementação de várias medidas depende exclusivamente da polícia ou da rede de apoio, que é competência do Poder Executivo.

ConJur — Em seu discurso durante a IV Conferência Nacional da Mulher Advogada, a senhora falou em tom otimista da nova geração, a de seus dois filhos. Porém, ambos fazem parte de uma fatia muito pequena da população brasileira, a grande maioria não entende as letras de Taylor Swift e Miley Cyrus, que a senhora citou no discurso. Por que decidiu mencionar como exemplos essas duas cantoras americanas?
Daniela Teixeira — O que enxergo no STJ é uma fotografia do Brasil de hoje. O que proponho, e propus na conferência, é um olhar para o futuro. É para que o Brasil de hoje não se repita que lancei exemplos de mulheres de sucesso. Sem exemplos, sem referências, é difícil encontrar caminho para fora do ambiente em que se nasce e se cresce. Ter força e independência para romper laços é um processo — não uma fotografia —, é uma sucessão de atos que, se temos exemplos de como seguir bem e que objetivos alcançar, fica menos duro, ganha apoio, consolo e rumo.

Minha fala foi para advogadas, na Conferência Nacional da Mulher Advogada, e certamente todas as presentes entenderam o que quis dizer. Repito aqui, para que fique claro:

“O futuro chega, o novo sempre vem, já cantava Elis há 50 anos, e o novo, o século XXI, é a revolução da mulher que vem desde o século XX. E não para.

Não queremos trabalhar. Queremos ser chefes.

Não queremos o divórcio. Queremos a alegria do amor sem violência.

Não queremos usar minissaia. Queremos ser quem decide a moda.

Queremos o inimaginável, a liberdade, a que queremos ainda não tem nome, disse Clarice Lispector. Disse mesmo.

E a cada geração estamos avançando.

Não desanimem. Não se deixem abater.

A revolução é silenciosa, é rápida e está acontecendo.

A nova geração de minha filha de dez anos é infinitamente melhor do que as meninas de dez anos de cem anos atrás, quando minha avó tinha dez anos.

A empatia, a luta real das mulheres, umas pelas outras. A metade mulher do mundo está se juntando, cada dia mais.

Repare.

Darei um exemplo que está na sua frente. E talvez você não tenha percebido.

O fenômeno Taylor Swift. Não é da sua geração, menos ainda da minha. É da geração que tem entre dez e 20 anos hoje. São mulheres que estarão aqui em 12 anos, na Conferência de 2036. Taylor é o maior sucesso da história do entretenimento, não só da música. Ela quebrou todos os paradigmas.

O maior fenômeno musical de todos os tempos, pela primeira vez, é uma mulher. Uma jovem mulher.

Ela é a cara da geração que vem vindo: dona do seu nariz, ela escreve a música, faz a melodia, decide as turnês, troca de namorado, não tem nenhum homem que fale por ela. O namorado é famoso, em outra área, e não dá um só palpite na vida dela. Se der, vai virar ex-namorado e ela ainda vai cantar sorridente: ‘Nós não vamos nunca mais voltar a namorar. Nunca’. O Super Bowl era ele, mas a notícia foi ela. A eleição americana será entre dois homens, mas a notícia é ela.

O que temos a aprender com esse fenômeno? Que é um fenômeno nunca visto. Ela ultrapassou todos os fenômenos, todos os recordes masculinos: Frank Sinatra, Beatles, Michael Jackson, Rolling Stones e qualquer cantor vivo ou morto.

Dani, e o que temos com isso? Tudo. A empatia feminina venceu.

A mudança está vindo. É o Grammy com Taylor aplaudindo Miley Cyrus.

A nova geração está chegando e cantando!

‘Eu posso comprar as minhas flores. Eu posso segurar as minhas mãos. Eu posso me amar muito melhor do que você’. Essa é a nova geração.

Aqui temos a esplêndida Anitta que recebeu um prêmio e disse: ‘Quero agradecer a mim mesma, porque só eu sei o que eu passei para chegar aqui. Eu trabalhei muito e mereci’.

É isso, amigas. O que os homens têm feito há dois mil anos.

Enxergue a mudança. Faça parte. Ajude.

Eu cresci ouvindo Paula Toller cantar ‘eu quero você, como eu quero’. E funk que dizia ‘uma tapinha não dói’.

Minha mãe cresceu ouvindo que era para cuspir na Geni, minha avó ouviu que Amélia é que era mulher de verdade.

Nossa música não é só entretenimento, é a trilha sonora do que se passa a cada geração.

E minha filha está muito melhor com Taylor, Miley e Anitta. A geração dela é a que vai se levantar contra a violência doméstica, praga nacional, vergonha de nossa sociedade. Porque ela desde que nasceu aprendeu a se respeitar, e meu filho aprendeu a respeitar as mulheres. A nova geração vai, sim, tenho certeza, diminuir os índices vergonhosos de violência contra mulher. A educação vai vencer. Só a educação pode vencer a violência doméstica.

Precisamos acreditar e não esmorecer. Precisamos lutar.

A resposta para nossas angústias está no futuro.

Assim como as respostas para as angústias da minha avó, que não podia se separar, ter conta em banco, ou trabalhar, estavam na geração da minha mãe e na minha.

Estamos aqui para juntos, construirmos um mundo melhor, menos violento e mais paritário para a próxima geração. É por elas, as meninas que ouvem Taylor, Miley e Anitta, que estamos aqui.

Temos de juntas pensarmos nos problemas de hoje e as soluções de amanhã. Acredite, a solução virá.

Temos de trabalhar. Sempre foi assim, Sempre será.

Daqui a 12 anos, em 2036, vocês voltarão aqui na Conferência Nacional da Mulher, para contar para as jovens que hoje ouvem Anitta e Taylor o que vocês sonharam em 2024, o que vocês planejaram aqui nesses dois dias.

Sonhem! Debatam! Exijam!

E, acima de tudo, acreditem”.

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