Território Aduaneiro

Facilitação do comércio e controle aduaneiro? Portal Único do Comex

Autores

  • Fernando Pieri Leonardo

    é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

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  • Alexandre Zambrano

    é engenheiro de produção pós graduado em Comércio Exterior e Direito Aduaneiro auditor-fiscal da Receita Federal foi chefe do Porto Seco Rodoviário de Uruguaiana (RS) e participou da modelagem do novo processo de importação desde 2016. Atua na assessoria da Subsecretária de Administração Aduaneira como gerente do programa Portal Único de Comércio Exterior desde 2018.

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25 de junho de 2024, 11h15

A CQR (Convenção de Quioto Revisada) da OMA (Organização Mundial das Aduanas), em seu Apêndice I, buscou, diante dos desafios à época de sua publicação, em 1999, estabelecer medidas para a promoção do comércio internacional legítimo.

Novos desafios, como a globalização e o crescimento do comércio global, assim como as ameaças à segurança das nações, presentes nas ações terroristas, no tráfico de drogas, de armas, de pessoas e na lavagem de dinheiro, destacaram a necessidade de adequação do documento original de 1973.

Nesse escopo, a CQR preconizou, em seu Apêndice I, o reconhecimento da indispensável conciliação entre os benefícios da facilitação do comércio internacional e das normas que regem o controle aduaneiro, assim como elegeu, para atingir seus objetivos, alguns princípios, destacando-se, para o que interessa ao presente artigo, o da “adoção de técnicas modernas, tais como sistemas de gestão de risco e controles de auditoria bem como a mais ampla utilização possível das tecnologias da informação.”

Nesse sentido, o Anexo Geral da CQR consignou, em sua Norma 6.9 : “As Administrações Aduaneiras deverão utilizar da forma mais ampla possível a tecnologia da informação e o comércio eletrônico para reforçar o controle aduaneiro”. [1]

Quanto ao uso mais amplo possível da TI, em desdobramento específico, o artigo 10.4 do AFC/OMC [2], direciona os países signatários a estabelecerem um único ponto de entrada para a apresentação de documentos e informações exigidas para a importação, a exportação e o trânsito de mercadorias estrangeiras.

A ideia de um Guichê Único ou Janela Única é uma das melhores respostas aos desafios enfrentados pelas aduanas. Centralizar, em um único portal todo o controle aduaneiro, seja direto, pela aduana, seja dos órgãos anuentes, unificando o envio de informações, permitindo a verificação antecipada de informações, otimizando o pagamento de tributos, viabilizando a inspeção única por todos os órgãos envolvidos, tudo isso trazendo maior previsibilidade e segurança jurídica para os intervenientes, configura uma resposta inteligente e eficiente para o desafio de controlar e facilitar o comércio legítimo.[3]

O comércio exterior desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da economia global, sendo primordial buscar o aprimoramento do intercâmbio comercial, por meio da redução das medidas burocráticas que oneram desnecessariamente os procedimentos aduaneiros. No Brasil, várias medidas com esse objetivo têm sido implementadas, sendo a janela ou guichê único, denominado Portal Único de Comércio Exterior (Siscomex), uma das principais.

Fundamentando-se nas normas e práticas internacionais, o desenvolvimento do Portal Único teve início no ano de 2014, como parte de uma iniciativa do governo federal para modernizar e simplificar os processos de importação e exportação no país. [4]

A coordenação do projeto é realizada de forma conjunta entre o Ministério da Fazenda e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, em estreita cooperação com os demais órgãos públicos e, especialmente, com diversas entidades representativas do setor empresarial. Essa parceria entre o setor público e privado tem sido fundamental para assegurar que o sistema possa atender às necessidades de todos os atores envolvidos.

A respeito dos objetivos do Portal Único, destaca-se a integração dos processos aduaneiros, centralizando a troca de informações. Assim, nos termos do artigo 9º-C do Decreto nº 660/92,  no desenvolvimento e implementação do Portal Único deveriam atuar 22 órgãos e entidades da administração pública federal, em articulação com o MF e o MDIC.

Nesse contexto, o Decreto nº 660/92, em seu §1º do artigo 4º, estabeleceu que todas as exigências, licenças ou autorizações diretamente incidentes sobre operações de comércio deveriam ser demandadas aos operadores por meio do Portal Único. Além da integração, ressalta-se a simplificação dos procedimentos, considerando que a plataforma possibilita o envio eletrônico de documentos e informações necessárias para o despacho aduaneiro.

Spacca

Elimina-se, dessa forma, a necessidade de trâmites físicos e redundâncias na prestação de informações, automatizando etapas antes onerosas e reduzindo o tempo e os custos associados. O Portal Único promove também maior transparência e previsibilidade para as operações comerciais, possibilitando melhoria na gestão dos processos logísticos e maior controle sobre as transações, contribuindo, ainda, para a redução de erros e aumento da conformidade aduaneira.

Importante mencionar ainda que o sistema proporciona significativos benefícios para os órgãos de controle, favorecendo o gerenciamento de riscos e, por conseguinte, a celeridade na liberação das cargas.

Do ponto de vista econômico, em estudo publicado pela CNI em 2021, avaliando o impacto econômico do programa, foi constatado que os custos indiretos com a burocracia relacionada com as operações de comércio exterior caíram significativamente.

Entre 2014 e 2020, o chamado “Custo-Brasil” caiu de um equivalente tarifário de 14% para 7% nas importações e de 13% para 4% nas exportações. Isso representa uma economia estimada de mais de US$ 50 bilhões anuais para os operadores (se for considerada a corrente de comércio de 2022 e o “Custo-Brasil” eliminado desde 2014), demonstrando a melhora do ambiente de negócios que vem sendo promovida pela modernização do comércio exterior brasileiro.

Redesenho dos processos

Com base na análise dos pontos de ineficiência dos processos aduaneiros e das oportunidades de melhoria, foi realizado um redesenho dos processos de exportação e de importação. O Novo Processo de Exportação já está totalmente implementado, com o uso da Declaração Única de Exportação (DU-E). A integração da DU-E com a nota fiscal eletrônica possibilitou que a declaração de exportação passasse a ser gerada a partir dos dados da nota fiscal de exportação, reduzindo erros de preenchimento, aumentando a segurança.

Já o Novo Processo de Importação (NPI) está em fase de desenvolvimento e implementação progressiva, por meio da utilização da Declaração Única de Importação (Duimp), com importante fase de migração prevista para outubro de 2024. A partir dessa data, a maior parte das operações de importação serão realizadas com registro de Duimp e impedimento de registro de DI. [5]

Haverá atualização na IN RFB 680/06 para vinculá-la com a Portaria Coana 77/2018. Com a Duimp, o registro e o processamento antecipado da declaração se tornarão a regra geral. Consequentemente, a realização do gerenciamento de riscos, também de forma antecipada, garantirá maior segurança ao controle aduaneiro, ao mesmo tempo, mais eficiência logística, com expectativa de tempos ainda mais reduzidos de permanência da carga em recintos alfandegados. Na maioria das vezes, as cargas chegarão ao País já liberadas pela aduana e prontas para serem entregues ao importador.

Controle de Carga e Trânsito (CCT) na importação

Implantado em agosto de 2023, esse sistema possibilita a realização do controle de cargas aéreas em voos regulares. Com vistas à simplificação dos processos, maior fluidez do fluxo logístico da carga, menos intervenções manuais da Receita Federal e maior eficiência do controle aduaneiro, o CCT baseia-se em informações antecipadas, mediante a adoção do padrão internacional da International Air Transport Association — Iata Cargo-XML para a manifestação eletrônica do Air Wailbill (e-AWB).

Com o uso intensivo da TI e de gerenciamento de riscos, estima-se a redução em 90% das intervenções humanas nos fluxos logísticos e 80% no tempo médio de liberação das cargas do modal aéreo.

Outros exemplos de ferramentas do Portal Único

Além do CCT Importação, são inovações e ferramentas do Portal Único: catálogo de produtos: permite ao importador descrever, de maneira padronizada, as características de suas mercadorias, o que facilita o reaproveitamento de informações para transações futuras, diminui a quantidade de erros de preenchimento nas declarações e agiliza a análise das operações por parte da Administração Pública.

Pagamento Centralizado do Comércio Exterior (PCCE): permite o gerenciamento de todos os pagamentos de tributos relacionados às operações de comércio exterior. Assim, além dos tributos federais, é possível a realização do pagamento do ICMS – importação, dispensando, ainda, a apresentação de quaisquer comprovantes para liberação da carga.

Automatização do controle do crédito tributário: o PCCE também permitiu a integração dos sistemas de comércio exterior com os sistemas de arrecadação e controle do crédito tributário da Receita. Com isso, será possível automatizar a liberação de créditos, porventura recolhidos a maior, em favor do contribuinte de forma automática diante de um cancelamento ou retificação da DI/Duimp.

Licenças, Permissões, Certificados e Outros Documentos (LPCO): os licenciamentos de importação, que passaram, após a publicação do Decreto no 11.577/23, a ser válidos para múltiplos embarques, seja por quantidade (peso, volumes, etc.) ou por prazo determinado. [6] Enquanto no processo antigo o importador deveria obter uma nova licença a cada nova declaração de importação (ainda que com informações idênticas),  recolher taxas e controlar um número de licença, com o novo processo, ele poderá reutilizar a mesma licença.

API-Recintos: por meio de uma integração entre os sistemas das concessionárias e do Portal Único, os administradores de recintos, depositários e operadores portuários enviarão à Receita (de forma automática e instantânea) as informações de interesse da fiscalização, relativas às operações de entrada e saída de pessoas e veículos, movimentação de carga, escaneamento de veículos e armazenamento de mercadorias.

Canal Único da Declaração e Janela Única de Inspeção: possibilita a atuação coordenada e paralela por parte de todos os órgãos anuentes, promovendo mais eficiência e agilidade ao fluxo de mercadorias a partir da coordenação e do paralelismo de atuação entre a Receita e os órgãos, especialmente a Anvisa e o Mapa.

Inspeção física remota de mercadorias: com as primeiras soluções implementadas em 2019, teve fundamental importância durante a pandemia, preservando a saúde dos trabalhadores e garantindo o bom funcionamento das operações nos portos em que a solução já estava em funcionamento, estando, regulamentada pela Portaria Coana n° 75/22.

Uso intensivo de inteligência artificial

A Receita está na vanguarda no desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial, a exemplo do Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizado de Máquina. O Sisam é utilizado para a detecção de várias infrações aduaneiras, especialmente nos casos de erros de classificação tarifária.

Destaca-se que as ferramentas de inteligência artificial que a Receita possui não estão restritas ao seu uso próprio. Essas ferramentas disruptivas têm sido integradas com módulos do Portal Único, possibilitando a sua utilização pelos operadores do comércio exterior.

Exemplificando, quando o importador submete a Duimp a registro, o sistema aciona a ferramenta de diagnóstico automaticamente. Essa ferramenta está integrada ao sistema de gestão de riscos aduaneiros e utiliza de funções do Sisam para verificar se há alguma discrepância. Caso sejam identificados possíveis erros, o sistema informa aos contribuintes, possibilitando as alterações que entenderem necessárias, antes do efetivo registro da declaração.

Outro sistema que utiliza inteligência artificial para promover a conformidade aduaneira é o Classif (Classificação Fiscal de Mercadorias), disponibilizado gratuitamente com acesso irrestrito por meio do Portal Único. Esse sistema contém simuladores de tratamento administrativo (a respeito de licenciamentos, proibições e restrições) e tributário (alíquotas dos tributos, preferências tarifárias, direitos antidumping, Ex-tarifários, etc.) para cada código NCM (Nomenclatura Comum do Mercosul).

Além disso, o Classif disponibiliza as Regras Gerais de Interpretação, as Notas Explicativas do Sistema Harmonizado (Nesh), as notas complementares da NCM e Soluções de Consulta, auxiliando nas pesquisas e estudos visando a correta classificação pelo usuário. [7]

Conclusão

A construção e o planejamento do Portal Único Siscomex são exemplos de colaboração bem-sucedida entre o Estado e o setor privado. Apesar dos avanços alcançados, ainda existem desafios a serem enfrentados para a completa migração das operações de importação para o Portal, em cumprimento ao cronograma estabelecido [8], especialmente, com relação a integrações de sistemas de outros intervenientes públicos, a exemplo das secretarias de fazenda estaduais e de alguns órgãos anuentes.

A comunidade do comércio exterior tem aguardado ansiosamente pela implementação completa do Portal Único. A automatização total dos processos e a integração dos sistemas resultarão em maior previsibilidade nas transações e significativa redução de custos e prazos para liberação das cargas. Esse processo, espera-se, vai proporcionar maior inserção do Brasil no comércio internacional, impulsionando as exportações brasileiras, o acesso a novos mercados e a competitividade das empresas brasileiras no cenário global.

Esse resultado já pôde ser percebido quando se observa a expansão da corrente de comércio brasileira, que superou os US$ 600 bilhões pela primeira vez em 2022 e manteve as exportações em alta, em 2023, com crescimento de 1,7% em relação ao ano anterior.

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[1] Observa-se que o desafio de realizar o controle das entradas e saídas de produtos dos territórios aduaneiros encontrou no uso massivo da tecnologia da informação uma de suas principais ferramentas, assim como no gerenciamento de risco (Norma 6.3, 6.4 e 6.5), no operador econômico autorizado (Norma transitória 3.32), no controle prévio (Norma 3.25) e posterior das operações (Norma 3.41, 3.42 e 3.43), todas elas eleitas e presentes na CQR/OMA.

[2] Disponível em: link Acesso em 20/06/24.

[3] BASALDÚA, Ricardo Xavier. Los principios jurídicos del control aduanero modernizado en el tráfico transfronterizo contemporáneo. Memorias de La Reunión Mundial de Derecho Aduanero – Bruselas.
Bogotá/Colombia: International Customs Law Academy/Temis, 2015, p. 5-44.

[4] Os artigos 9ºA, B e C do Decreto nº 660/92 preveem o desenvolvimento do Portal Único de Comércio Exterior. Disponível em: link Acesso em 20/06/24.

[5] Visando esclarecer dúvidas e preparar os intervenientes, estão sendo realizadas pela RFB e MDIC, em parceria com o setor privado. Três já foram promovidas: com a CNI (link), com a FEADUANEIROS (link) e com o PROCOMEX (link). Esta sexta-feira, dia 28/06/24, será com a ABTRA (link)

[6] Sobre o tema, a colega de coluna Fernanda Kotzias publicou artigo com excelente conteúdo: link

[7] Como ferramentas para conformidade destacam-se, ainda, o Catálogo de Produtos, que previne a reincidência de erros relacionados às informações dos produtos, e os Manuais Aduaneiros, que orientam os contribuintes, quanto aos procedimentos aduaneiros, à legislação, ao uso dos sistemas e suas funcionalidades. Disponíveis em link e em link

[8] Cronograma disponível em link

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  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

  • é engenheiro de produção, pós graduado em Comércio Exterior e Direito Aduaneiro, auditor-fiscal da Receita Federal, foi chefe do Porto Seco Rodoviário de Uruguaiana (RS) e participou da modelagem do novo processo de importação desde 2016. Atua na assessoria da Subsecretária de Administração Aduaneira, como gerente do programa Portal Único de Comércio Exterior desde 2018.

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