Opinião

Precisamos repensar o processo de qualificação e seleção das organizações sociais

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26 de junho de 2024, 11h14

Duas das questões mais importantes para o sucesso do modelo de gestão da saúde por organizações sociais são: a qualificação como organização social levada a cabo por estados e municípios tem se demonstrado uma etapa necessária e adequada à seleção da melhor entidade parceira do poder público?

Rovena Rosa/Agência Brasil

O chamamento público, tal qual hoje realizado por estados e municípios, é mesmo o melhor procedimento de seleção da organização social que será a parceira do poder público na provisão dos serviços públicos de assistência à saúde?

A resposta a essas perguntas demanda a contextualização histórica do tema, bem como a análise empírica dos processos de estruturação de um contrato de gestão com organizações sociais.

Sob a perspectiva histórica, é importante assinalar que a etapa de qualificação como organização social surgiu com a própria lei das organizações sociais, no final da década de 1990.

O principal objetivo da qualificação como OS é promover um recorte técnico no multifacetado universo do terceiro setor, com vistas à identificação das entidades que efetivamente possuem condições técnicas, experiência e idoneidade para gerenciar uma estrutura pública e prestar os serviços objeto de um contrato de gestão.

Nessa linha, o processo de qualificação como OS segue a lógica de outras certificações previstas no ordenamento brasileiro, como os antigos títulos de utilidade pública e o certificado de entidade beneficente de assistência social.

O chamamento público é etapa não prevista na lei federal dos contratos de gestão com organizações sociais (Lei n° 9.637/98). Essa lacuna explica-se, em parte, porque predominava à época o entendimento pela impossibilidade de competição entre entidades sem fins lucrativos interessadas em celebrar parceria com o poder público.

Tal raciocínio tinha como base a percepção de que em uma parceria o interesse das partes é convergente, voltado à obtenção de um resultado comum, desprovido de finalidade lucrativa e não passível, portanto, a qualquer critério de competição.

Esse cenário mudou apenas na segunda década do século 21, por meio do amadurecimento jurisprudencial e normativo, que trouxe a exigência de processo seletivo como requisito à celebração de parcerias no setor social.

No que toca especificamente às OS, essa transformação cristalizou-se com o julgamento da ADI 1.923/DF, que questionava a constitucionalidade da lei federal de organizações sociais. Ao julgar pela constitucionalidade do modelo de gestão por OS, mediante ‘interpretação conforme’, o Supremo Tribunal Federal determinou que tanto a qualificação quanto o chamamento público devem ser realizados, nas palavras do STF, de forma pública, objetiva e impessoal.

Esse, portanto, é o contexto histórico. Ainda hoje, para se ter uma ideia, dentre os estados brasileiros, 14 leis de OS sequer fazem referência ao chamamento público. Dessa lacuna, decorrem dificuldades dos gestores públicos, das entidades privadas e dos próprios órgãos de controle, por não disporem de parâmetro legal claro a ser observado quando da estruturação de um contrato de gestão.

Spacca

Ocorre que, na falta de um standard normativo claro, a fim de observar a exigência de publicidade, objetividade e impessoalidade, os entes federativos subnacionais passaram a realizar um mero procedimento cartorial na fase de qualificação das entidades como organização social. Além disso, passaram a adotar um processo seletivo muito similar à licitação pelo critério de técnica e preço.

Exigências do STF

Do ponto de vista pragmático, portanto, a decisão da ADI 1.923/DF trouxe segurança jurídica para o modelo, mas trouxe também um importante desafio: observar as exigências do STF, em especial a objetividade, sem transformar a qualificação e o chamamento público em procedimentos meramente formais e incapazes de selecionar a entidade mais apta a celebrar a parceria.

Não obstante, a qualificação como organização social e, especialmente, o chamamento público têm se aproximado demais do modelo oriundo da lei geral de licitações e contratos (tanto a já revogada Lei n° 8.666/1993 quanto a atual Lei n° 14.133/2021). O problema é que ambas se inserem em um contexto comercial e têm como pressupostos a competição e a desconfiança em relação ao mundo empresarial.

Esse contexto desnuda um problema de base teórica em relação ao qual temos dificuldade. Trata-se de entender em que medida o contrato de gestão assemelha-se a um convênio e em que medida possui feições de um contrato.

Se de um lado há evidente vinculação contratual, com direitos e deveres de cada parte; de outro, há também nos contratos de gestão uma conjugação de esforços para a consecução de um objetivo comum, que apenas pode ser alcançado por meio de ações e concessões recíprocas e, sobretudo, com base na confiança. Portanto, ainda que a natureza do contrato de gestão seja contratual, a conduta recíproca das partes envolvidas não é própria de um contrato administrativo. Esse parece ser o ponto central da discussão sobre qualificação e chamamento público.

Existe um risco significativo caso o chamamento público persista em ser tratado como uma licitação dotada de critérios puramente formais para habilitação e pontuação. Tal abordagem pode resultar na emergência de um indesejado mercado de organizações sociais, que atrairá entidades experts em licitação (ou em chamamento público) e interessadas apenas no do cifrão envolvido na avença.

O grande desafio do chamamento, portanto, é conseguir, por meio de critérios públicos, objetivos e impessoais, atrair entidades que tenham propósito e interesses convergentes com o poder público e que não objetivem meramente auferir ganhos financeiros mensais com o contrato.

Nesse contexto, parece-nos que o processo de qualificação é essencial como fase prévia ao chamamento. Nele devem ser previstos critérios e requisitos formais e materiais detalhados, em alinhamento com os objetivos e valores a serem alcançados pelo contrato de gestão a ser celebrado. Além disso, a qualificação prévia permite que eventuais questionamentos acerca do processo de qualificação não interfiram ou interrompam o próprio chamamento público.

E veja-se que a própria lei de licitações, que neste ponto merece elogio, prevê o procedimento auxiliar de pré-qualificação — justamente voltado à segregação antecipada das agentes privados interessados em contratar com o poder público.

Processos de seleção eficientes

Assim, para que haja processos de qualificação e de seleção eficientes, de modo a proporcionar uma relação de parceria saudável, é essencial que o poder público entenda e manifeste claramente os motivos e os objetivos a serem alcançados pela contratação de uma organização social.

Deve ainda o poder público bem definir o perfil das organizações a serem qualificadas, sendo que os requisitos para qualificação e os critérios para pontuação no chamamento público devem ser objetivamente compatíveis com esse perfil.

A igualdade de oportunidades para que entidades privadas sem fins lucrativos celebrem parcerias com o poder público constitui valor inafastável da Constituição de 1988. Mas o procedimento para garantir essa igualdade ainda precisa se sofisticar e, para isso, afastar-se da racionalidade formalista adotada pela lei geral de licitações e contratos administrativos.

Ao contrário do mundo empresarial, nos contratos de gestão, a competitividade e, mesmo o preço, são critérios secundários — afinal, o ajuste celebrado não produz lucro às entidades e bem envolvido possui natureza social.

Se de um lado, a decisão do STF na ADI 1.923 trouxe segurança estrutural ao modelo de gestão por organizações sociais, como acima mencionado; de outro, ainda paira insegurança funcional quanto à operacionalização do modelo, com tendência de mimetização do modus operandi da lei geral de licitações.

Nesse plano, as lacunas existentes nas leis sobre organizações sociais reclamam atuação do legislador. As leis sobre organizações sociais precisam ser atualizadas com urgência. Quem sabe o Projeto de Lei nº 10.720/2018, já aprovado no Senado e em trâmite na Câmara dos Deputados, possa ser aprimorado e servir como modelo para que estados e municípios inaugurem a segunda geração das leis sobre organizações sociais.

Visitas in locu; entrevistas com corpo diretivo, assistencial e associativo; avaliação dos sistemas internos de controle e prestação de contas; análise de todo o histórico desde a criação da entidade, bem como de seu plano estratégico e área geográfica de atuação.

Numerosos são os fatores que podem e devem ser definidos pelo legislador como critérios para a qualificação e escolha da organização social parceira de cada um dos entes federativos que adotam o modelo. Há muito o que discutir e inovar em prol do aprimoramento e defesa do modelo.

É passada a hora de a legislação dos entes federativos superar a dubiedade própria da aplicação do direito com base em princípios — no caso, trazida pela decisão da ADI nº 1.923. A publicidade, objetividade e impessoalidade, que segundo o STF devem marcar o processo de qualificação e seleção de organizações sociais, reclamam integração legislativa, mediante o detalhamento normativo específico.

Detalhamento esse que não pode aniquilar a margem de discricionariedade do gestor público, mas deve fixar os procedimentos e as balizas para seu devido exercício — segundo a racionalidade própria dos contratos de gestão e não de outras modalidades contratuais.

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