Opinião

Ação declaratória de legalidade: "minirreforma do Judiciário"

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27 de junho de 2024, 18h30

Com a reforma tributária, o governo federal, por meio do Ministério da Fazenda e da Advocacia-Geral da União (AGU), está se antecipando às possíveis (e prováveis) controvérsias que advirão das mais variadas interpretações dos textos das leis complementares que ainda se encontram em construção.

Ao que tudo indica, as medidas estão sendo pensadas com o intuito de inibir o caótico cenário que ambas as partes da relação tributária vivem hoje com a constante invocação do tribunal administrativo e judicial para dirimir quaisquer dúvidas acerca da interpretação e aplicabilidade das normas infra e constitucionais — sobretudo aquelas de caráter tributário.

Nesse sentido, a iniciativa recentemente apresentada ao ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), no formato da PEC gentilmente apelidada como “minirreforma do Judiciário”, pauta-se em um novo tipo de ação, qual seja: a ação declaratória de legalidade (ADL).

Segundo o governo federal, o instrumento processual seria concentrado no Superior Tribunal de Justiça (STJ), cabendo ao tribunal superior em questão a solução de todas os casos que discutam atos normativos ou a interpretação de lei complementar federal relacionada à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) ou ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) — os quais são formadores do IVA dual (Imposto sobre Valor Agregado) e responsáveis pela unificação da cadeia de impostos.

Paralelamente, sugeriu-se também uma nova competência para a Justiça Federal de primeiro grau, mediante “órgãos judiciários especializados”, voltada apenas para as causas relativas aos tributos previstos nos artigos 195, V, e 156-A da Constituição, sendo certo que tais artigos são responsáveis pela instituição da CBS e do IBS, citados acima.

Quanto à possibilidade de criação de um novo foro para dirimir as questões relacionadas à CBS e ao IBS, guardaremos essa análise para outro momento, tendo em vista os diversos questionamentos e reflexões a serem feitos, que, definitivamente, merecem uma especial atenção — a exemplo de o IBS ser um imposto originado de exações estaduais (ICMS) e municipais (ISS), comumente julgados pela Justiça Estadual e que, com a aprovação da PEC, a Justiça Federal passaria a ser competente para tanto, em um possível cenário de detrimento da Justiça Estadual.

Dessa forma, da análise do escopo da ADL, percebe-se que o objetivo precípuo da medida é agilizar a unificação da jurisprudência acerca das novas exações, reduzindo as chances de decisões judiciais conflitantes vinculadas a um mesmo cenário fático ou de direito envolvendo o IBS e a CBS, bem como evitar a necessidade de o poder público e os contribuintes terem que cogitar a criação de estruturas jurídicas voltadas para ações que discutam tributos que serão recolhidos no local de consumo (destino) ao invés de onde a empresa está sediada (origem).

Spacca

Sem sombra de dúvidas, a nobre solução pensada pela PEC merece a nossa atenção, sobretudo em razão da sua finalidade de atingir uma rápida consolidação da jurisprudência mediante a ADL.

Quem propõe ADI e ADC

Nesse sentido, cumpre observar que o texto da PEC elenca como atores legitimados para propor a ação declaratória de legalidade aqueles que hoje já podem protocolar a ADI (ação direta de inconstitucionalidade) e a ADC (ação declaratória de constitucionalidade), bem como o advogado-geral da União, o procurador-geral da Fazenda Nacional, o presidente do comitê gestor do IBS e as associações de municípios de âmbito nacional — sendo possível ainda que tal lista seja ampliada.

Acaso os legitimados ora comentados sejam aprovados sem quaisquer alterações, não se pode deixar de refletir sobre a possibilidade de termos um cenário em que a jurisprudência seja consolidada sem a efetiva participação dos contribuintes. Em que pese a necessidade de comprovar a existência de decisões ou manifestações conflitantes nos âmbitos judicial e administrativo, respectivamente, ainda sim a participação dos contribuintes não será tão ativa quando o ideal, tendo em vista que o embate não alcançará o STJ após regular curso processual travado entre as partes que compõem a relação tributária.

Fato é que, com a ADL, a demanda será proposta perante o STJ com base nas razões de direito invocadas por um dos legitimados ativos, sendo este, geralmente, o representante da própria Fazenda Nacional, o que, obviamente, acabaria deixando de levar ao debate diversas outras razões essenciais para o deslinde da matéria ou até mesmo determinado cenário fático capaz de alterar por completo o entendimento do magistrado.

Uma vez fixado o entendimento de caráter vinculante e eficácia erga omnes pela ADL, a luta para os contribuintes conseguirem demonstrar novas razões ou os seus respectivos cenários fáticos passa a ser uma “missão quase impossível”, ocasião na qual o cenário incialmente cogitado estará instaurado, qual seja: uma jurisprudência consolidada sem a contribuição de todas as partes da relação tributária.

Paralelamente, ainda que a ADL seja aprovada, sabe-se que ela não será capaz de solucionar a questão da unificação da jurisprudência ou da sobrecarga dos tribunais em razão da massiva litigiosidade. Isso porque, tal como ocorre atualmente em diversas ações declaratórias e mandados de segurança distribuídos e impetrados pelos contribuintes, a questão de fundo volta e meia se pauta na conformação da legislação perante a Constituição. Dessa forma, acaso os já vislumbrados espaços em branco ou nebulosos decorrentes da EC nº 132/2023 persistam após a edição das Leis Complementares, o STJ não possuirá competência para dirimir a controvérsia, tornando a ADL dispensável e, consequentemente, agravando a já existente sobrecarga do STF.

Os pontos de reflexão invocados no presente texto relevam-se apenas como alguns dos questionamentos pertinentes quando da análise do escopo da ADL. Dessa forma, entendemos que, para além dos diversos pontos positivos e negativos do instrumento processual em questão, a análise acerca da razoabilidade e necessidade de uma nova ação judicial (ADL) deverá ser pautada, sobretudo, na observância à segurança jurídica.

Caso a ADL se revele como um mero instrumento da União para consolidar a jurisprudência vinculada às matérias julgadas pertinentes pelo próprio ente fazendário, em absoluta inobservância à dialeticidade e deixando de oportunizar ao contribuinte a ampla possibilidade de contribuir com as suas razões para a formação do entendimento, não há dúvidas de que, mais uma vez, o sistema tributário nacional estará sujeito ao já conhecido e temido cenário de insegurança jurídica.

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