Opinião

Direito de filha maior solteira trans à pensão previdenciária

Autor

  • Luna Leite

    é pesquisadora e ativista transfeminista bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) integrante da Assessoria de Promoção do Trabalho Decente e dos Direitos Humanos do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) bem como do Grupo de Trabalho em Estudos de Gênero Raça e Equidade da Justiça do Trabalho e do Grupo de Trabalho para Elaboração do Protocolo de Atuação com Perspectiva Antidiscriminatória da Justiça do Trabalho.

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27 de junho de 2024, 15h26

O STF (Supremo Tribunal Federal), reconhecendo a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.471.538, vai decidir se mulher trans tem direito à pensão previdenciária, na condição de filha solteira e maior de idade, quando a alteração do registro civil ocorreu após a morte do instituidor da pensão (Tema 1298).

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Dois parecem ser os pontos centrais para a solução do caso. Primeiramente, saber se mulher trans pode ser reconhecida como “filha” para efeito de percepção de benefício previdenciário, o que já encontra grande resistência na sociedade e no Judiciário brasileiros. E, em segundo lugar, se a data de alteração registral é, de algum modo, relevante para o reconhecimento legal de identidades trans, ou seja, se a alteração do registro possui natureza constitutiva ou meramente declaratória da identidade de gênero de pessoa trans.

Para uma solução adequada do caso, é preciso reconhecer a contribuição dos estudos, práticas e saberes de nós pessoas trans e também passa por compreender a função do sistema de seguridade social, sob o ponto de vista constitucional.

Transfeminismo jurídico

O direito de um modo geral, e o direito previdenciário de modo particular, utiliza os significantes “homem” e “mulher” (ou expressões correlatas, como filho ou filha) para distinguir direitos e obrigações, sem discriminar se tratar de pessoa cis ou trans1. Essa incapacidade de o direito posto solucionar os problemas envolvendo pessoas trans, em razão de a legislação ser editada por e para pessoas cis, ignorando a pluralidade de identidades de gênero existentes na sociedade, decorre do cissexismo jurídico.

O cissexismo corresponde à noção de que deve existir um tipo de morfologia ou corpo para um tipo de gênero (cisgeneridade), dentro do esquema binário, e que pessoas que não se encaixam nesse quadro seriam consideradas patológicas, abjetas ou não humanas, provocando uma estrutural marginalização afetiva, familiar, social, educacional, política, econômica e jurídica de pessoas trans.

É por isso que, mais do que uma “fobia” individual, o cissexismo define e estrutura o funcionamento do próprio Estado e do direito, submetendo corpos que desafiem a lógica cisnormativa à estigmatização, à violência e à morte. Essa gestão da morte pelo Estado, resultado da ausência de proteção normativa e de políticas públicas, decorre daquilo que Achille Mbembe3 chama de necropolítica, que tem como objeto principal, no Estado brasileiro, o corpo da mulher trans e travesti.

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O cissexismo também parece constituir uma sintomática da neurose cultural brasileira, para utilizar uma expressão de Lélia Gonzales, ou seja, essa maneira coletiva que temos de articular a negação, com vistas ao alívio da angústia de se defrontar com o desejo recalcado4. Afinal, não seria o extermínio do corpo trans uma tentativa de negação do próprio desejo orientado a travestis? Ora, como explicar que o país que mais consome pornografia trans5 é também o país que mais mata pessoas trans no mundo6?

Então, para se furtar dessa contradição, a cisgeneridade procura fingir ao máximo que pessoas trans não existem, sem prejuízo de satisfazer a sua lascívia, desde que no sigilo. A estratégia, portanto, é excluir do campo de cognição da política de Estado qualquer menção às vidas trans, seja em nível estatístico ou jurídico, como forma de manter o corpo da travesti no seu “lugar natural”, que é a prostituição.

A exclusão radical do campo de proteção jurídica de pessoas trans e, principalmente, de mulheres trans e travestis negras decorre da adoção de uma política cissexista e racista pelo Estado e pelo direito brasileiros, com base na abjeção e na fetichização de corpos trans. O resultado dessa dinâmica perversa de gestão da vida e da morte trans é a divisão transexual do trabalho7, modo de distribuição das possibilidades de sobrevivência econômica entre pessoas cis e pessoas trans, inserindo massivamente meninas e mulheres trans e travestis na prostituição compulsória.

A divisão transexual do trabalho empurra cerca de 90% das mulheres trans ou travestis na prostituição no Brasil8, e a ausência de regulamentação do trabalho de profissionais do sexo reforça a decisão política de Estado de excluir qualquer possibilidade de reconhecimento e proteção das vidas trans no País.

A fim de combater a faceta jurídica do cissexismo, que estou chamando de “cissexismo jurídico”, o julgador deve se vestir de uma “lente jurídica travesti”, de modo a considerar as contribuições práticas e teóricas do transfeminismo para interpretar a legislação, metodologia de interpretação e aplicação do direito que denominamos “transfeminismo jurídico” ou com perspectiva transfeminista.

Trata-se de uma construção metodológica de abordagem do direito que amplia o campo de cognição com vistas a uma maior visibilização, simbolização e proteção jurídica de pessoas trans e de outros corpos não contemplados na “ordem jurídica”.

Clarisse Mack trabalha o transfeminismo jurídico como uma possibilidade de combater o trans-epistemicídio jurídico, fenômeno que provoca a morte dos saberes e identidades trans do campo de proteção jurídica, a partir de uma invertida contra-epistemológica, que utilize o direito antidiscriminatório e os estudos decoloniais como ferramentas de insurgência e visibilização de corpos trans no direito9.

Camilla de Magalhães Gomes, Claudia Paiva Carvalho e Julia Ávila Franzoni10 também propõem uma metodologia de reescrita de decisões judiciais que leve em conta as produções do transfeminismo. A proposta serve para questionar os sentidos, relações e posições entre o sujeito e o Estado, ao invés de partir de um pressuposto de gênero universal, que é sempre cisgênero, branco e heterossexual.

Portanto, pela lente do transfeminismo jurídico, a(o) magistrada(o) deve indagar o sentido do texto positivado a partir de uma cosmovisão das estruturas de opressão que incidem sobre os corpos implicados na decisão jurídica (inclusive o seu próprio), de modo a corrigir a violência normativa do texto legal, seja em sua omissão ou, ainda, no tratamento inadequado dado em razão da desconsideração das múltiplas formas de existir enquanto humano, para além da cisgeneridade, da branquitude e da heterossexualidade.

Natureza jurídica da alteração da identidade de gênero

No caso do direito de filha maior solteira à pensão previdenciária, é fundamental compreender a noção de identidade de gênero a partir dos estudos transfeministas. Uma compreensão adequada dessa dimensão da subjetividade humana permite auxiliar a solução de um ponto central para o leading case, que é a natureza jurídica da alteração da identidade de gênero no registro civil.

De acordo com Jaqueline Jesus, pesquisadora transfeminista, doutora em psicologia social do trabalho e das organizações pela Universidade de Brasília (UnB), identidade de gênero corresponde à forma como a pessoa reivindica social e juridicamente o seu gênero, independentemente da realização de cirurgias ou tratamentos médicos11.

O conceito de identidade de gênero adotado por Jaqueline Jesus converge com a decisão proferida pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275/DF, em 1º de março de 2018, em que foi reconhecido o direito à autodeterminação da identidade de gênero independentemente de realização de cirurgia de redesignação sexual ou de tratamentos hormonais ou patologizantes.

Naquela oportunidade, a Suprema Corte entendeu que “2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la”. Portanto, fica claro que o STF já reconheceu a natureza declaratória da mudança registral, ou seja, ao invés de constituir, tem o condão de reconhecer o gênero com o qual a pessoa já se identificava.

Ademais, se apenas em 1º de março de 2018, no julgamento da referida ADI, foi reconhecido o direito à alteração registral, por meio de um procedimento em cartório que continua caro para a maioria das pessoas trans, não é razoável nem proporcional exigir que fosse feita a alteração no momento exato em que ocorresse a transição social da identidade de gênero de pessoa trans.

Aliás, para nós pessoas trans é autoevidente que o reconhecimento da nova identidade de gênero tem mais sabor de descoberta do que de criação, e tendemos a nos conectar com uma versão menos mimética ou performada da cisgeneridade, para uma versão mais autêntica de nós mesmas, que, de algum modo, sempre esteve conosco, obstruída pela cisnormatividade.

Nossa autonomia e nosso direito à autodeterminação nos foi negado desde o momento da inscrição de um nome e um gênero que não refletem a nossa autopercepção. A retificação dessa violência cisnormativa no registro civil constitui uma formalidade importante para o reconhecimento jurídico da nossa identidade de gênero, mas é importante que fique claro, não inaugura a identidade trans.

Portanto, com base no acórdão proferido na ADI 4.275/DF e nos saberes construídos por pessoas trans, é irrelevante se a data da alteração registral é anterior ou posterior ao falecimento do instituidor da pensão, para que seja garantido o direito à pensão, haja vista que a retificação tem natureza meramente declaratória, e não constitutiva, da identidade de gênero.

Seguridade social como instrumento da justiça social

Na Constituição, a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações do Estado e da sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à tríade saúde, previdência e assistência social (artigo 194). Inserida que está dentro do título que trata da ordem social, uma leitura sistemática leva à conclusão de que a seguridade social é o instrumento mesmo de efetivação do bem-estar e da justiça social, a que faz alusão o artigo 193 da Carta Política.

Ao invés de um valor estático, a justiça social, enquanto vetor jurídico essencialmente transitivo, deve acompanhar o dinamismo da sociedade, para que o sistema de proteção social cumpra de maneira adequada e suficiente sua função de garantia do bem-estar12. Sendo uma das espécies de prestações dos regimes de previdência social, o direito à pensão também deve ser interpretado e aplicado como instrumento de efetivação do macro valor jurídico da justiça social.

Desse modo, a seguridade social, inspirada que está pelos valores do bem-estar e da justiça social, pode ser utilizada como um instrumento de combate à violência e à marginalização de pessoas trans no Brasil, considerando a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana e os objetivos fundamentais da República de construção de uma sociedade livre, justa, solidária e livre de preconceitos, previstos nos artigos 1º, III, e 3º, I e IV, da Constituição.

Conclusão

Portanto, filha maior solteira trans tem direito à pensão previdenciária, independentemente da data da alteração do registro civil, levando em conta o direito à autodeterminação da identidade de gênero e a natureza declaratória da retificação do gênero no registro civil, conforme reconheceu o STF na ADI 4.275/DF.

O leading case levado à apreciação do STF é mais um exemplo da urgência de se adotar uma metodologia que amplie o campo de visão do direito para além da cisgeneridade, da branquitude e da heterossexualidade, considerando as contribuições dos estudos e práticas de pessoas trans, o direito antidiscriminatório e os demais saberes decoloniais e interseccionais, abordagem que temos chamado de “transfeminismo jurídico”.

 


1 – Entende-se por cisgênera (ou apenas “cis”) a pessoa cuja identidade de gênero coincide com a que lhe foi atribuída no momento do nascimento, ou seja, que não é trans. Já trans é a pessoa cuja identidade de gênero diverge daquela que foi atribuída no momento do nascimento, incluindo mulheres trans ou travestis, homens trans e pessoas não binárias.

2 – MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

3 – GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.

4 – De acordo com as plataformas Redtube e Pornhub, o Brasil é o recordista mundial de consumo de pornografia trans no mundo. Disponível em: <https://catarinas.info/colunas/brasil-invicto-como-campeao-no-consumo-de-pornografia-trans-no-mundo-e-de-assassinatos/> Acesso em: 21 jun. 2024.

5 – U.S. transgender people harassed in public restrooms: landmark survey. [s.l.], 8 dez. 2016 Disponível em: < https://www.reuters.com/article/us-usa-lgbt-survey/u-stransgender-people-harassed-in-public-restrooms-landmark-survey idUSKBN13X0BK> Acesso em: 4 abr. 2024.

6 – OLIVEIRA, João Felipe Zini Cavalcante de. “E travesti trabalha?”: divisão transexual do trabalho e messianismo patronal. Dissertação (mestrado). Orientador: Pedro Augusto Gravatá Nicoli. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. Minas Gerais, 2019. Disponível em: <https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/DIRS-BCA2MH> Acesso em: 18 abr. 2024.

7 – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS (ANTRA). Mapa dos assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em 2017. [s.l.]: 2018. Disponível em: <https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf> Acesso em: 19 abr. 2024.

8 – MACK, Clarisse. Pode um travesti cursar Direto? Uma análise etnográfica sobre ser “a primeira mulher travesti no curso de Direito do CCJ UFPB” à luz do transfeminismo jurídico. Trabalho de conclusão de curso do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.

9 – MAGALHÃES GOMES, Camilla de. CARVALHO, Claudia Paiva. FRANZONI, Julia Ávila. Método transfeminista de reescrita de decisões judiciais: perspectivas teóricas e caminhos para sua aplicação. Revista Direito Público, v. 20, n. 106, 2023. Disponível em: <https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/7172> Acesso em: 12 abr. 2024.

10 – JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2ª edição. Brasília: 2012. Disponível em: < http://www.diversidadesexual.com.br/wp-content/uploads/2013/04/G%C3%8ANEROCONCEITOS-E-TERMOS.pdf > Acesso em: 8 abr. 2024.

11 – BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social. 8ª edição. São Paulo: LTr, 2016

Autores

  • é pesquisadora e ativista transfeminista, bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), integrante da Assessoria de Promoção do Trabalho Decente e dos Direitos Humanos do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), bem como do Grupo de Trabalho em Estudos de Gênero, Raça e Equidade da Justiça do Trabalho e do Grupo de Trabalho para Elaboração do Protocolo de Atuação com Perspectiva Antidiscriminatória da Justiça do Trabalho.

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