Opinião

Anteprojeto do Código Civil muda alcance da desconsideração da personalidade jurídica

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26 de junho de 2024, 13h17

Embora tenha sido sofrido alterações legislativas relativamente recentes, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, mais uma vez, é objeto de mudanças no anteprojeto de reforma do Código Civil. O relatório final apresentado pela comissão de juristas ao Senado modifica trechos do texto atual e inclui novas previsões, com reflexos importantes para o alcance da norma.

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Àqueles menos familiarizados, vale a introdução: a desconsideração da personalidade jurídica é uma exceção à regra da autonomia patrimonial, segundo a qual cada um responde por suas dívidas. Em termos mais práticos, esse princípio (albergado pelo artigo 49-A, do Código Civil) estabelece que os sócios não devem ter seu patrimônio atingido por débitos da sociedade e vice-versa.

De outra perspectiva, também implica que os bens de uma sociedade empresária não sejam alcançados para quitar passivos de outra, ainda que integrantes do mesmo grupo econômico.

Essa exceção é justificada apenas quando comprovada a caracterização de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial (requisitos objetivos) que implique benefício direto ou indireto àqueles que vierem a ser atingidos pela desconsideração (requisito subjetivo).

Essa construção decorre do texto atual do caput do artigo 50, do Código Civil, cuja transcrição é conveniente a esta altura: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.

Tal redação é recente, advinda da Lei nº 13.874/2019. Anteriormente, o texto não previa o requisito subjetivo constante da parte final do caput, qual seja, a condição de que os administradores ou sócios da pessoa jurídica tivessem obtido benefícios diretos ou indiretos decorrentes do abuso. Portanto, há cinco anos, o legislador restringiu as margens de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, reforçando, por conseguinte, o princípio da autonomia patrimonial.

Trilhou, assim, caminho semelhante àquele adotado quando da construção do Código de Processo Civil de 2015, cujos artigos 133 a 137 passaram a prever um procedimento específico para a desconsideração da personalidade jurídica. O incidente em questão exige provocação do juízo (afastando a atuação de ofício), a suspensão do processo originário e o respeito ao contraditório, com abertura de prazo de defesa de 15 dias úteis e possibilidade de produção probatória para os requeridos. As previsões vão de encontro às possibilidades de decretação “surpresa” de responsabilidade por débitos alheios.

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Mais recentemente, em setembro de 2023, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça também terminou por fechar um pouco mais as portas para as pretensões de desconsideração da personalidade jurídica. No julgamento do Recurso Especial nº 1.925.959/SP, decidiu que, quando os incidentes são rejeitados, a parte requerente deverá pagar honorários sucumbenciais ao advogado do requerido (parte a quem se pretendia imputar a responsabilidade por dívida alheia).

Embora esse entendimento ainda não seja pacificado, inclusive no âmbito do próprio STJ (vide AgInt no REsp 1.930.160/SP, da 4ª Turma), é certo que aquela decisão altera os cálculos pela adoção ou não do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Um credor que encontra dificuldades de satisfazer seu crédito precisará refletir sobre, ao menos, três questões:

  • i) vale a pena suspender meu processo contra o devedor original, para tentar atingir terceiros?
  • ii) eu tenho provas contra esses terceiros, a partir dos requisitos do artigo 50, do Código Civil?
  • iii) esses terceiros têm patrimônio capaz de responder pelas dívidas?
  • iv) estou disposto a correr o risco de precisar pagar honorários?

Novidades da reforma do Código Civil

Feito esse breve histórico, chegou a hora de tratar, especificamente, das novidades propostas pelo anteprojeto de reforma do Código Civil, que foi entregue pela comissão de juristas ao Senado em abril de 2024. Pelo texto, haveria duas mudanças no caput do artigo 50. Embora pareçam sutis, elas têm um impacto potencialmente relevante.

O anteprojeto inclui, na parte final, que a desconsideração pode atingir os patrimônios de administradores, sócios e, também — esta é a novidade —, de associados da pessoa jurídica. O ponto é reforçado nos §§2º e §§3º, inclusive para especificar que somente podem ser responsabilizados os associados “com poder de direção ou com poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica”.

Esse ponto é relevante porque estende, expressamente, a desconsideração da personalidade jurídica a pessoas jurídicas não-empresárias. Isso está em linha com o que é proposto como novo §1º do artigo 50: “o disposto neste artigo se aplica a todas as pessoas jurídicas de direito privado, nacionais ou estrangeiras, com atividade civil ou empresária, mesmo que prestadoras de serviço público”. Identifica-se, aqui, uma clara pretensão de abertura das possibilidades de utilização do instituto, aparentemente em tendência contrária aos movimentos legislativos anteriores já tratados neste texto.

Por outro lado, o anteprojeto prevê uma mudança no caput do artigo 50 que se alinha à lógica mais restritiva que vinha sendo adotada. Enquanto o texto atual prevê que a desconsideração implicaria o alcance dos “bens particulares”, a proposta estabelece que ele se daria sobre os “bens de propriedade” de administradores, sócios ou associados.

A mudança terminológica pode ser relevante, caso a jurisprudência entenda a propriedade de forma restrita, como o direito real previsto no artigo 1.225, do próprio Código Civil, o qual se diferencia, por exemplo, da superfície, do usufruto, do penhor, da hipoteca etc.

Aqui, é preciso abrir parênteses, para engrossar o coro dos críticos ao anteprojeto. Muitos estudiosos e profissionais têm salientado a ausência de uniformidade e coerência do texto final, comparando-o com uma “colcha de retalhos”. É o que parece existir neste caso específico. Isso porque o caput do artigo 50 troca “bens particulares” por “bens de propriedade”, o que, inclusive, é realçado na justificativa do anteprojeto. Mas, no artigo 1.024, a proposta mantém a antiga terminologia, estabelecendo que “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.

Quanto ao artigo 1.024, portanto, o anteprojeto parou no meio do caminho do diálogo com o artigo 50. Ele introduz uma parte final (salvo nos casos de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, nos termos previstos no artigo 50 deste Código e em leis especiais), mas adota terminologia potencialmente contraditória quanto aos bens suscetíveis de atingimento (bens particulares versus bens de propriedade).

Das demais alterações previstas para o artigo 50, merece destaque a inclusão de uma terceira hipótese de confusão patrimonial, que poderia ser caracterizada “pela prática pelos sócios ou administradores de atos reservados à sociedade, ou pela prática de atos reservados aos sócios ou administradores pela sociedade”. Essa nova hipótese não é explicada na justificativa do anteprojeto e pode suscitar polêmica hermenêutica, na medida em que não há clareza sobre quais seriam esses atos reservados, tampouco como configurariam uma confusão especificamente patrimonial.

Como ocorre com as tramitações de todas propostas de reforma ou criação de códigos, o anteprojeto deve ter um longo caminho nas casas legislativas. Ainda assim, justifica-se a atenção a mudanças que podem ter impactos significativos nas vidas pessoais e na economia, sobretudo aquelas que precisam ser consideradas em planejamentos realizados no tempo presente. É exatamente o caso do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

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