Opinião

Processos psicológicos na aceitação dos mitos de estupro

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25 de junho de 2024, 20h41

Os mitos do estupro são falsas crenças baseadas em estereótipos e preconceitos acerca do estupro [1]. Essas falsas crenças estão presentes na mente da maioria das pessoas e podem levar a um erro de julgamento no momento da tomada de decisão por alguém que tem o dever de julgar casos de estupro.

Como delimitação do tema, este artigo tem como objeto o estupro praticado por homem contra uma vítima mulher.

As principais falsas crenças que se traduzem em mitos de estupro são as seguintes: que o estupro não pode ser cometido na casa da vítima; que o estupro não pode ser cometido por uma pessoa próxima à vítima; que a mulher que tem vida sexual ativa ou que se veste de forma sexy não pode ser vítima de estupro (pois presumidamente esse tipo de mulher sempre consente com qualquer relação sexual); que não é estupro se a vítima não resistiu fisicamente; e que o ofensor não pode ser uma pessoa comum.

Isso porque o estupro “real”, na mente dessas pessoas, somente poderia acontecer na rua, sendo cometido por um estranho, psicologicamente perturbado, contra uma mulher recatada, que resistiu bravamente às investidas do criminoso.

Estratégia de defesa

Os mitos de estupro são tão eficazes como estratégia de defesa em um julgamento porque o julgador tende a interpretar o estupro por meio de comparação com a sua versão ideal de como o estupro “real” seria.

Reprodução
assédio sexual estupro

No artigo “What do we know about rape myths and juror decision making?” [2], que é uma revisão de literatura, publicado em 2020, Fiona Leverick, professora da Universidade de Glasgow, analisou 57 estudos publicados em revistas científicas, nos quais foram utilizados júris simulados para se apurar a relação entre a aceitação dos mitos do estupro e os vereditos. O recorte desse artigo envolveu apenas o estupro cometido por um ofensor homem e no qual a ofendida é uma mulher.

Nos estudos, os “jurados” eram submetidos a um caso ficcional de estupro e tinham de proferir uma decisão. Antes disso tinham de preencher algum dos questionários elaborados para aferir o nível de aceitação dos mitos de estupro. Foram utilizadas diversas metodologias para se aferir o grau de aceitação dos mitos de estupro, tais como a Irmas, Irams, RES, Burt’s, AMMSA, PCRS, Costin’s R, Ward’s, SRMAS.

Vinte e nove desses estudos tiveram uma abordagem quantitativa e em 26 deles restou observada a correlação entre a aceitação aos mitos do estupro e o veredito. Nos estudos qualitativos, em 25 dos 28 estudos restou observada a correlação entre a aceitação aos mitos do estupro e o veredito.

Ou seja, a maioria esmagadora dos estudos demonstra que a maioria das pessoas aceita os mitos de estupro.

Por isso culpar a mulher por atitudes sexuais prévias e roupas usadas no momento do estupro é uma estratégia tão difundida nos fóruns e tribunais.

Julga-se a vítima

Interessante que ao assim proceder a vítima também passa a ser “julgada”, como se fosse merecedora ou não do estupro.

Por isso mesmo que Peter O. Rerick, Tyler N. Livingston e Deborah Davis afirmam que os crimes sexuais são os únicos em que a vitima também é “julgada” [3]. Nenhum advogado de defesa questiona na audiência de um crime de furto se a vítima tinha uma vida desregrada ou não antes da ocorrência do crime.

A questão da idealização da vítima de estupro é tão presente no imaginário das pessoas que os níveis de condenação dos ofensores é menor quando a vítima é uma mulher extremamente atraente. Afinal, esse tipo de mulher é sempre provocante.

Spacca

No outro extremo, das vítimas pouquíssimo atraentes, também se observa um menor nível de condenação dos ofensores. Segundo Peter O. Rerick, Tyler N. Livingston e Deborah Davis [4], isso pode ocorrer porque se baseia na suposição implícita de que um homem não estupraria uma mulher pouco atraente sem provocação, porque mulheres pouco atraentes são indesejáveis.

Ou seja, nos dois extremos (muito feias e muito bonitas), a chance de o ofensor não ser condenado aumenta.

Empatia em relação ao ofensor

Do lado do ofensor, a questão dos mitos do estupro também pode lhe favorecer. Especialmente, se o ofensor for uma pessoa poderosa e respeitada na sociedade. Existe um fenômeno no qual diversas pessoas se solidarizam com o ofensor sexual homem. Esse fenômeno é denominado “himpathy”, que é a contração das expressões “him” e “empathy”. Kate Manne define himpathy como a empatia inadequada e desproporcional que homens poderosos costumam desfrutar em casos de crimes sexuais [5].

Quanto aos julgadores, Peter O. Rerick, Tyler N. Livingston e Deborah Davis[6] narram que as mulheres, na maioria, tendem a ser mais empáticas com as vítimas e os homens, geralmente, mais empáticos com os ofensores. O fato é que ambos se colocam no lugar que entendem que poderiam estar em um possível julgamento. No entanto, apesar de haver uma maior aceitação dos mitos de estupro entre os homens, as mulheres também tem elevada aceitação.

Distração cerebral

Do aspecto conceitual em Psicologia, pode-se afirmar que a aceitação dos mitos acerca do estupro é um construto psicológico [7].

O construto é algo criado pela mente humana, que não pode ser diretamente observado, mas apenas inferido a partir de suas manifestações, sendo em sua forma pura um elemento latente [8].

Por isso mesmo que os diversos testes psicológicos citados no artigo de Fiona Leverick existem: para demonstrar a existência desse fenômeno.

Assim, resta claro que a utilização de mitos do estupro, como desqualificar a mulher ofendida por sua vida sexual prévia ou pela roupa que usava, é tão eficaz no tribunal. Afinal, a aceitação dos mitos do estupro é muito comum entre os seres humanos, inclusive aos julgadores.

Mas o que deve ser questionado é se tal estratégia produzirá um julgamento mais justo?

E a resposta é não.

Afinal, os julgadores decidirão muito mais com base no construto da aceitação dos mitos do estupro do que nas provas apresentadas no processo.

Daí porque tais provas deveriam ser vedadas pelo Direito. Ora, elas não se relacionam com o caso concreto, mas tem poder de influenciar decisivamente a formação de convicção dos julgadores sem que eles sequer se deem conta disso.

As alegações sobre esses aspectos operam como uma distração cerebral. A pessoa deixa de se atentar para os fatos que tratam do estupro em si para verificar os mitos do estupro. O julgamento deixa de ser sobre o estupro em si para se tornar em um julgamento sobre a vítima, sobre se a mulher sexualmente ativa merece ou não ser estuprada.

Ora, a prova deve se relacionar com o objeto do processo. Afinal, a prova é a demonstração da ocorrência de fatos relevantes e controvertidos no curso do processo.

Como a mulher se comportava anteriormente ao fato não tem relação com o objeto do processo e é irrelevante ao caso. Tal argumento serve apenas para distrair o julgador e embaralhar os pensamentos.

A distração utilizada pela defesa do réu serve para encaminhar o cérebro para um local conhecido. E esse local conhecido é o do construto da aceitação dos mitos do estupro.

Viés de confirmação

É praticamente um induzimento a um viés cognitivo de confirmação. Aquela prova se encaixa perfeitamente ao construto da pessoa.

O viés de confirmação opera da seguinte forma. O julgador passa a aceitar como verdadeira apenas a situação conhecida (mito do estupro) e deixa de analisar objetivamente a situação desconhecida (a prova dos autos).

Como ele forma sua convicção com base no mito, ele passa a desconsiderar tudo o que é contrário, inclusive a prova dos autos. E, por vezes, a prova dos autos pode ser diametralmente oposta.

O resultado disso é uma distorção na interpretação das informações.

Dá-se mais atenção à vida pregressa do que aos fatos relacionados ao crime em si.

Benjamin Miranda Tabak, Julio Cesar Aguiar e Ricardo Perin Nardi assim explicam o grande problema do viés confirmatório: “Não é necessário grande esforço intelectual para perceber que o emprego desse viés acarreta sentenças enviesadas, ou seja, sentenças de acordo com as convicções íntimas do julgador, que não revelam a verdade dos fatos, muito menos encontram ressonância no ordenamento jurídico vigente” [9].

Concluindo, os estudos psicológicos demonstram como os argumentos relacionados com a vida pregressa da vítima interferem no julgamento e, por não guardarem relação direta com o crime, o Direito deveria vedar tal tipo de prova.

 


Referências

BURT, Martha R. Rape myths. In: ODEM, Mary E.; CLAY-WARNER, Jody (org.). Confronting rape and sexual assault. Oxford (Inglaterra): Rowman & Littlefield, 1998.

LEVERICK, Fiona. What do we know about rape myths and juror decision making?. The International Journal of Evidence & Proof, v. 24, n. 3, p. 255-279, 2020.

MANNE, Kate. Brett Kavanaugh and America’s “himpathy” reckoning. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/09/26/opinion/brett-kavanaugh-hearing-himpathy.html. Acesso em: 25 mar. 2024. Disponibilizado em: 26 set. 2018.

RERICK, Peter O.; LIVINGSTON, Tyler N.; DAVIS, Deborah. Rape and the jury. In: O’DONOHUE, William T.; SCHEWE, Paul A. (Org.). Handbook of sexual assault and sexual assault prevention. Cham (Suíça): Springer International Publishing, 2019.

TABAK, Benjamin Miranda; AGUIAR, Julio Cesar; NARDI, Ricardo Perin. O viés confirmatório no argumento probatório e sua análise através da inferência para melhor explicação: o afastamento do decisionismo no processo penal. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n. 70, p. 177-196, 2017.

URBINA, Susana. Essentials of psychological testing. Hoboken (Estados Unidos): John Wiley & Sons, 2014.

[1] BURT, Martha R. Rape myths. In: ODEM, Mary E.; CLAY-WARNER, Jody (org.). Confronting rape and sexual assault. Oxford (Inglaterra): Rowman & Littlefield, 1998.

[2] LEVERICK, Fiona. What do we know about rape myths and juror decision making?. The International Journal of Evidence & Proof, v. 24, n. 3, p. 255-279, 2020.

[3] RERICK, Peter O.; LIVINGSTON, Tyler N.; DAVIS, Deborah. Rape and the jury. In: O’DONOHUE, William T.; SCHEWE, Paul A. (Org.). Handbook of sexual assault and sexual assault prevention. Cham (Suíça): Springer International Publishing, 2019.

[4] Op. cit.

[5] MANNE, Kate. Brett Kavanaugh and America’s “himpathy” reckoning. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2018/09/26/opinion/brett-kavanaugh-hearing-himpathy.html. Acesso em: 25 mar. 2024. Disponibilizado em: 26 set. 2018.

[6] Op. cit.

[7] RERICK, Peter O.; LIVINGSTON, Tyler N.; DAVIS, Deborah. Op. cit.

[8] URBINA, Susana. Essentials of psychological testing. Hoboken (Estados Unidos): John Wiley & Sons, 2014.

[9] TABAK, Benjamin Miranda; AGUIAR, Julio Cesar; NARDI, Ricardo Perin. O viés confirmatório no argumento probatório e sua análise através da inferência para melhor explicação: o afastamento do decisionismo no processo penal. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n. 70, p. 177-196, 2017.

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