Opinião

Mercado de luxo pelas lentes do direito concorrencial: caso Birkin-Hermès

Autores

  • Juliana Oliveira Domingues

    é secretária nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor membro do Comitê Executivo do Consu e professora doutora de Direito Econômico da FDRP-USP com pesquisa de pós-doutorado realizada como visiting-scholar na Universidade de Georgetown (EUA).

    View all posts
  • Fernanda Lopes Martins

    é mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Pesquisadora em Direito Antitruste. Integrante da Women in Antitrust (WIA) atuante na Diretoria Acadêmica. Consultora não-governamental (NGA) na International Competition Network (ICN).

    View all posts
  • Lauren Thaís Petter

    é graduanda em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Intercambista no 42º PinCade. Mentorada no Women in Antitrust e membro do Women in Antitrust Júniors. Estagiária na Procuradoria Federal Especializada junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (PFE-CADE).

    View all posts

26 de junho de 2024, 15h15

O fashion law [1] é visto, muitas vezes, como puro glamour na área do direito, especialmente para quem desconhece uma área que se dedica aos fenômenos jurídicos inseridos dentro da cadeia produtiva da moda. Contudo, dentro desse universo, existem disputas jurídicas instigantes que envolvem produtos icônicos do mundo da moda.

NFT Birkin/Reprodução

Vale lembrar que na indústria fashion encontramos casos emblemáticos. Especificamente o mercado de luxo, onde há intensa busca de exclusividade, alguns temas têm chamado a atenção. Recentemente, por exemplo, a mídia americana deu destaque para um caso envolvendo as bolsas Birkin, que é um produto icônico da marca Hermès. O caso chama a atenção por ter invocado as lentes do direito concorrencial (também chamado de direito antitruste no Brasil).

Há uma class action no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, em face da grife francesa Hermès. A demanda foi motivada por consumidores insatisfeitos, e a acusação tem como base uma suposta recusa da marca Hermès na venda das famosas bolsas Birkin, um disputado e caríssimo item da marca francesa.

Aparentemente, trata-se de decisão discricionária da empresa, que estaria vinculando as vendas do produto com o “histórico de compras” dos consumidores. Em resumo, de acordo com os autores da ação, a grife francesa condicionou a venda da bolsa Birkin, uma das mais famosas da marca, à compra de outros itens pelos consumidores.

Desde a sua fundação por Thierry Hermès, em 1837, a marca que era especializada em selas e arreios de couro ampliou sua linha de produtos para coleções prêt-à-porter, perfumes e bolsas [2]. Em 1984, ou seja, há 40 anos, a marca Hermès lançou a peça que se tornaria um dos objetos mais desejados no mundo da moda, inspirado na atriz franco-britânica — e recentemente falecida — Jane Birkin: a bolsa de couro feita à mão tornou-se um acessório desejado, em meio às celebridades e consumidores de elevado poder aquisitivo. Com o passar dos anos, a bolsa Birkin evoluiu em termos de tamanhos e cores, mas uma característica imutável é a sua vinculação com a imagem de um item exclusivo.

Nessa conjuntura, os autores da class action alegam a impossibilidade de adquirir as bolsas de uma forma alternativa, uma vez que o produto estaria condicionado à compra de vários itens da marca para atingir o suposto histórico de compras [3]. Desse modo, segundo os autores, haveria uma suposta infração à legislação antitruste, dado o condicionamento da venda de um item à compra de outro; em outros termos. Alega-se, portanto, a conduta denominada de venda casada em um mercado relevante que seria mais restrito diante da característica exclusiva do produto.

Mais um caso envolvendo direito antitruste e o mercado de luxo da moda?

Os autores da ação ajuizada contra a Hermès afirmam que a postura da marca se consubstancia em uma atitude discriminatória na venda das bolsas Birkin e uma prática que violaria a legislação concorrencial dos EUA, notadamente o Section 2, 15 U.S.C. § 2º do Sherman Act [4], que corresponde à norma de combate aos monopólios ou tentativas de monopolização.

Os autores também afirmam que os vendedores da Hermès são instruídos a utilizar as bolsas Birkin como uma estratégia para incentivar os consumidores a adquirirem produtos auxiliares, pelos quais eles recebem uma comissão de 3%. A partir disso, seria formado um histórico de compras do consumidor, utilizado para classificar a elegibilidade para adquirir uma bolsa Birkin.

Spacca

No mais, alegam que a Hermès possui poder econômico suficiente no mercado de bolsas Birkin para coagir pelo menos alguns consumidores a comprar outros produtos [5]. Contudo, para o direito antitruste, para que a venda casada seja classificada como uma infração concorrencial — que, no Brasil, também é uma prática abusiva pelo Código de Defesa do Consumidor —, é essencial em primeiro lugar a definição do mercado relevante do produto. A definição do mercado relevante geralmente envolve a identificação de produtos substitutos próximos (e a aplicação do teste do monopolista hipotético).

No Brasil, a venda casada está tipificada na Lei nº 12.529/2011, Lei de Defesa da Concorrência (LDC), no artigo 36, §3º, XVIII (subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem). Nesse contexto, para que a conduta seja uma infração antitruste, é necessário que a empresa detenha posição dominante em pelo menos um dos mercados analisados.

Portanto, para que seja caracterizada como venda casada, deve ser configurado o poder de mercado de uma empresa sobre determinado produto ou serviço, assim como estar condicionada a aquisição de um produto (ou contratação de um serviço) à aquisição de outro produto/serviço [6]. Em outras palavras:

“[…] o efeito concorrencial da venda casada está relacionado à ‘alavancagem’ (ou leverage) de poder de mercado de um produto para outro. Como resultado, os consumidores experimentariam um aumento de preços para a aquisição do produto-alvo da venda casada (pois teriam de arcar com o custo de aquisição de dois produtos), quando, simultaneamente, ocorre um ‘bloqueio’ do mesmo segmento alvo (em geral, de distribuições e nos mercados pós-vendas) para concorrentes efetivos e potenciais [7].”

No entanto, os autores alegam que não existem substitutos para as bolsas Birkin de modo que ela deveria ser considerada como um “monopólio de marca única.” Para corroborar essa afirmação, comparam esses produtos a outros itens icônicos como os tênis Air Jordans e a pulseira Love, que supostamente também não possuiriam substitutos [8].

Além disso, os autores alegam que a Hermès está tentando monopolizar um mercado de “produtos auxiliares”, incluindo lenços, cintos, sapatos e joias. No entanto, referida alegação passa a ser frágil, do ponto de vista da análise econômica, diante do número significativo de outras marcas de luxo que oferecem produtos semelhantes. A ideia de que a Hermès tenha elaborado um plano para, a longo prazo, monopolizar outros produtos como cintos pode ser contestado no sentido econômico, considerando a presença de outras marcas — mesmo no mercado de luxo — desses itens.

Por outro lado, é preciso considerar que as autoridades de direito da concorrência não têm definido o mercado de luxo como um mercado relevante específico, o que poderia, em tese, favorecer o poder econômico presumido de grandes marcas luxuosas, dando espaço para a judicialização desses temas e um olhar excessivamente privatista (isto é, de direito privado) à solução jurídica, sem trazer as especificidades do mercado consumidor e sem uma definição afinada do mercado relevante.

No Brasil, no contexto do julgamento de casos de venda casada, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) verifica se há uma justificativa plausível para a conduta e utiliza a regra da razão. Portanto, no Brasil, não se trata de conduta analisada como ilícito per se. Para tanto, considera fundamentos econômicos ou jurídicos que sustentem a oferta conjunta de produtos ou serviços, o que pode afastar a configuração de uma infração antitruste, mas não necessariamente afasta as lentes do direito do consumidor e uma eventual aplicação do CDC. Além disso, o Cade investiga se essa prática resulta em impactos negativos no mercado, como a diminuição da concorrência ou prejuízos aos consumidores.

O Cade analisa casos de venda casada à luz da Lei de Defesa da Concorrência (LDC — Lei nº 12.529/2011). A preocupação central é que a venda casada possa criar obstáculos à entrada de novos concorrentes, fortalecer posições dominantes e restringir as opções disponíveis aos consumidores [9]. Vale observar que em determinadas situações, práticas inicialmente rotuladas como venda casada podem ser explicadas por ganhos de eficiência ou benefícios para os consumidores, não necessariamente comprometendo a competitividade, por exemplo.

Nesse sentido, na ótica antitruste, a especificidade de um produto não significa a sua não substitutibilidade. Na prática, as autoridades de concorrência não costumam definir o mercado relevante em torno de um único produto, pois essa abordagem raramente reflete a realidade econômica das opções disponíveis para os consumidores.

Portanto, o desfecho de uma eventual aplicação do direito concorrencial, ao menos na prática brasileira, dependeria da definição do mercado relevante na dimensão produto para aferir o potencial poder de mercado e a posição dominante no mercado da empresa. A princípio, fazendo um paralelo e considerando a experiência brasileira, diante da suposta ausência de poder de mercado da Hermès no mercado relevante de bolsas em geral, a empresa poderia se socorrer do argumento da ausência de incidência da legislação antitruste.

Entretanto, se em algum momento as autoridades de defesa da concorrência buscarem um refinamento na definição do mercado relevante de bolsas de luxo e caso se entenda pela ausência de substitutibilidade do produto — na perspectiva da oferta e da demanda — pode ser que novos contornos sejam delimitados para esse debate. Se, por hipótese, fosse considerado um mercado relevante de bolsas Birkin — ou seja, um produto exclusivo e insubstituível da marca Hermès —, estaríamos diante de empresa com possível exercício de posição dominante, o que acarretaria uma análise cautelosa por parte da autoridade antitruste acerca da suposta conduta de venda casada. Claro que todo esse cenário observamos com base na experiência internacional e nos termos do artigo 36, §3º, XVIII da Lei de Defesa da Concorrência.

CDC, LDC ou LPI?

Embora a ausência de uma posição dominante no mercado possa limitar a aplicação da legislação antitruste — tal como tem sido na aplicação da legislação brasileira —, a possível violação das leis de defesa do consumidor, tanto nos EUA quanto no Brasil, merece atenção. A definição clara do mercado relevante e a avaliação precisa de uma suposta posição dominante da Hermès são cruciais para determinar a validade das alegações e o possível impacto de contratos de exclusividade e de vendas casadas sobre os consumidores e a concorrência.

Caso o referido passasse a ser analisado no Brasil, identifica-se mais facilmente a incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em virtude da ausência de transparência nos critérios de venda ou pela eventual prática de discriminação alegada no caso em curso. Nessa conjuntura, a imposição de que um produto que só possa ser adquirido mediante a compra de outro poderia ser classificada como prática abusiva e prejudicial aos direitos dos consumidores, visto que está prevista no artigo 39, I do CDC (“Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”).

No contexto brasileiro, vale lembrar que esses temas são constantemente judicializados, a exemplo do caso das bolsas “I am not real”, cujo desfecho foi favorável à Hermès diante de uma alegada diluição da marca identificada em uma paródia realizada por outra marca brasileira que produzia bolsas de moletom no formato da bolsa original. O entendimento judicial comparou as bolsas a obras de arte.

Com base na Lei de Propriedade Industrial (LPI), identificou-se concorrência parasitária e foi decidido que a paródia das bolsas resultava em diluição da marca, comprometendo a imagem e o valor associados à Hermès. A decisão reconheceu que a imitação (ou paródia) não apenas causava confusão entre os consumidores, mas também impactava negativamente a marca. Dessa forma, a sentença reforçou a necessidade de proteger a marca contra práticas que possam prejudicar sua integridade e valor de mercado [10].

Veja-se que a decisão do caso “I am not real” invoca a concorrência desleal da LPI e não a legislação concorrencial (Lei 12.529/20911).

Nos temas que envolvem o mercado de luxo, é clara a intersecção entre diferentes esferas do direito, formando parte daquilo que traduz o termo fashion law, o direito da moda, que tem sido amplamente debatido.

Do glamour à legalidade, qualquer ação realizada pelos agentes econômicos inseridos no mundo da moda, ainda que inocente ou trivial, rapidamente pode evoluir para um dilema jurídico complexo e significativo e, até mesmo, desencadear litígios imprevistos. Resta a dúvida se o Judiciário (inclusive o brasileiro) seria o melhor foro para endereçar essas questões que demandam ampla compreensão do mercado, especialmente o mercado de luxo.

 


[1] Conforme explicamos em estudo anterior, há mais de dez anos foi criado um grupo permanente de pesquisa sobre Fashion Law na Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto e “[…]  o primeiro centro de estudos dedicado ao Fashion Law teve incentivo do Council of Fashion Designers of America sob presidência de Diane von Furstenberg, na Fordham Law School (NY). No Fashion Law Institute a professora e advogada Susan Scafidi, passou a ser conhecida por disseminar o termo ‘fashion law’ por meio da criação de um curso em 2006.”. Cf. DOMINGUES, Juliana Oliveira; MARTINS, Fernanda Lopes; PETTER, Lauren Thaís. Direito Antitruste está na moda: fashion law e operações de fusão e aquisição. Consultor Jurídico, 25 mar. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-25/direito-antitruste-esta-na-moda-fashion-law-e-operacoes-de-fusao-e-aquisicao/. Acesso em: 19 jun. 2024

[2] Leading 10 luxury brands most trusted by consumers worldwide in 2022. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/1323087/most-trusted-luxury-brands/

[3] EUA. Cavalleri et al v. Hermes International, a French corporation et al. Disponível em: < https://dockets.justia.com/docket/california/candce/3:2024cv01707/426721> Acesso em 12 de jun de 2024.

[4] “Every person who shall monopolize, or attempt to monopolize, or combine or conspire with any other person or persons, to monopolize any part of the trade or commerce among the several States, or with foreign nations, shall be deemed guilty of a felony, and, on conviction thereof, shall be punished by fine not exceeding $100,000,000 if a corporation, or, if any other person, $1,000,000, or by imprisonment not exceeding 10 years, or by both said punishments, in the discretion of the court”. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/uscode/text/15/2

[5] “[…] the Birkin bag’s exclusivity, limited availability, and iconic status make it difficult to find a perfect substitute.” EUA. Cavalleri et al v. Hermes International, a French corporation et al. Disponível em: < https://dockets.justia.com/docket/california/candce/3:2024cv01707/426721> Acesso em 12 de jun de 2024.

[6] DOMINGUES, Juliana Oliveira; GABAN, Eduardo Molan. Direito Antitruste. 5ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p.146

[7] Ibidem.

[8] Para mais detalhes sobre as alegações iniciais dos autores, a class action complaint,:

https://fingfx.thomsonreuters.com/gfx/legaldocs/gdpzdaylopw/Cavalleri-v-Hermes%2020240319.pdf

[9] Nesse sentido, veja-se o Processo Administrativo nº 08012.010483/2011-94 envolvendo Google Shopping, no qual a empresa foi acusada de utilizar os dados de anunciantes dos Anúncios de Links Patrocinados (PLA) para alimentar o seu próprio site de comparação de preços, o que a Representante sugeriu ser uma forma de conduta assemelhada à “venda casada. O caso foi arquivado por indícios insuficientes de autoria e materialidade da suposta infração. Cf. Brasil. CADE. Processo Administrativo nº 08012.010483/2011-94.

[10] DIREITOS AUTORAIS. Bolsas Hermès. Ação declaratória. Reconvenção procedente – Bolsas Hermès constituem obras de arte protegidas pela lei de direitos autorais. Obras que não entraram em domínio público. Proteção garantida pela lei 9.610/98. A proteção dos direitos de autor independe de registro. Autora/reconvinda que produziu bolsas muito semelhantes às bolsas fabricadas pelas rés/reconvintes. Imitação servil. Concorrência desleal configurada. Aproveitamento parasitário evidenciado. Compatibilidade da infração concorrencial com violação de direito autoral reconhecida. Dever de a autora/reconvinda se abster de produzir, comercializar, importar, manter em depósito produtos que violem os direitos autorais da Hermès sobre a bolsa Birkin ou qualquer outro produto de titularidade das rés/reconvintes. Indenização por danos materiais e morais. Condenação mantida. Recurso desprovido.

(TJSP;  Apelação Cível 0187707-59.2010.8.26.0100; Relator (a): Costa Netto; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 24ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/08/2016; Data de Registro: 17/08/2016)

Autores

  • professora doutora de Direito Econômico da USP (FDRP-USP), ex-procuradora-chefe do Cade. Ex-secretária nacional do consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública (2020/2022) e ex-presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (2020/2022) e do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP).

  • é mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Pesquisadora em Direito Antitruste. Integrante da Women in Antitrust (WIA), atuante na Diretoria Acadêmica. Consultora não-governamental (NGA) na International Competition Network (ICN).

  • é graduanda em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Intercambista no 42º PinCade. Mentorada no Women in Antitrust e membro do Women in Antitrust Júniors. Estagiária na Procuradoria Federal Especializada junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (PFE-CADE).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!