Fábrica de Leis

Abuso de poder regulatório, aborto e o PL nº 1.904/2024

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  • Roberta Simões Nascimento

    é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB) advogada do Senado Federal doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

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25 de junho de 2024, 8h00

Para quem vem acompanhando, o propósito das participações desta colunista na Fábrica de Leis tem sido o de abordar temas importantes que vêm recebendo tratamento inadequado, seja na academia ou nos tribunais. Os textos passados podem ser resgatados a partir do último, em que se abordou a aplicação do artigo 113 do ADCT.

ConJur

Dando sequência a essa empreitada, o comentário de hoje se dedica ao abuso de poder regulatório — tendo como pano de fundo a discussão sobre a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) referente ao aborto — para tratar da incorporação de argumento científicos como fundamento para a legislação e de como tais fatos legislativos são determinantes no julgamento do controle de constitucionalidade correspondente.

O abuso de poder regulatório foi o principal argumento utilizado na decisão que concedeu a medida cautelar na ADPF nº 1.141 ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) para suspender os efeitos da referida resolução do CFM. Conforme o decisum, o ordenamento penal brasileiro, ao estipular as excludentes de ilicitude do aborto (Código Penal, artigo 128, incisos I e II), não estabeleceu expressamente quaisquer limitações circunstanciais, procedimentais ou temporais para a realização do chamado aborto legal, pelo que a resolução do CFM teria fixado condicionante ultra legem.

Tudo indica que o abuso de poder regulatório na decisão cumpriu o papel mais uma categoria coringa (em alusão à carta do baralho que pode ter qualquer valor no jogo) — tal como outras já comentadas aqui, como devido processo legislativo ou erro legístico, todas imprecisas e vagas —, usadas para afastar normas de que apenas se discorda do conteúdo, sem que de fato sejam inconstitucionais.

É bem verdade que, diferentemente das demais expressões mencionadas, o abuso de poder regulatório ao menos recebeu um tratamento legislativo voltado para definir seus contornos mínimos. De acordo com a Lei nº 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), artigo 4º, é dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam à referida lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre livre iniciativa e livre exercício de atividade econômica, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório. Na sequência, a previsão legal se desdobra em nove hipóteses que poderiam denotar excesso de regulação pela via regulamentar.[1]

As situações legalmente listadas de regulação abusiva têm a ver com a criação de reservas de mercado, fixação de barreiras à entrada de novos competidores, previsão de especificações técnicas desnecessárias, criação de demanda artificial ou compulsória de produto, limites à liberdade empresarial, etc. O rol, entretanto, não parece ser exaustivo, nem limitado às situações de entraves burocráticos.

Spacca

Para Gilberto Bercovici,[2] o abuso de poder regulatório constituiria uma categoria inútil, na medida em que o artigo 84, inciso IV, da Constituição, já prevê que o presidente da República somente pode expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. Ultrapassados os limites do âmbito ou do conteúdo da lei, o decreto ou regulamento será ilegal. Ou seja, o extravasamento se resolve no campo da (i)legalidade.

A crítica, entretanto, deixa escapar o cerne da questão: o poder regulatório — seja via agências reguladoras ou outros entes a quem o Congresso Nacional tenha atribuído poder normativo, como os conselhos de fiscalização profissional — é uma realidade. Não seria equivocado afirmar que, hoje, a maior parte do direito vigente advém desses entes, que também produzem direito. A regulação não deixa de ser uma forma de legislação em sentido amplo.[3] Tanto que já se reconhece que os regulamentos, de certa forma, sempre inovam no ordenamento jurídico (do contrário, seriam desnecessários, porquanto meras repetições da lei). O que não se admite é que contrariem previsões legais. Esse arranjo revela a insuficiência da teoria tripartição do poder para dar conta do fenômeno, e a burocracia regulatória aparece como um quatro poder na construção de Bruce Ackerman.

Princípio da legalidade

A própria ideia do princípio da legalidade também passou por uma mutação. A função reguladora deixou de estar concentrada no parlamento. Com isso, o artigo 5º, inciso II, da Constituição — pelo qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei — não poderia excluir a possibilidade de que matérias sejam reguladas ou pormenorizadas por atos infralegais e sujeitos não parlamentares, incluindo as autarquias especiais corporativas (conselhos de fiscalização profissional).

Ao mesmo tempo em que a função reguladora ganha espaço, cada vez mais a lei em sentido estrito se limita a trazer autorizações genéricas e a empregar noções abertas, delegando, na prática, competências legislativas substanciais. Já em 1989, Edward L. Rubin indicava que essa é uma característica das leis no Estado administrativo. Já não se pode esperar que a lei contenha toda a normatividade como antigamente.

A propósito, convém recordar que não se confundem o princípio da legalidade e a reserva da lei. Pelo primeiro, exige-se “a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador”.[4] Já pela segunda se exige que a regulação de certas matérias se dê exclusivamente por lei formal, o que necessariamente supõe uma exigência posta em norma constitucional. A reserva da lei absoluta retira a possibilidade de o assunto ser disciplinado por outras fontes, ao passo que a reserva da lei relativa admite a disciplina por ato infralegal, desde que a lei indique as bases de sua produção.

Essa classificação é útil, pois, existente previsão constitucional de que determinada matéria está sujeita a reserva legal absoluta, eventual ato normativo infralegal seria inválido. Fora dessa situação, a maior parte dos atos normativos tende a encontrar um fundamento de validade no plano legal. E é necessário que assim o seja, pois, como já dito, certos assuntos precisam ser tratados por outros sujeitos que não o Legislativo.

A partir dessas explicações, observa-se que a decisão na medida cautelar na ADPF nº 1.141 adota uma premissa equivocada sobre o poder regulador do CFM, desconsiderando a cadeia normativa — Lei nº 3.268/1957, Decreto nº 44.045/1958 e alterações subsequentes — que lhe confere competência para fixar critérios éticos e técnicos para o exercício da medicina.

Esse ponto foi melhor captado pelo voto-vogal do ministro André Mendonça, proferido por ocasião do referendo da medida cautelar. Eis o que afirmou:

11. Com a mais elevada vênia ao eminente Ministro relator e àqueles que sufragam idêntico entendimento, divirjo de Sua Excelência por compreender que a norma questionada (i) regulamenta questão que ostenta inafastável natureza técnico-científica; (ii) se refere a parâmetros e protocolos inerentes à realização de um ato médico; (iii) foi editada pela instância que possui autoridade técnico-científica e autorização legal para dispor sobre a matéria; e (iv) se respalda em estudos devidamente referenciados na exposição de motivos que embasou a sua edição. Em verdade, a rigor, o parâmetro da norma questionada encontra balizador na ciência médica, e não diretamente no Texto Constitucional. Assim, entendo que este Tribunal — em particular — e o Poder Judiciário — em geral — não dispõem de capacidade institucional ou técnica para escrutinar o acerto ou desacerto da norma.”

A Resolução nº 2.378/2024, do CFM, agora suspensa, tinha trazido o seguinte: “É vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimento de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”.

Como já indicado, tal previsão normativa foi considerada pelo STF um abuso de poder regulatório. Com o entendimento, o aborto legal ganhou contornos de um direito absoluto, que poderia ser realizado independentemente de limite de tempo de gestação ou da viabilidade do feto. Nem mesmo Roe v. Wade (410 U.S. 113 (1973)) foi tão longe.

Outros países

O referido caso da Suprema Corte dos Estados Unidos expressamente reconheceu que o Estado poderia regular o aborto, fixando seu procedimento, exigindo um prazo máximo de gravidez, prevendo condições médico-hospitalares, etc., porque, se por um lado o Estado tem interesse legítimo em preservar e proteger da saúde da gestante; por outro lado, o Estado ainda tem outro interesse importante e legítimo em proteger a potencialidade da vida humana. Nesse julgado, registrou-se que esses interesses são separados e distintos. Cada um cresce em substancialidade à medida que a mulher se aproxima do termo e, em um determinado momento durante a gravidez, cada um deles se torna imperioso (compelling).

Naquele então, assentou-se que, com relação ao interesse importante e legítimo do Estado na saúde da gestante, o ponto imperioso, à luz do conhecimento médico da época (lembrando que o julgado é de 1973), estava aproximadamente no final do primeiro trimestre.[5] Esse limite de tempo foi considerando um fato científico determinante para fixar os contornos do direito ao aborto: somente é possível antes da viabilidade do feto, o que somente pode ser fixado por standards científicos, como registrou a decisão.

Assim, muito mais que a mera forma (lei em sentido estrito ou não), é esse argumento científico o determinante para a discussão sobre a constitucionalidade da fixação de um limite temporal de gestação para a realização do aborto legal. Daí que não há que se falar em regulação abusiva por parte da Resolução nº 2.378/2024, do CFM, na medida em que existem estudos científicos afirmando a viabilidade do feto a partir da 22ª semana de gravidez e tal prazo não foi fixado de forma aleatória, irracional ou caprichosa.

Na França, por exemplo, os prazos para recorrer ao aborto dependem do método escolhido: o aborto instrumental (cirúrgico) pode ser realizado até o final da 14ª semana de gravidez; já o aborto medicamentoso é realizado até o final da 7ª semana de gravidez. Os atuais prazos foram instituídos pela Loi nº 2022-295, du 2 mars 2022, que modificou o Código de Saúde Pública do País para fortalecer o direito ao aborto.

No último 8 de março de 2024, foi acrescentado na Constituição de 1958, artigo 34, a previsão de que “a lei determina as condições sob as quais se exerce a liberdade garantida à mulher de recorrer à interrupção voluntária da gravidez. Com isso, o país gaulês se tornou o primeiro do mundo a reconhecer a liberdade de recorrer ao aborto. Porém, convém mencionar que sempre houve um prazo limite: na Loi n° 75-17 du 17 janvier 1975, a primeira previsão legal, o aborto somente era garantido até a décima semana.

Na Espanha, a Ley Orgánica 2/2010, de 3 de marzo, de salud sexual y reproductiva y de la interrupción voluntaria del embarazo, também fixou o prazo de 14 semanas para que as mulheres exerçam sua autodeterminação quanto à gravidez. No preâmbulo da referida lei, restou assentado que a viabilidade fetal — momento a partir do qual o nascituro já é suscetível de vida independente fora do útero — está situada em torno da 22ª semana de gestação, conforme o consenso da comunidade científica.

A partir daí, a interrupção da gravidez somente está permitida em duas hipóteses: grave risco para a vida ou saúde da gestante; ou risco de graves anomalias para o feto. Nesses casos, a interrupção da gravidez tem caráter médico, podendo envolver a indicação terapêutica de um parto induzido, com vistas a garantir ambos os direitos à vida e integridade física da gestante e o interesse na proteção da vida em formação intrauterina.

Outros países vão no mesmo sentido, mas o espaço desta coluna já acabou e não será possível seguir com essa incursão. Caminha-se, então para a conclusão.

Como se vê, nessa discussão sobre a Resolução nº 2.378/2024, do CFM, o abuso do poder regulatório passou longe. A encampação desse tipo de categoria, ainda mais pela jurisdição constitucional, só vai servir para fomentar teses de advogados e incentivar o aumento da judicialização em torno da regulação.

Mesmo em países que permitem o aborto de forma mais ampla foram fixados prazos limites, após os quais a interrupção da gravidez é limitada. O critério é viabilidade fetal, presumida a partir da 22ª semana de gestação, marco avalizado pela comunidade científica. A capacidade de sobrevida do feto fora do útero é uma premissa factual relevante a ser considerada na constitucionalidade da norma.

Após esse termo, se a gestante não quer levar adiante a gravidez, o caso é de antecipação do parto; e, se não quer ser mãe, de entrega do recém-nascido para a adoção. É natural que disso advenham obrigações, por parte do Estado, de suporte ao bebê prematuro, que precisará de cuidados intensivos para se desenvolver.

Nesse contexto, o certo é que a discussão travada no PL nº 1.904/2024 — que pretende estabelecer duras penas para o aborto praticado após a 22ª semana de gestação, uma clara resposta à decisão tomada na ADPF nº 1.141 — não seria necessária, se fosse observado um postulado básico da hermenêutica: é dever do intérprete afastar interpretações que conduzam a resultados absurdos ou inconstitucionais, como o entendimento de que o artigo 128, inciso II, do CP, autorizaria a interrupção da gravidez a qualquer tempo antes do nascimento com vida ou a utilização de técnicas que atentassem contra a existência viável do nascituro, cujos direitos são salvaguardados desde a concepção, nos termos da literalidade do artigo 4º do Código Civil.

 


[1] Quando, indevidamente: 1) criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; 2) redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado; 3) exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado; 4) redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco; 5) aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios; 6) criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros; 7) introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas; 8) restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal; e 9) exigir, sob o pretexto de inscrição tributária, requerimentos de outra natureza de maneira a mitigar os efeitos da liberdade de desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica.

[2] BERCOVICI, Gilberto. As inconstitucionalidades da “Lei de Liberdade Econômica” (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019). In: SALOMÃO, Luis Felipe; CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana. Lei de Liberdade Econômica e seus impactos no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 123-152.

[3] Como exemplo dessa acepção, o art. 96 do Código Tributário Nacional (CTN) estabelece que a expressão legislação tributária compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares. Ainda, o art. 100, incisos I a IV, do CTN define como normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos: os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa; as práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas; os convênios que entre si celebrem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

[4] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 424.

[5] No original: “These interests are separate and distinct. Each grows in substantiality as the woman approaches erm and, at a point during pregnancy, each becomes “compelling.” With respect to the State’s important and legitimate interest in the health of the mother, the “compelling” point, in the light of present medical knowledge, is at approximately the end of the first trimester. This is so because of the now-established medical fact, referred to above at 149, that until the end of the first trimester mortality in abortion may be less than mortality in normal childbirth. It follows that, from and after this point, a State may regulate the abortion procedure to the extent that the regulation reasonably relates to the preservation and protection of maternal health” (p. 50-51).

Autores

  • é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB), advogada do Senado Federal, doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha), doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

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