Opinião

Irregularidades da recente declaração de renúncias e benefícios

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25 de junho de 2024, 17h18

A Medida Provisória nº 1.227/2024 causou enorme celeuma quando publicada. A principal razão para tanto foi a tentativa de restringir o direito de utilização de créditos de PIS/Cofins, inclusive os presumidos. Como se sabe, essa parte da MP foi rejeitada pelo Congresso.

A parcela remanescente, que seguirá em análise no legislativo, é passível de críticas de semelhante intensidade.

Ela é composta de dois assuntos: (1) a criação de declaração eletrônica à Receita Federal a respeito de benefícios tributários usufruídos pelos contribuintes e (2) a delegação de competência para julgamento de processos administrativos relativos ao ITR.

Este breve artigo trata de aspectos do primeiro assunto, recentemente regulamentado pela Instrução Normativa RFB nº 2.198/2024.

Dirbi

Sucintamente, é criada uma nova obrigação acessória aos contribuintes, a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária, a Dirbi. Ela deve ser apresentada mensalmente, mediante utilização de formulários próprios do e-CAC e deverá conter informações relativas a valores de crédito tributário que deixaram de ser recolhidos em razão da concessão dos benefícios. A primeira Dirbi a ser entregue deverá envolver os benefícios usufruídos a partir de janeiro de 2024.

Dispositivos fundamentais são aqueles relativos às penalidades. A apresentação em atraso, calculada por mês ou fração, será de 0,5% a 1,5% da receita bruta, limitada a 30% do valor dos benefícios fiscais usufruídos.

Irregularidades

A nosso ver, essa nova obrigação acessória e as penalidades previstas padecem de irregularidades. Destacamos três delas.

Em primeiro lugar, a MP adotada, expurgada da parte devolvida pelo presidente do Congresso, não atende os requisitos constitucionais para sua adoção.

Com efeito e como se sabe, as medidas provisórias podem ser adotadas pelo presidente da República em caso de relevância e urgência. Genéricos que sejam esses requisitos, eles existem e não podem ser ignorados.

Ocorre que não há qualquer sinalização de qual seria a urgência na criação da obrigação acessória da Dirbi. Os benefícios tributários sempre existiram, há anos que se afirma que eles alcançam valores expressivos, nada aconteceu recentemente que tenha afetado esse quadro. Em suma, o que se tem atualmente é a mera persistência da realidade existente há anos. Não ocorreu algo que tenha criado uma situação de urgência.

A própria Presidência da República reconhece (ainda que implicitamente) a inexistência de urgência. Na Exposição de Motivos (EM) nº 00060/2024 MF, que acompanhou a MP nº 1.227 é afirmado somente que o tema das condições para fruição de benefícios fiscais teria “(…) pertinência com as demais medidas tributárias emergenciais ora propostas, (…)”. Ou seja, as outras medidas é que seriam emergenciais. Não há uma só palavra a justificar porque a criação da obrigação de informar benefícios seria dotada de urgência.

Quando a EM discorre sobre o pressuposto de urgência, é afirmado existir a necessidade premente de limitar a compensação de créditos tributários e revogar hipóteses de ressarcimento e compensação de créditos presumidos. Isso porque o volume de compensações atualmente existente poderia comprometer o alcance da meta fiscal.

Bem se vê que o pressuposto de urgência que levou à adoção da MP nº 1.227 não tinha qualquer vínculo com a obrigação de informar à Receita Federal sobre benefícios tributários.

Em conclusão deste ponto, ao ficar destituída da parte relativa à restrição de compensação e ressarcimento de créditos de PIS/Cofins, a MP nº 1.227 não atende o requisito constitucional de urgência, sendo, por isso, inconstitucional.

Obrigação duplicada

Em segundo lugar, a obrigação acessória da Dirbi deverá conter “(…) informações relativas a valores do crédito tributário referente a impostos e contribuições que deixaram de ser recolhidos em razão da concessão dos incentivos, renúncias, benefícios e imunidades de natureza tributária usufruídos pelas pessoas jurídicas (…)”.

Ocorre que essas informações já constam, de forma mais ou menos destacada, de outras das muitas obrigações instrumentais às quais os contribuintes já se submetem. Trata-se de uma obrigação duplicada: passar dados à Receita Federal que ela já dispõe, por outros meios.

Ora, não se informa aquele que já possui os dados a serem transferidos. Informar (e a nova obrigação consistiria justamente em “informar”) pressupõe comunicar alguém de algo que esse alguém desconhecia, de modo a dar conhecimento desse dado. Se aquele que seria “informado” já possui os dados, não há “informação”.

A obrigação instrumental da Dirbi é, assim, desnecessária.

Como se sabe, um dos critérios ou subprincípios da razoabilidade é a exigência da necessidade. A obrigação ou restrição estabelecida pela norma deve ser necessária para alcançar o objetivo ansiado. “A idéia subjacente ao princípio é invadir a esfera de liberdade do indivíduo o mesmo possível[1]. Desse modo, para ser legítimo juridicamente, o objetivo não deve poder ser alcançado de outro modo que afete menos o particular.

No entanto, se, como visto, a maior parte (se não a totalidade) das informações a serem prestadas na Dirbi já é de conhecimento da administração fiscal federal, essa nova obrigação instrumental é desnecessária e, por isso, contrária à razoabilidade.

Afronta ao princípio da simplicidade

Ela também atenta contra a Lei Complementar nº 199/2023, a qual institui o Estatuto Nacional de Simplificação de Obrigações Tributárias Acessórias.

Alinhada às exigências de razoabilidade e necessidade, sua finalidade é “(…) diminuir o custo de cumprimento das obrigações tributárias (…)”, prevendo, entre outros pontos, a emissão unificada de documentos fiscais eletrônicos.

A criação de nova obrigação instrumental, desnecessária, pois repetida, contraria a simplificação e, desse modo, também destoa do princípio da simplicidade contido no artigo 145, §3º, da Constituição.

Incoerência nas penalidades

Em terceiro lugar, a declaração em análise tem outra mácula jurídica, relativa às penalidades previstas. Como apontado, a pessoa jurídica que deixar de apresentar a Dirbi ou apresentá-la com inexatidão submeter-se-á à multa sobre sua receita bruta.

Enxergamos, aí, uma incoerência entre a obrigação e a multa. O Supremo Tribunal Federal já registrou que “(…) o legislador deve ser coerente e racional” (RE 841.979). Ao mesmo tempo, a doutrina mais moderna (como Humberto Ávila [2]) aponta a existência do postulado da coerência, que diz respeito à conexão de sentido ou à relação de dependência entre as normas.

Receita Federal - Fachada - Brasília - Agência Brasil - Ministério da Fazenda - Superintendência -

No caso, a obrigação é para entregar informações sobre benefícios tributários. É esse o dado que o governo federal gostaria de ter. Se a informação do montante do benefício tem um valor para o governo, a falta dessa informação poderia ser penalizada, eventualmente, com base nesse montante. Não com base em outra cifra, estranha à obrigação.

Contudo, a penalidade é calculada sobre a receita bruta. Eis, aí, a incoerência. Fazendo uma analogia, é como se fosse previsto que a falta de recolhimento do IR levasse a uma multa calculada sobre o valor da folha de salários da empresa.

Em outras palavras, a penalidade não guarda coerência com o dano. O ordenamento jurídico não tolera esse tipo de incoerência, que leva à insegurança, devido à irracionalidade, e à contrariedade à isonomia.

Para constatar isso, basta imaginar um contribuinte com poucos benefícios tributários, mas com elevada receita bruta: ele será muito penalizado. Já um contribuinte com elevados benefícios, mas reduzida receita bruta, será proporcionalmente menos penalizado, ainda que o suposto dano ao governo tenha sido mais elevado.

A limitação da penalidade a 30% do montante dos benefícios pode suavizar essa incoerência em alguns casos, mas não resolve a irregularidade. O efeito final é que a penalidade acaba servindo à arrecadação e, com isso, também peca contra a razoabilidade, agora por inadequação.

A consequência, a nosso ver inafastável, é que, ainda se a MP fosse aceitável e a nova obrigação instrumental da Dirbi fosse necessária e razoável, a penalidade prevista não pode ser imposta, pois incoerente, geradora de insegurança jurídica, contrária à isonomia e inadequada/irrazoável.

Considerações finais

Em conclusão de todo o exposto, vemos a MP nº 1.227 e a IN-RFB nº 2.198 como destituídas de base jurídica, devendo ser afastada a obrigatoriedade de entrega da Dirbi ou, quando menos, ser inviabilizada a aplicação da penalidade prevista.

 


[1] STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 79.

[2] Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 128.

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