Opinião

PL antiaborto: invenção de fundamentos jurídicos pelo observador brasileiro

Autores

  • Lívia Oliveira Almeida

    é graduanda em Direito pela UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e membro do Nupod-RI — UEPB (Universidade Estadual da Paraíba).

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  • Luciano do Nascimento Silva

    é graduado em Direito pela USF (Universidade São Francisco); mestre em Direito Penal pela USP; doutor em Direito pela Faduc e pós-doutor pela Unisalento. Professor no CCJ/UEPB (Universidade Estadual da Paraíba). Docente colaborador PPGRI/UEPB e PPGCJ/UFPB (Universidade Federal da Paraíba).

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23 de junho de 2024, 15h24

O regime de urgência [1] aprovado pela Câmara dos Deputados no último dia 12 de junho durante meros 23 segundos para o Projeto de Lei 1904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), cuja disposição equipara o aborto — quando realizado pela própria gestante em si mesma ou por outra pessoa com ou sem consentimento da gestante após a 22ª semana de gravidez — ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos em que a gravidez for resultado de um estupro, exige um debate sobre o paradigma funcional-sistêmico-observacional (Luhmann, 2016; De Giorgi, 2016) em torno da existência de fundamentos jurídicos na proposta.

Paulo Pinto/Agência Brasil

Primeiramente, cabe esclarecer que o aborto provocado pela própria gestante ou consentido por ela, assim como aquele que fora provocado por terceiro, sem ou com o consentimento da gestante, de uma forma geral, é uma figura tipificada como crime conforme a disposição dos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal.

Entretanto, a redação normativa prevê a permissividade da prática abortiva nas duas hipóteses dos incisos I e II do artigo 128 CP/40, os quais dizem respeito ao cometimento do aborto pelo profissional médico (a) nos casos em que a paciente apresente risco de vida ou (b) em situações em que a gestação apresentada fora resultado da prática de estupro, havendo, neste caso, o consentimento da mulher para o ato abortivo (Brasil, 1940).

Em se tratando de mulheres relativamente incapazes (menor de 18 anos e superior a 16 anos, deficiente mental, ébrios habituais, viciados em tóxicos, pródigos, dentre outras previsões dispostas no artigo 4° do CC/2002) e absolutamente incapazes (artigo 3° do CC/2002) deve constar a autorização do seu representante legal.

Além das hipóteses previstas no artigo 128 do diploma penal, em 2012 o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF [2] de n° 147, entendeu que a tese sobre a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos [3] deveria ser recepcionada pela categorização do aborto legal mediante o processo de mutação constitucional [4]. Observa-se que nas três possibilidades (artigo 128 e ADPF 147) a norma não estabelece um limite gestacional para a prática, ficando a critério da paciente o tempo em que a gravidez será interrompida.

Direito Penal do autor

Dentre as hipóteses elencadas, o projeto de lei em questão se refere, sobretudo, à penalização da gravidez interrompida pela conduta do estupro, disciplinada até então como correspondente à figura do aborto legal. Associado a isso, a propositura ainda estabelece um aumento considerável da pena ao crime de aborto, quando realizado após a 22ª semana gestacional, em face da equiparação proposta ao crime de homicídio simples, previsto no artigo 121 do CP/40, o qual apresenta 6 anos de reclusão como pena mínima, podendo esta alcançar o máximo de 20 anos, a depender dos elementos a serem considerados nas três fases da dosimetria da pena (pena-base; atenuantes e agravantes e causas de diminuição ou de aumento da pena).

Spacca

Portanto, tal projeto de lei ressuscita, com chancela estatal, o chamado Direito Penal do autor (Zaffaroni et al, 2003), cuja criminalização não ocorre em face da gravidade da ação delituosa, mas sim em referência à personalidade e aos hábitos que o agente oferece. Portanto, aqui se está a falar de uma criminalização da mulher na sua mais completa condição. A legitimidade para tal pensamento se assenta nos dados fornecidos pelo Instituto de Pesquisa e Econômica Aplicada (Ipea) e pelo serviço Disque Direitos Humanos (Disque 100), cujas indicações expõem uma média de 822 mil casos de estupro a cada ano no Brasil (Ipea, 2023), de forma que em se tratando do estupro de vulnerável [5], tem-se em média 60 registros por dia ou 616 mil por ano (Costa, 2024), com exceção dos casos de subnotificação em face do crime ser cometido por pessoa que detém parentesco ou mesmo proximidade [6] com a vítima. Esses dados expõem o demérito da instituição legislativa frente à realidade aniquiladora das existências femininas.

Caixa de pandora

Sem mais delongas, a proposta acatada em regime de urgência pela Casa cuja funcionalidade, competência e simbologia representam, em tese, a vontade do povo, chancela mais um retrocesso, ou melhor, uma verdadeira caixa de pandora [7] para o contexto social e político, mas, sobretudo, jurídico.

Isso porque, para além da revitimização da mulher e do agravamento das desigualdades de gênero, que por si só apresentam o escárnio de tal proposta, as violações aos direitos fundamentais (artigo 196 da CRFB/88) aos direitos da criança e do adolescente (Lei nº 8.069/1990), ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da CRFB/88), além da ruptura com os tratados internacionais dos quais o Brasil se tornou signatário (Corte Interamericana de Direitos Humanos, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher), traduzem o fundamento político (expresso pelo próprio autor do projeto como um teste da bancada evangélica sobre a postura do então presidente Luiz Inácio a respeito do aborto) para a formação de um discurso supostamente jurídico.

Realidade simplificada

O viés exposto se assenta na teoria de Luhmann (2016) e De Giorgi (2016) a medida que a conjuntura funcional-sistêmico-observacional introduz sob uma perspectiva circular a comunicação proveniente da distinção entre sistema e ambiente, de forma que os sistemas sociais apresentam como escopo a organização (ou redução) das complexidades do ambiente através do fechamento operacional e da abertura cognitiva que tal estrutura sistêmica apresenta.

O fechamento operacional diz respeito ao estabelecimento de códigos próprios que regem a funcionalidade de cada subsistema, a exemplo da estrutura binária “lícito/ilícito” responsável por estruturar o subsistema do Direito, de forma que a conformidade a qualquer outro conjunto de codificações se torna inviável à produção de uma comunicação jurídica.

Por outro lado, a abertura cognitiva permite que o próprio subsistema observe os demais subsistemas e/ou o ambiente, selecione, através de um filtro, elementos antes pertencentes a essas estruturas sistêmicas, para em seguida inseri-los no mundo do Direito através da semântica ofertada pelo código regente, para que assim, produza comunicações e sentidos jurídicos. Isso significa dizer que só o direito pode dizer o que é direito, pois “a força que não vence a força não se faz direito; o direito é a força, que matou a própria força” (Barreto, 1951, p. 168-169).

Por essa razão, os subsistemas se reinventam a partir dos seus próprios mecanismos de observação, uma espécie de racionalidade interna denominada de autopoiese, que se pauta na construção de verdades a partir da diferenciação do processo seletivo (Silva, 2015), quando da escolha de um dos lados para o fundamento da sua observação (Luhmann, 2016). O resultado desse processo confere ao lado escolhido a automática exclusão de um mundo de possibilidades e, por isso, simplifica o sentido da realidade.

Dito isso, em termos sistêmicos, as disposições elaboradas para compor o PL 1.904/24 são correspondentes a um dos lados da diferenciação observacional, de forma que as demais possibilidades são invisibilizadas e excluídas do processo comunicativo, posto que, o observador pode ser observado, mas jamais pode se auto-observar. Nesse sentido, o observador constrói a realidade que ele inventa como real e única possível, sem que de fato esta seja. Isso porque “o ver encerra em si sempre um não-ver” (Marcondes Filho, 2006, p.3).

No contexto debatido, o observador criou um fundamento não-jurídico para legitimar a equiparação do aborto ao homicídio simples que ele próprio criou. Além disso, a seleção diferencial realizada para a inserção da linguagem política no subsistema jurídico não esteve pautada pelos códigos lícito e ilícito que regem a operacionalidade jurídica, mas tão somente pelos códigos próprios da política, o que sugere a inviabilidade dos fundamentos jurídicos em um contexto de autopoiese do subsistema do Direito.

Assim, em que pese o flerte que o Projeto de Lei 1.904/24 desempenha em relação ao sistema normativo, as suas disposições em nada são regidas pelo jurídico, mas por certezas derivadas de inventividades do processo observacional-diferenciador responsável pelo paradoxo sintetização e ampliação da disparidade existencial a que as mulheres estão submetidas.

 


Referências

BARRETO, T, Idéia do Direito. In: Estudos de Direito. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1951.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Regimento Interno, estabelecido pela Resolução n. 17, de 1989. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados . Acesso em: 19 jun. de 2024.

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.

COSTA, G. Disque 100 recebe duas denúncias por hora de estupro de vulneráveis: Casos que ocorrem em ambiente familiar são subnotificados. Agência Brasil: Brasília, 2024. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-05/disque-100-recebe-duas-denuncias-por-hora-de-estupro-de-vulneraveis#:~:text=A%20m%C3%A9dia%20de%20den%C3%BAncias%20em,Sexual%20de%20Crian%C3%A7as%20e%20Adolescentes. Acesso em: 18 jun. 2024.

DE GIORGI, R. A investigação sociológica do direito na teoria dos sistemas. Direito.UnB – Revista de Direito da Universidade de Brasília, [S. l.], v. 2, n. 2, p. 103–119, 2016. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/article/view/24494. Acesso em: 20 jun. 2024.

FERNANDES, I. B.; BENTO P. A. S. S.; XAVIER, R. B. Experiências de mulheres no gestar e parir fetos anencéfalos: as múltiplas faces da violência obstétrica. Interface. 2019: 23(1):1-14. Disponível em: https://doi.org/10.1590/Interface.170757. Acesso em: 18 jun. 2024.

Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Brasil tem cerca de 822 mil casos de estupro a cada ano, dois por minuto. Brasília: Ipea, 2023. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/13541-brasil-tem-cerca-de-822-mil-casos-de-estupro-a-cada-ano-dois-por-minuto. Acesso em: 18 jun. 2024.

LUHMANN, N. Sistemas Sociais: esboço de uma teoria geral. Rio de Janeiro: Vozes, 2016.

MARCONDES FILHO, C. Só conseguimos enxergar aquilo que podemos explicar: Heinz Von Foerster e os dilemas da comunicação. vol. 2, n. 1. Caligrama, São Paulo, 2006.

SILVA, L. N. Direitos Humanos e o observador: complexidade, contingência, autopoiesis, paradoxo e expectativa. Revista Tema, jan. – dez. de 2015. pp. 65-79. Disponível em: http://revistatema.facisa.edu.br/index.php/revistatema/article/view/402/pdf. Acesso em: 14 fev. 2024.

ZAFFARONI, E. R. ; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro. v.1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

[1] O regime de urgência adotado pela Câmara dos Deputados apresenta trâmites específicos, conforme disposto no art. 152 do seu regimento interno, como prazos reduzidos para deliberação, além da “dispensa de exigências, interstícios ou formalidades regimentais“ (Brasil, 1989). Ainda de acordo com o art. 153 do regimento são hipóteses para determinar a urgência de um projeto: a) quando a matéria disciplinar conteúdo referente a democracia e liberdades fundamentais; b) ao se tratar de contexto de calamidade pública; c) em vias de estabelecer a prorrogação dos prazos legais ou quando se tratar de alteração de legislação com aplicação que se avizinha; d) em casos de apreciação da matéria na mesma sessão (Brasil, 1989).

[2] Instrumento pertencente ao controle de constitucionalidade concentrado previsto no artigo 102 da CRFB/88 que se propõe a evitar condutas em desrespeito causadas aos preceitos fundamentais.

[3] Uma condição derivada da má formação  congênita do sistema nervoso central decorrente da falha de formação do tubo neural durante a quarta semana gestacional, resultando na incompatibilidade com a vida extrauterina (Fernandes, Bento e Xavier, 2019).

[4] Fenômeno utilizado quando da modificação interpretativa de normas constitucionais, sem que haja a necessária alteração em sua redação legal.

[5] Tipificado no artigo 217-A do Código Penal: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”com figura equiparada no parágrafo 1°: “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” (Brasil, 1940).

[6] Em 2022, em mais de 70% dos casos, o crime de estupro de vulnerável aconteceu dentro da casa em que a vítima reside, de forma que os autores eram familiares, como pai, avôs, padrastos e tios – 64,4% – ou um conhecido da vítima – 21,6% (Costa, 2024).

[7] Expressão resultante da  mitológica grega referente a caixa que Pandora recebeu de Zeus sem conhecimento propriamente do conteúdo que ali continha e por curiosidade, abre a caixa liberando assim, todos os males possíveis.

Autores

  • é graduanda em Direito pela UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e membro do Nupod-RI — UEPB (Universidade Estadual da Paraíba).

  • é graduado em Direito pela USF (Universidade São Francisco); mestre em Direito Penal pela USP; doutor em Direito pela Faduc e pós-doutor pela Unisalento. Professor no CCJ/UEPB (Universidade Estadual da Paraíba). Docente colaborador PPGRI/UEPB e PPGCJ/UFPB (Universidade Federal da Paraíba).

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