Garantias do Consumo

Insatisfação geral: planos de saúde na berlinda

Autor

  • Maria Stella Gregori

    é advogada de Gregori Sociedade de Advogados professora de Direito do Consumidor da PUC-SP diretora do Brasilcon e ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

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26 de junho de 2024, 8h00

A regulação dos planos de saúde completou 26 anos, importante revisitá-la para aperfeiçoá-la à luz do Código de Defesa do Consumidor. Deve-se comemorar que no Brasil há lei específica, a Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, e uma agência reguladora, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), incumbida de regulamentar, fiscalizar e monitorar o mercado de saúde suplementar, com foco na qualidade da assistência à saúde.

Reprodução

A relação, entre os consumidores e as operadoras de planos de saúde, que oferecem serviços de assistência à saúde, está amparada pelo CDC. A Lei 14.454, de 21 de setembro de 2022, determina que o Código de Defesa do Consumidor tem aplicação cumulativa e complementar à Lei dos Planos de Saúde. Da lei geral extraem-se os comandos principiológicos aplicáveis à proteção do consumidor, ao passo que à legislação específica caberá reger, de forma minudenciada, os planos de saúde.

O legislador veio pacificar positivamente, o que sempre defendemos, que o CDC se aplica complementarmente a todos os contratos de planos de saúde, sejam antigos ou novos, sem nenhuma ressalva. Portanto, os consumidores de planos de saúde têm o direito de ver, reconhecidos, todos os direitos e princípios assegurados pela lei consumerista.

Nesse diapasão, a ANS deve observar os ditames do CDC ao regular e fiscalizar o setor de saúde suplementar, especialmente seus princípios que se destacam, em primeiro plano, a vulnerabilidade do consumidor, o direito à informação e transparência, a boa-fé objetiva e o equilíbrio dos contratos, além de interagir com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, na busca de um mercado sustentável, eficiente e socialmente justo e que o consumidor seja beneficiário de suas ações.

Claro que além dessa vitória, avanços são inegáveis nesses anos, como por exemplo, também, recentemente positivado, o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, ser dinâmico, isto é, admitir a cobertura de procedimentos não listados nele, desde que o médico ou odontólogo assistente comprovem a eficácia de acordo em evidências cientificas e plano terapêutico ou forem recomendados pelo Conitec/SUS ou órgão de avaliação em tecnologia em saúde internacional.

Entretanto, a regulação do setor de saúde suplementar ainda necessita de aperfeiçoamentos, especialmente em pontos que não se coadunam com o CDC, tais como os planos de saúde coletivos, que têm reajustes não autorizados pela ANS, podem suspender ou rescindir unilateralmente seus contratos, e não são obrigados a fornecerem aos consumidores as condições gerais dos contratos.

Por conta disso, nestes anos os conflitos têm aumentado consideravelmente e o Poder Judiciário provocado a dirimir as ações judiciais de consumidores em face às operadoras de planos de saúde.

Desde 2006, encontram-se inúmeros Projetos de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados apensados ao PL 7.419, inclusive com relatório satisfatório elaborado pelo deputado Duarte Junior, para apreciação.

Ocorre que as operadoras há muito tempo insatisfeitas com as regras vigentes têm tido comportamento alheio aos interesses de seus consumidores, alegando estratégias empresariais. Isto é, deixaram de comercializar planos individuais ou familiares devido as regras serem mais exigentes; têm rescindido unilateralmente contratos coletivos de consumidores, especialmente de idosos e portadores de doenças raras; vêm dificultando autorizações de coberturas assistenciais; não têm cumprido decisões judiciais. Além de defenderem publicamente proposta de alteração legislativa, permitindo a comercialização de planos subsegmentados, acessíveis ou populares, que são planos com coberturas assistenciais reduzidas.

Diante disso, há descontentamento dos consumidores, a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) notificou empresas para se manifestarem e o presidente da Câmara dos Deputados convocou somente as operadoras para reunião e, informou pelas redes sociais, que firmou verbalmente um acordo. Sabe-se que este acordo deu-se, em contrapartida à abertura de uma CPI, desde que elas readmitam os consumidores cancelados e que a casa legislativa retornará a analisar o tema em regime de urgência.

Insatisfação geral

Infelizmente, mais uma vez os planos de saúde voltaram à berlinda, o descontentamento é geral. Entende-se que é obvio haver sustentabilidade social, econômica e ambiental, com todos os atores satisfeitos.

Nesse diapasão, é importante o aperfeiçoamento do marco regulatório dos planos de saúde, o qual deve se dar a partir de um debate amplo com todos os atores envolvidos na saúde suplementar e, também, não deve haver retrocessos referentes às conquistas alcançadas até o momento.

Ressalta-se que, as operadoras têm que compreender que prestam no mercado de consumo assistência à saúde, isto quer dizer, que seus clientes devem ter um atendimento assistencial de qualidade de todas as doenças previstas pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e os consumidores devem utilizar seus planos de saúde com responsabilidade além de pagar em dia suas mensalidades.

Causa tristeza o setor regulado há tantos anos continuar a desrespeitar seus consumidores, portanto é imprescindível que o debate se inicie imediatamente de forma transparente.

Sugere-se alguns desafios para tentar alcançar consensos

  1. A ministra da Saúde deve estar alinhada com os membros do Consu (Conselho da Saúde Suplementar) para estabelecer diretrizes para o setor da saúde suplementar;

  2. A ANS deve fiscalizar com afinco as operadoras infratoras;

  3. O Poder Legislativo deve convocar toda a sociedade para um diálogo transparente;

  4. A necessidade da integração informacional entre o SUS e o sistema privado, justamente para definir as políticas públicas do setor de saúde;

  5. A indicação de diretores para a ANS e para os seus cargos comissionados de profissionais técnicos capacitados de notório saber e ilibada reputação;

  6. No que se refere, especialmente, à possível proposta de regulação de planos subsegmentados, acessíveis ou populares, com cobertura reduzida e custos mais baixos, seria oportuno ouvir o Ieps (Instituto de Estudos em Políticas de Saúde), criado pelo economista Arminio Fraga, que tem estudo sobre o tema e entende que esta ideia sobrecarregará o SUS e aumentará a desigualdade no acesso e na judicialização da saúde;

  7. É importante também a adequação das normas de defesa do consumidor na regulação dos planos de saúde, isto é, a compatibilização ao CDC. Os principais pontos: a entrega do contrato para os consumidores de planos coletivos; vedar a possibilidade de rescisão ou suspensão do contrato de planos coletivos; o reajuste financeiro dos planos coletivos deve também ser autorizado pela ANS, como já acontece com os planos individuais;

  8. Em relação ao Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, que trata da cobertura mínima obrigatória pelas operadoras de planos de saúde, entende-se que foi um avanço a aprovação recente da Lei 14.454/2022, mas vê-se com preocupação a possibilidade da indicação de um procedimento ou medicamento, indicado por um médico, que possa não ter comprovação científica ou não aprovação de um órgão técnico regulador (ex: pílula do câncer ou cloroquina). O legislador deveria ter utilizado a locução aditiva (e) e não a alternativa (ou);

  9. Outro tema, que merece atenção, é a necessidade do atendimento integrado com prontuário eletrônico pessoal e, também, tornar definitiva as práticas de telemedicina e teleconsultas;

  10. Aperfeiçoar modelos de remuneração dos profissionais de saúde vinculados à qualidade e à eficácia, como alternativa ao fee for service, que é muito utilizado e gera desperdício;

  11. É muito importante tipificar crimes contra fraude e de desvios de recursos na saúde;

  12. Seria oportuno criar um órgão técnico único para avaliar a incorporação de novas tecnologias, pautado na medicina baseada em evidência, tanto para o SUS como para saúde suplementar.

Por fim, todo o debate da saúde deve ser focado no cidadão e consumidor, lembrando sempre que o atendimento deve ser humanizado, respeitando a dignidade humana. É fundamental para construirmos um país mais justo, igualitário e solidário estarmos todos unidos, dialogando para encontrarmos um caminho com políticas públicas eficazes.

Mãos à obra!

Autores

  • é advogada de Gregori Sociedade de Advogados, professora de Direito do Consumidor da PUC-SP, diretora do Brasilcon e foi diretora da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).

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