Opinião

Validade da investigação privada corporativa e seus reflexos na seara penal

Autores

  • Thiago Cyndier Pereira do Nascimento

    É advogado criminalista associado ao Escritório de Advocacia Gonçalves Santos Advogados e pós-graduando (LLM) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino Pesquisa e Desenvolvimento (IDP) Brasília/DF.

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  • Jônatas Alexandre Rocha Júnior

    é advogado criminalista mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará como integrante da Linha de Pesquisa "Direitos Fundamentais e Políticas Públicas".

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24 de junho de 2024, 16h20

Com o desenvolvimento da sociedade capitalista hodierna, ganha relevo o papel social da empresa, resultando em um consenso legislativo sobre a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica. Esse fenômeno vem acompanhado de uma parcial privatização da persecução penal, manifesta nos programas de compliance. Não obstante tenha fins eminentemente administrativos, de forma reflexa o resultado de investigações corporativas promovidos pelo setor de compliance tem impacto na seara penal.

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Com o advento da modernidade, a atividade empresarial ganhou importância na dinâmica das sociedades, sobretudo diante das inovações tecnológicas e organizacionais que possibilitaram o desenvolvimento de novos e mais eficientes meios de produção. Adiante, na formação do mundo mercantilizado e globalizado, sua relevância foi ampliada progressivamente, culminando no protagonismo que as empresas assumiram no século 21.

Não obstante, se a pós-modernidade se caracteriza pela produção exponencial de riquezas conjugada com o acúmulo exponencial de riscos (Beck, 2010, p. 23), a atividade empresária está envolta em uma série de riscos que interessam a todos que integram a sociedade. Por serem agentes econômicos de uma economia interligada, as ações de uma empresa impactam todo o cenário social que estão inseridas. Além disso, a própria atividade econômica explorada pode afetar bens jurídicos supraindivuais, como o meio ambiente (Prata, 2019, p. 196).

Nesse contexto, há uma tendência de ampliação da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Se antes era inadmitida e tida como estranha ao desenvolvimento histórico-científico das ciências criminais, chegou-se a um relativo consenso, ao menos no campo legislativo, sobre a necessidade político-criminal de se estruturar as bases de imputação desse tipo de responsabilidade (Olivé et al., 2017, p. 729). Destarte, a Constituição de 1988, por exemplo, prevê a responsabilização penal de pessoas jurídicas por crimes ambientais (BRASIL, 1988, art. 225, § 3º).

Tal fenômeno, contudo, não se restringe ao campo do direito material, mas tem impacto direto na seara processual. Com efeito, a ampliação da atividade empresarial desafia a capacidade investigativa do Estado, cujos recursos tendem a ser mais escassos do que o das mega corporações. Nessa linha, a persecução penal vem passando por uma privatização parcial, como “desdobramento inevitável do aludido paradigma de transferência, para a empresa, de funções de controle de criminalidade (criminal compliance).” (Rebouças, 2023).

Compliance

Nesse cenário ganham contorno os programas de compliance, não estabelecidos necessariamente para fins eminentemente penais, mas cujos resultados são criminalmente explorados, ainda que de modo colateral, para fins de identificação de autoria e materialidade de delitos praticados no bojo das empresas (Fuziger, 2024). Compliance, nessa seara, consiste na aplicação de técnicas de governança e transparência para conformação da atividade empresarial à normativa vigente, guiadas pelo paradigma da transparência (Tavares, 2020, p. 10).

No Direito brasileiro, a legislação incentiva a implementação de práticas colaborativas e éticas no ambiente empresarial, especialmente através da Lei Antitruste (Lei nº 12.529/2011) e da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que possibilitam a redução ou exclusão de penalidades administrativas para empresas que cooperam com investigações de infrações por meio de acordos de leniência.

Inobstante seu uso exagerado em alguns contextos, e sua questionável efetividade prática diante da falta de articulação entre os programas de compliance e a regulação estatal (Barrilari, 2020, p. 50 e ss.), os mecanismos de compliance não só tem o fim de facilitar a apuração de irregularidades, mas também de promover uma cultura de transparência e responsabilidade, contribuindo para a proteção de bens jurídicos imprescindíveis ao livre desenvolvimento econômico, bem como para o fomento da probidade na gestão empresarial (Silveira; Saad-Diniz, 2015, p. 114).

Não é incomum que no desenvolvimento de suas atividades econômicas ou comerciais, a empresa venha a dar origem a uma grande variedade de crimes. Em alguns casos serão crimes contra a propriedade ou interesses externos à empresa e noutros casos serão crimes contra os proprietários da empresa ou contra os seus próprios trabalhadores (Gómez, 2020, p. 180).

A pluralidade de pessoas que normalmente participam das atividades da empresa, bem como a complexidade das relações funcionais que se estabelecem entre eles, torna difícil, nestes casos, determinar claramente a responsabilidade individual, sobrelevando a importância do programa de compliance (Gómez, 2020, p. 180).

Autorregulação e a investigação privada

Nesse sentido, uma importante característica dos sistemas de compliance é a autorregulação. Isto é, ante a ausência de regulação pormenorizada da matéria, particulares suprem as lacunas legislativas com o fim de possibilitar a aplicabilidade prática de programas de prevenção (Silveira; Saad-Diniz, 2015, p. 65). Essa conjectura, quando analisada a partir de uma perspectiva mais ampla, aduz problemas no que diz respeito à possível utilização de elementos indiciários obtidos a partir de programas de compliance no direito processual penal brasileiro.

É comum, diante do papel reativo do compliance, a promoção de investigações privadas cooperativas a fim de apurar materialidade e autoria de possíveis infrações (Veríssimo, 2017, p. 91). Ainda que o objeto de tais investigações não tenha essencialmente escopo penal, visto que a legislação prevê benesses tão somente no âmbito do direito administrativo sancionador, de modo reflexo os indícios apurados na investigação interna podem servir como elementos de informação ou fontes de prova na seara penal (Rebouças, 2023).

Pressupostos de validade

Nesse sentido, diante da necessidade de higidez da persecução penal (Badaró, 2019, p. 141), bem como da incidência horizontal dos direitos fundamentais (Mendes, 2012, p. 122), é mister compreender os limites e os pressupostos de validade desses indícios para que sejam utilizados, mesmo que de forma reflexa, no processo penal, visto que é dever do Estado proteger os inocentes diante de persecuções penais infundadas, bem como ser garante dos direitos de defesa de eventuais culpados (Roxin, 2000, p. 21).

Ademais, a própria dinâmica das infrações em âmbito empresarial faz com que a efetividade das investigações internas dependa de certa autonomia e distanciamento de quem as conduz. Como demonstrado por Sutherland, 2015, a criminalidade econômica se desenvolve a partir dos processos de interação social e mecanismos de aprendizagem, como resultado de uma associação diferencial no qual um excesso de definições favoráveis ao padrão de conduta desviante se conjuga com insuficiência de padrões favoráveis ao comportamento não criminoso (Cirino dos Santos, 2020, p. 143).

Compliance office

Ganha destaque, nesse contexto, o compliance office, pessoa ou entidade independente responsável por implementar o programa de compliance, garantindo a conformidade normativa por meio do monitoramento das atividades da organização, da identificação dos riscos de não conformidade, do desenvolvimento de políticas e procedimentos adequados, do treinamento de funcionários e outras atividades afins (Steidel; Guaragni, 2017, p. 65-66).

Spacca

Nesse contexto, a validade da investigação empresarial interna depende, de antemão, da autonomia do compliance office em relação aos demais setores empresariais; independentemente de onde o setor responsável pelo programa será posicionado dentro da organização, o que assegurará seu funcionamento eficaz e, em parte, a validade do material por ele obtido são a independência e a autonomia da equipe.

Esse cenário possibilita uma atuação sem pressões ou influências externas indevidas, mantendo a integridade e capacidade de tomar decisões imparciais, bem como garante verossimilhança aos indícios obtidos, uma vez catalogados por pessoas desinteressadas no resultado último da investigação (Mendes; Carvalho, 2017). O distanciamento ainda mitiga a possibilidade de os próprios investigadores serem influenciados pela associação diferencial, ideia bem trabalhada por Steidel e Guaragni (2017).

Garantias fundamentais

Sem embargo, a validade probatória dos indícios obtidos mediante investigação criminal interna depende, sobretudo, do respeito aos direitos fundamentais daqueles cujas condutas são objeto da investigação (Tavares, 2020, p. 20). Em outras palavras: é preciso considerar, em primeiro lugar, os limites a atividade investigativa do setor de compliance, visto que este não pode adentrar nas diligências sujeitas à reserva de jurisdição, como a interceptação das comunicações telefônicas, por exemplo.

Noutro giro, no que diz respeito às atividades que podem ser perpetradas por qualquer particular, como a colheita de depoimentos, é necessário que sejam respeitadas as garantias fundamentais dos investigados, sobretudo o contraditório (Rebouças, 2023). Uma investigação unilateral, que desconsidera hipóteses alternativas na construção do caso, tem pouca credibilidade e, por conseguinte, reduzido valor probante.

Cadeia de custódia

Ademais, outro fator determinante para o aproveitamento de dados colhidos a partir da investigação criminal coorporativa é a integridade dos elementos de prova (em sentido amplo) colhidos. Preservando-se, sobretudo, o registro da cadeia de custódia daquilo que foi obtido, como garantia de exatidão dos elementos eventualmente juntados a uma investigação oficial conduzida pelas autoridades competentes (Badaró, 2019, p. 129). Tal conjectura ganha ainda mais relevo no que diz respeito à integridade da prova digital, regida sob a égide do princípio da mesmidade.

Esses são pressupostos mínimos para que os elementos colhidos por ocasião de uma investigação corporativa possam servir como elementos de informação aptos a embasar a persecução penal, por exemplo. Entretando, considerando a disciplina legal do art. 155 do Código de Processo Penal, salvo se constituírem provas irrepetíveis, não poderão servir para embasar diretamente a convicção do julgador, porquanto não produzidas em contraditório judicial.

Conclusão

Conclui-se, nesse contexto, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica, aceita no âmbito da sociedade de riscos, culmina em uma parcial privatização da investigação criminal interna. Não obstante os fins dessas investigações, conduzidas pelos programas de compliance seja eminentemente administrativo, não raro os elementos nela colhidos servem como base para a persecução penal. Além disso, considerando a dinâmica da prática de infrações no âmbito de organizações empresariais, a própria verossimilhança desses elementos probatórios depende de certos pressupostos básicos.

Esses pressupostos consistem, em síntese, em autonomia do setor de compliance, respeito a matéria sujeita à reserva de jurisdição, respeito aos direitos fundamentais dos investigados, em especial ao contraditório, e garantia da integridade dos elementos de prova obtidos no curso da investigação.

Garantidos esses pressupostos básicos, os elementos colhidos podem servir como justa causa para deflagração de uma investigação criminal, mas, via de regra, não para formar a convicção do julgador no âmbito da persecução penal, ante ao disposto no art. 155 do Código de Processo Penal.

 


Referências

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. Ed. São Paulo: Editora 34. 2011.

PRATA, Daniela Arantes. Criminalidade coorporativa e vitimização ambiental: análise do Caso Samarco. São Paulo: Libers Ars, 2019.

OLIVÉ, Juan Carlos Ferré. PAZ, Miguel Ángel Núñez Paz. BRITO, Alexis Couto de. Direito penal brasileiro: princípios fundamentais e sistema. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

REBOUÇAS, Sérgio. Licitude e validade da prova penal nas investigações empresariais internas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 9, n. 2, maio/ago. 2023.

FUZIGER, Rodrigo. Metalinguagem e compliance: por um delineamento dos limites de imputação penal dos compliance officers. Boletim Revista dos Tribunais Online, São Paulo, vol. 27, maio. 2022. Disponível em: https://shre.ink/DF93. Acesso em: 12. jun. 2024.

TAVARES, Débora Santos. Riscos da atividade empresarial: considerações sobre a postura colaborativa de empresas no processo penal. In: ROCHA Fernando A. N. Galvão da. Estudos de compliance criminal. Porto Alegre: Editora Fi, 2020.

BARRILARI, Claudia Cristina. Passado e futuro da responsabilidade penal corporativa. In: SOUSA, Luciano Anderson de. Compliance no direito penal. São Paulo: Thompson Reuters, 2020.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, direito penal e lei anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015.

GÓMEZ, Mario Maraver. Derecho penal económico y teoria del delito. Valencia: Tirant lo blanch, 2020.

VERÍSSIMO, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2017.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thompson Reuters, 2019.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Criminologia: contribuição para a crítica da economia da punição. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020.

Guaragni, Fábio Andre. Steidel, Evelin. Direito penal econômico [versão eletrônica pdf]: administrativização do direito penal, criminal compliance e outros temas contemporâneos. Londrina, PR: Thoth, 2017.

MENDES, Francisco Schertel. CARVALHO, Vinicius Marques de. Compliance: concorrência e combate à corrupção. São Paulo: Trevisan, 2017. Ebook.

 

 

 

 

 

 

 

Autores

  • é advogado criminalista associado ao Escritório de Advocacia Gonçalves Santos Advogados, pós-graduando (LLM) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento (IDP), especialista na área do Direito Público com ênfase em demandas criminais relacionadas com o Direito Penal Econômico.

  • é advogado criminalista, mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como integrante da Linha de Pesquisa "Direitos Fundamentais e Políticas Públicas".

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