Opinião

Deve a pureza da droga influenciar na caracterização do tráfico e na dosimetria da pena?

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25 de junho de 2024, 15h24

De início, é importante fazer pequenas considerações acerca da dosimetria da pena para o tráfico de drogas, crime equiparado a hediondo (artigo 2º, caput, da Lei 8.072/90).

Conforme artigo 68 ‘caput’ do Código Penal (CP), tem-se:

Art. 68 – A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.

É o chamado sistema trifásico de dosimetria da pena, sendo que primeiro o magistrado fixa a pena base, conforme o artigo 59 do CP. Após, ele observa a existência de atenuantes e agravantes. Por fim, incidem as causas de diminuição e de aumento da pena.

Observe-se, no entanto, que a lei de drogas trata de alguns aspectos que devem preponderar na dosimetria da pena. Neste sentido, há o disposto no artigo 42:

Art. 42. O juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente.

De fato, vigorará com preponderância sobre as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP a avaliação sobre a natureza e a quantidade da droga, a personalidade e a conduta social do infrator.

A personalidade refere-se ao caráter do sentenciado, ao passo que a conduta social diz respeito ao comportamento do acusado no ambiente familiar, de trabalho e social [1].

A natureza da droga refere-se às suas características, bem como às propriedades delas. No tocante aos seus efeitos, as drogas podem ser: perturbadoras (também conhecidas como alucinógenas); estimulantes (aumentam a atividade cerebral); e depressoras (diminuem a atividade cerebral) [2].

Spacca

Já a quantidade é tão-somente o montante de droga apreendida. Em regra, o Ministério Público aponta, nas suas denúncias de tráfico de drogas, a quantidade de massa líquida da droga, e não a massa bruta, assim como a droga em si mesma (cocaína, maconha, etc).

Neste contexto, leva-se em conta apenas uma parte do aspecto relativo à quantidade e à qualidade de drogas.

Há uma certa incongruência, já que, em momento algum, o dispositivo menciona a pureza da droga como elemento a ser considerado na fixação da pena.

Necessidade de considerar a pureza da droga na dosimetria da pena

O conceito de droga está presente no parágrafo único do artigo 1º da Lei 11.343/2006:

Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.”

Trata-se de norma penal em branco heterogênea, cujo complemento é a Portaria SVS/MS 344 do Ministério da Saúde, a qual discrimina as substâncias consideradas drogas.

Dependência consiste no estado compulsivo de necessidade de se utilizar a droga, de forma contínua, e para a obtenção de prazer. Ela é tradicionalmente dividida em física e psicológica. A primeira é uma adaptação bioquímica aos efeitos da droga, a segunda é necessidade de sensação pelos efeitos prazerosos propiciados pela droga [3].

Chama-se neuroadaptação o processo passado pelo organismo que é responsável por ocasionar a síndrome de abstinência, modificação no sistema de recompensa do corpo humano, e a tolerância à droga, cuja decorrência é o aumento progressivo da dosagem ou até a utilização de substância mais potente para obtenção do mesmo efeito sentido quando se usava a droga no primeiro momento.

O grau de pureza da substância influencia diretamente no processo de neuroadaptação, consequentemente, gera crises de abstinência mais graves, bem como torna o corpo tolerante à droga, necessitando de dosagem cada vez mais elevada, ou de substância ainda mais potente, e portanto com maior potencial lesivo. Nesse sentido, é a afirmação do ex-consultor de drogas do governo inglês, e psicólogo neurofarmacologista, David Nutt [4], ao comparar os efeitos da cocaína 100% (e portanto mais pura) com a cocaína menos pura:

“Se a cocaína for muito diluída, ou o usuário tiver desenvolvido uma resistência, ele pode sentir pouco ou nenhum barato, no entanto, a cocaína mais pura pode provocar um uma onda de euforia pacífica, aumentar a atenção e dar uma sensação de poder e energia. Os usuários se sentem eufóricos, depois superconfiantes e felizes. Eles também vão querer falar, dançar, fazer sexo ou qualquer outra coisa para usar essa energia [5].”

Diz ainda o ex-consultor inglês:

“Quanto maior a pureza, maior é o risco de danos ao coração e overdose. [6]

Com clareza, se observa que a pureza da droga implica maiores consequências ao usuário, além do perigo à coletividade, se comparada à ingestão de droga, cujo potencial de pureza seja menor.

Logo, deveria ser levado em consideração tal aspecto na individualização da pena.

Trata-se, em realidade, de matéria constitucional, uma vez que a individualização da pena é garantia conferida pela CF/88, a qual apresenta em seu artigo 5º, XLVI:

XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:”

Tendo em vista referida garantia constitucional, não se faz razoável o desprezo da pureza da droga na dosimetria da pena, o que acabaria por gerar penas similares ou idênticas para o traficante de bairro, que produz cocaína menos pura, ao engenheiro químico de facção criminosa, que realiza tratamento com a cocaína com percentual de pureza próximo a 100%.

Jurisprudência nacional

Parte da jurisprudência pátria entende que o grau de pureza não influencia na dosimetria da pena. Veja-se:

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. COMPLEMENTAÇÃO DO LAUDO PERICIAL. GRAU DE PUREZA DA DROGA. DESNECESSIDADE. ART. 42 DA LEI 11.343/06. PRECEDENTES. DESPROVIMENTO.

1. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é desnecessário se aferir o grau de pureza da droga para fins de fixação da pena. A Lei 11.343/06, em seu art. 42, estabelece como preponderantes a natureza e a quantidade de entorpecentes, independentemente da pureza da substância, de quanto ela poderia render ou de quanto ela está misturada a outros produtos nocivos à saúde.

2. Recurso ordinário desprovido.

(RHC n. 63.295/SP, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/11/2015, DJe de 3/12/2015.)

No direito nacional, ainda, parcela da jurisprudência entende que basta a indicação da natureza e da quantidade da droga para a caracterização do tráfico:

“PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS. PERÍCIA TÉCNICA. COMPLEMENTAÇÃO. GRAU DE PUREZA DA SUBSTÂNCIA APREENDIDA. CONSTATAÇÃO. DESNECESSIDADE. RECURSO DESPROVIDO.

1. O juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade, podendo indeferir as consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias (arts. 184 e 400, § 1º, ambos do CPP).

2. É assente a jurisprudência desta Corte no sentido de que “o indeferimento fundamentado de pedido de produção de prova não caracteriza constrangimento ilegal, pois cabe ao juiz, na esfera de sua discricionariedade, negar motivadamente a realização das diligências que considerar desnecessárias ou protelatórias” (HC 198.386/MG, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, DJe 2/2/2015).

3. No caso em exame, o Juízo de primeiro grau de forma devidamente fundamentada, indeferiu o pedido de complementação da perícia técnica, tendo sido ressaltada a sua desnecessidade e seu caráter puramente protelatório, considerando que o laudo pericial realizado atestou a apreensão de 6.982 g (seis mil novecentos e oitenta e dois gramas – massa líquida) de cocaína.

4. “A aferição do grau de pureza é dispensável para a identificação da natureza e da quantidade da substância transportada, sendo notório que a cocaína, pelo seu alto custo, é misturada a outros produtos para aumentar o lucro dos traficantes, vários deles igualmente nocivos para a saúde pública”. (RHC 54.302/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 12/03/2015).

5. Recurso ordinário desprovido.

(RHC n. 53.433/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 9/3/2017, DJe de 17/3/2017.)”

Pureza da droga em outros ordenamentos
Diferença do uso/posse para consumo pessoal e tráfico e influência na dosimetria da pena

Em direito comparado, outros ordenamentos utilizam a pureza da droga como elemento relevante na caracterização do crime de tráfico, apontando inclusive a quantidade mínima de droga exigida, que varia de acordo com a sua pureza. Ademais, em alguns casos, a pureza influencia na pena a ser aplicada. Veja-se:

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Maconha - 06/09/2011

Tome-se como primeiro caso o da Lituânia, que descriminalizou o uso e a posse da droga para uso pessoal. Estas condutas podem ser penalizadas apenas com sanções administrativas, desde que não haja intenção de venda. Além disso, a quantidade máxima de maconha para uso pessoal é de 5 g, enquanto a resina da droga é de 0,25 g. Isto ocorre por um motivo simples, malgrado se trate da mesma substância, já que a resina é a droga mais concentrada, contendo maiores quantidades de THC. Como há maior concentração de cannabis na resina, ela pode ser considerada mais pura, ou seja, possui grau maior de pureza [7].

No Reino Unido, com exceção ao uso do ópio, o uso da droga não é um crime. Já a posse para uso pessoal é criminalizada. Além disso, as penas obedecem ao Misuse of Drugs Act e variam de acordo com a classe da droga, as de “classe A”, por serem mais potentes, tem pena de até sete anos, as de “classe B” até cinco anos, e as de “classe C” até dois anos.

A natureza da droga, seu peso, intenções e circunstâncias, e, em um segundo momento, a pureza da droga são elementos para diferenciar o uso do tráfico. Ainda a pureza é elemento a ser levado em consideração na dosimetria da pena. A alta pureza da droga é um fator de agravamento da situação [8].

Outra nação que se vale da pureza da droga na diferenciação entre traficante e usuário é a República Tcheca. Nela, o uso e posse de droga para consumo pessoal são descriminalizados, sendo que, para as pequenas quantidades de droga, em regra, há a aplicação de sanções administrativas. Já para as quantidades maiores de drogas (não se consideram pequenas quantidades), há a aplicação de pena de prisão de até um ano para cannabis e de até dois anos para outras drogas.

Na diferenciação entre traficante e usuário, leva-se em conta o peso, a natureza, e a pureza da droga, conforme Misdemeanour act combinado com o “Penal Code s. 284″ e o Decreto Governamental nº467/2009 Coll”. Em relação à maconha, a quantidade máxima tolerada para uso pessoal será de 15 g, podendo o montante variar de acordo com a pureza da droga. A quantidade máxima tolerada para uso pessoal de resina é de 5g, dependendo também da pureza da droga [9]. Novamente, utiliza-se a pureza como um aspecto importante dos casos envolvendo drogas.

Conclusão

No ordenamento pátrio, não há o critério da pureza para diferenciar o uso e a posse para consumo pessoal do tráfico. Também nada é dito especificamente sobre a pureza como critério de maior gravidade na aplicação de pena.

No presente estudo, nota-se que a pureza da droga é levada em consideração em diversos ordenamentos como critério de diferenciação do tráfico para o uso e a posse para consumo pessoal. Além disso, a pureza também é considerada um critério de agravamento da pena em alguns países.

Referido fator deveria ser considerado tanto na caracterização do tráfico, como na aplicação da pena, pois está indissoluvelmente atrelado à garantia constitucional de individualização da pena expressa no artigo 5º, XLVI. A imposição da pena deve guardar relação com o grau de censurabilidade da conduta, e a traficância de droga mais pura, com maior potencial lesivo, é mais censurável.

Em suma, a pureza é um aspecto importante para a caracterização do crime de tráfico de drogas, e para a aplicação da pena. Isto acarretaria a fixação de uma pena mais justa, permitindo uma maior humanização do direito criminal.

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Bibliografia

BRASIL, Ministério da Justiça, Levantamento sobre legislação de drogas nas América e Europa e análise comparativa de prevalência de uso de drogas, disponível em http://www.tjmt.jus.br/intranet.arq/cms/grupopaginas/105/1218/Levantamento_sobre_legisla%C3%A7%C3%A3o_sobre_drogas_nas_Am%C3%A9ricas_e_Europa.pdf, acesso em 18/06/2024.

BRASIL, Ministério da Saúde, Campanha de prevenção de acidentes nas estradas, disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/10006002627.pdf, acesso em 18/06/2024.

BRASIL, Senado Federal, Efeitos das substâncias no sistema nervoso, disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/drogas/efeitos-das-substancias-no-sistema-nervoso, acesso em 17/06/2024.

FURTADO, Paulo; NEVES, Pedro Henrique, Medicina Legal, 5ed, Salvador: Editora Juspodivm, 2024, p. 370/371.

GOMES, Luiz Flávio (coordenação), Lei de drogas comentada: artigo por artigo, 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.232.

USHER, Tom (tradução de Marina Schnoor), Quais os efeitos da cocaína 100% pura (vice.com), disponível em https://www.vice.com/pt/article/qvd9ed/efeitos-cocaina-pura, acesso em 17/06/2024.


[1] GOMES, Luiz Flávio (coordenação), Lei de drogas comentada: artigo por artigo, 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.232.

[2] BRASIL, Senado Federal, Efeitos das substâncias no sistema nervoso, disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/drogas/efeitos-das-substancias-no-sistema-nervoso, acesso em 17/06/2024.

[3] BRASIL, Ministerio da Saúde, Campanha de prevenção de acidentes nas estradas, disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/10006002627.pdf, acesso em 18/06/2024.

[4] Apud USHER, Tom (tradução de Marina Schnoor), Quais os efeitos da cocaína 100% pura (vice.com), disponível em https://www.vice.com/pt/article/qvd9ed/efeitos-cocaina-pura, acesso em 17/06/2024.

[5][5] Apud USHER, Tom (tradução de Marina Schnoor), Quais os efeitos da cocaína 100% pura (vice.com), disponível em https://www.vice.com/pt/article/qvd9ed/efeitos-cocaina-pura, acesso em 17/06/2024.

[6] Apud USHER, Tom (tradução de Marina Schnoor), Quais os efeitos da cocaína 100% pura (vice.com), disponível em https://www.vice.com/pt/article/qvd9ed/efeitos-cocaina-pura, acesso em 17/06/2024.

[7] BRASIL, Ministério da Justiça, Levantamento sobre legislação de drogas nas América e Europa e análise comparativa de prevalência de uso de drogas, disponível em http://www.tjmt.jus.br/intranet.arq/cms/grupopaginas/105/1218/Levantamento_sobre_legisla%C3%A7%C3%A3o_sobre_drogas_nas_Am%C3%A9ricas_e_Europa.pdf , acesso em 18/06/2024.

[8] BRASIL, Ministério da Justiça, Levantamento sobre legislação de drogas nas América e Europa e análise comparativa de prevalência de uso de drogas, disponível em http://www.tjmt.jus.br/intranet.arq/cms/grupopaginas/105/1218/Levantamento_sobre_legisla%C3%A7%C3%A3o_sobre_drogas_nas_Am%C3%A9ricas_e_Europa.pdf, acesso em 18/06/2024.

[9] BRASIL, Ministério da Justiça, Levantamento sobre legislação de drogas nas América e Europa e análise comparativa de prevalência de uso de drogas, disponível em http://www.tjmt.jus.br/intranet.arq/cms/grupopaginas/105/1218/Levantamento_sobre_legisla%C3%A7%C3%A3o_sobre_drogas_nas_Am%C3%A9ricas_e_Europa.pdf, acesso em 18/06/2024.

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