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Consultor Jurídico

Mediação fast food coloca em risco o bem-estar das mulheres

26 de junho de 2024, 20h40

Por Juliana Ribeiro Goulart, Diego Nunes

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A mediação judicial foi implementada no Brasil para melhorar os índices de eficiência do Poder Judiciário após o diagnóstico de um contexto de crise. No ponto, é fundamental reconhecer que o Judiciário tem buscado empreender medidas significativas [1] para enfrentar os desafios do alto índice de litigância e morosidade. O protagonismo na promoção da mediação, em comparação com outros atores sociais, exemplifica esses esforços, uma vez que incentiva novas oportunidades para o tratamento dos conflitos.

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Nesse caminho, é preciso cautela para não se creditar à técnica da mediação toda a responsabilidade de aliviar os tribunais da acumulação de casos pendentes de julgamento. Como adverte Maria Carme Boqué Torremorell, “metamorfosear a forma e não o substrato de uma sociedade litigante é uma forma de mudar, mas deixando tudo igual” (2008, p. 9). Ou seja, é essencial lembrar que a transformação deve ser pensada para além da forma e abordar a substância da cultura litigante, que passa pela análise das interações sociais e representações imaginárias que as pessoas têm do direito.

A caracterização da “mediação como fórmula fast food” é uma expressão cunhada pela autora, que seria destinada a saciar veloz e economicamente todas as necessidades (Torremorell, 2008, p. 13). A metáfora remete à intenção de oferecer uma alternativa rápida e padronizada para as partes envolvidas em conflitos. Trata-se de uma abordagem que levanta questionamentos, pois pode incentivar a utilização da mediação para soluções a qualquer custo e que não abordem profundamente as complexidades subjacentes que envolvem cada caso (Goulart, 2023).

Cite-se, por exemplo, contextos que envolvam violência contra as mulheres [2] em situações em que estão muitas vezes ocultos estereótipos e preconceitos arraigados que acabam emergindo quando as partes começam a interagir na sessão de mediação.

Imagine-se uma situação em uma parte homem surpreenda a terceira pessoa mediadora, chamando a outra parte, mulher, de “louca” no meio da interação. A violação do combinado no início da sessão do dever de manter uma comunicação respeitosa já seria o suficiente para o encerramento da sessão, pois sua continuidade comprometeria a imparcialidade da pessoa mediadora, a integridade do procedimento e o bem-estar das partes. A continuidade da sessão sem qualquer advertência poderia reforçar o sistema de subordinação que passa pelas relações familiares, profissionais e sociais às quais as mulheres estão envolvidas (Mattos, 2015, p. 161).

Por isso, para prevenir tais condutas, sugere-se incluir na abertura da sessão uma fala adicional com perspectiva de gênero, especialmente em questões em que seja comum a configuração de desigualdade de poder nas relações, como nos casos dos direitos das famílias.

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Compromisso contra violência de gênero

Na mediação judicial, é oportuno mencionar também o compromisso do Poder Judiciário em repudiar toda e qualquer forma de violência de gênero (Goulart; Barbosa, 2024).

É preciso cautela, pois cada conflito é único e uma abordagem universal não se adequa a todos os contextos. A personalização e consideração das especificidades de cada caso são essenciais para alcançar soluções potenciais e satisfatórias às partes.

Nesse caminho, os mediadores e mediadoras devem dedicar especial atenção para personalizar e adaptar a mediação para as necessidades dos participantes. Isso inclui estar preparado para identificar e abordar dinâmicas de poder desiguais, garantir que as pessoas envolvidas tenham voz e que a mediação seja um espaço seguro.

Atravessar a cultura jurídica contenciosa de confrontação e hostilidade, à qual submetemos e estamos submetidos, para a da cultura de mediação exige uma releitura das relações interpessoais e coletivas, a partir de uma linguagem que privilegie o diálogo respeitoso no tratamento dos conflitos (Torremorell, 2008, p. 9). Warat adverte sobre as dificuldades de atualização do sistema jurídico, quando menciona existência de uma linguagem técnica, formal, que diz respeito à teoria jurídica tradicional e que cumpre relevante função política e ideológica de manutenção das estruturas de poder (Warat, 1995, p. 55).

Creditar à técnica padronizada e impessoal a transformação da sociedade deixa de fora importantes temas, essenciais para pensarmos uma mudança de cultura, como o tema afeto às mulheres e aos casos de violências estruturais que todos os dias batem às portas do Poder Judiciário. Assim, é imperativo que os profissionais envolvidos passem por formações críticas, reflexivas e alinhadas aos direitos humanos e fundamentais, assegurando que o acesso à justiça não seja pautado por soluções simplistas e superficiais.

Este enfoque é essencial para que a mediação contribua verdadeiramente para uma justiça mais inclusiva, especialmente no que concerne aos direitos das mulheres e às questões de gênero que permeiam o sistema judicial contemporâneo. O acesso à justiça para as mulheres precisa criar mecanismo que desobstruam os mecanismos opressores que pretendem perpetuar o sistema de dominação das mulheres.

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Referências

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, 2002. Disponível em:https://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf. Acesso em: 15 junho.

MATTOS, Cristiane Araújo de. ‘Patriarcado público’: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, [S. l.], n. 22, p. 158–169, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/agora/article/view/13614. Acesso em: 17 jun.2024.

GOULART, Juliana Ribeiro; BARBOSA, Gabriela Jacinto. É urgente a formação de profissionais da mediação na perspectiva de gênero. Consultor Jurídico, 14 abr. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-14/e-urgente-a-formacao-de-profissionais-da-mediacao-na-perspectiva-de-genero/. Acesso em: 17 jun. 2024. ​

GOULART, Juliana Ribeiro. Cultura de mediação na Administração Pública: uma abordagem para o apoio a gestantes e lactantes no serviço público. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Florianópolis, 2023.

IACONELLI, Vera. Manifesto antimaternalista. Psicanálise e políticas de reprodução. São Paulo: Zahar, 2023.

TORREMORELL, Maria Carme Boqué. Cultura de Mediação e Mudança Social. Porto: Porto Editora. 2008.

WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2 ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.


[1] A este respeito, cite-se a Resolução n. 125/2010 do CNJ, o Manual de Mediação Judicial do CNJ que foi atualizado até a sua 6ª edição, os cursos de capacitação de mediadores, de formação de formadores etc.

[2] Não se está a falar de uma pessoa ou sujeito universal mulher, mas em várias mulheres. Como advertem o transfeminismo e o feminismo negro, não podemos pensar a categoria “mulheres”, como um grupo hegemônico (Iaconelli, 2023, p. 31).  A mulher com deficiência, a mulher negra, a mulher discriminada em razão da idade, a mulher lésbica, a mulher trans, todas são atravessadas por mecanismos de opressão, o que é conceituado como interseccionalidade (Crenshaw, 2002).