Opinião

Tribunal Internacional de Direito do Mar e mudanças climáticas

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22 de junho de 2024, 7h04

O meio ambiente é transfronteiriço, e sua proteção demanda respostas dos Estados, de forma individual e coletiva, em âmbito nacional e internacional.

Agência Brasil

Atualmente, direitos e deveres relacionados ao meio ambiente estão previstos em vários tratados, como por exemplo, entre aqueles ratificados pelo Brasil, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, a Convenção sobre a Diversidade Biológica, a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e seu Protocolo (Protocolo de Quioto).

Também estão previstos em tratados de direitos humanos, já que o direito ao meio ambiente equilibrado, sadio e seguro, também é considerado um direito humano, seja de forma direta (previsto, por exemplo, no artigo 11 do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e ainda no artigo 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo a jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos), seja indireta, decorrente da proteção de outros direitos.

Como consequência da expansão normativa internacional em temas relacionados ao meio ambiente, tribunais internacionais, aos quais compete dirimir disputas relacionadas à interpretação desses tratados, têm analisado casos relacionados à proteção ambiental.

Citam-se, entre outros, na Corte Internacional de Justiça, os casos Fábricas de celulose no rio Uruguai, o caso sobre o projeto Gabčíkovo-Nagymaros, o caso da pesca de baleias na Antártica e o caso sobre atividades realizadas pela Nicarágua na região de fronteira; na Corte Interamericana de Direitos Humanos, os casos Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua, Claude Reyes e outros vs. Chile, Habitantes de La Oroya vs. Peru e a opinião consultiva OC-23/17; na Corte Africana de Direitos Humanos, o caso da Comissão Africana de Direitos Humanos vs. República do Quênia (App. 006/212); na Corte Europeia de Direitos Humanos, os casos Lopez Ostra vs. Espanha, Jugheli e outros vs. Georgia, Kristiana Ltd vs Lituânia e o recente caso Verein Klimaseniorinnen Schweiz vs. Suíça; e no Tribunal Internacional de Direito do Mar, os casos do atum da barbatana azul do sul, Mox Plant, Reclamação de terra por Singapura no e ao redor do estreito de Johor, M/V Louisa, disputa sobre a delimitação da fronteira marítima entre Gana e Costa do Marfim no Oceano Atlântico, bem como os pareceres consultivos sobre as responsabilidades e obrigações dos estados patro­cinadores de pessoas e entidades no que diz respeito às atividades na Área e sobre pesca ilegal, não­-reportada e não regulamentada.

No último dia 21 de maio, o Tribunal Internacional de Direito do Mar emitiu a Opinião Consultiva (caso nº 31) sobre Mudanças Climáticas e Direito Internacional. É a primeira opinião consultiva emitida por um tribunal internacional especificamente sobre as obrigações internacionais dos Estados para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

A jurisdição consultiva dos tribunais internacionais é exercida em abstrato, por meio da formulação de questionamentos que visam ao esclarecimento de questão jurídica, e, portanto, sem força obrigatória. A competência consultiva do Tribunal Internacional do Direito do Mar está prevista no artigo 288.2 da CNUDM, no artigo 21 do Estatuto do Tribunal e no 138 do seu Regulamento [1].

Spacca

Essa opinião consultiva foi solicitada pela Comissão de Pequenos Estados Insulares sobre Mudanças Climáticas e Direito Internacional (a sigla em inglês é Cosis), grupo de Estados insulares do Caribe e do Pacífico.

Controle de poluição marinha

Os oceanos fornecem metade do oxigênio da atmosfera, sendo essenciais para o combate aos efeitos adversos das mudanças climáticas decorrentes da emissão de gases de efeito estufa antropogênicos (GEE). Os questionamentos versaram sobre as obrigações dos Estados, à luz de vários artigos da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM) para prevenir, reduzir e controlar a poluição do ambiente marinho decorrente de efeitos negativos de alterações climáticas causados por GEE na atmosfera e proteger e preservar o ambiente marinho dos impactos das mudanças climáticas.

O Tribunal concluiu que as emissões de GEE são uma forma de poluição marinha (de fontes terrestres, poluição de navios e poluição proveniente da atmosfera), nos termos do artigo 1.1.4 da CNUDM, com risco elevado de causar danos irreversíveis ao ambiente marinho, o que gera uma série de obrigações específicas (não discricionárias), bem como de due diligence aos estados.

Uma obrigação due diligence, em direito internacional, é um standard de avaliação do comportamento de um Estado ou de uma organização internacional, relativamente a um determinado dever de cuidado ou a um dever de não causar prejuízo ou mal.

É uma obrigação de não causar danos por negligência — muito utilizada no direito internacional dos direitos humanos e no direito internacional do meio ambiente — em que se avalia se o Estado ou a organização internacional adotou ou não medidas para evitar que agentes (estatais ou privados) sob sua jurisdição gerem risco a direitos de outro Estado, organização internacional ou indivíduos, bem como se poderia ter antevisto e intervindo para evitá-lo [2].

Segundo o Tribunal, os estados têm o dever rígido (stringent due diligence obligation) de regular e fiscalizar atividades potencialmente poluentes em seu território (inclusive do setor privado) para que não afetem outros Estados e tampouco o meio ambiente, bem como adotar medidas para reduzir a emissão de GEE e para limitar o aumento da temperatura média global em 1,5 º C acima dos níveis da era pré-industrial.

Esse dever deve ser objeto de controle ainda mais rígido em casos de poluição transfronteiriça. Também têm o dever de adotar normas e regulamentos para prevenir, reduzir e controlar a poluição de GEE dos navios que arvorem sua bandeira, seguindo no mínimo os mesmos padrões já fixados em normas ou diretrizes internacionais.

Os estados devem publicar relatórios e estudos de impacto ambiental sobre poluição marinha causada por GEE e monitorar de forma contínua os efeitos gerados pelas atividades permitidas em seu território.

Os Estados também têm a obrigação de atuar, de forma significativa, contínua e de boa fé, em organizações internacionais ou fóruns internacionais para estabelecer regras, standards e práticas regionais e globais para prevenir, reduzir e controlar a poluição marinha decorrente de GEE, inclusive com pesquisa científica e troca de informações.

Os deveres estatais na prevenção, redução e controle da poluição marinha causada por emissão de GEE podem variar de acordo com as suas capacidades e recursos disponíveis, em linha com o princípio das “responsabilidades comuns mas diferenciadas” também previsto na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.

Essa obrigação não se satisfaz apenas pelo cumprimento das obrigações decorrentes do Acordo de Paris sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, pois, embora sejam complementares, a CNUDM e o Acordo de Paris são acordos separados e preveem obrigações distintas. Os Estados desenvolvidos têm a obrigação de ajudar os Estados em desenvolvimento, em particular aqueles vulneráveis aos efeitos adversos das mudanças climáticas, a combater a poluição marinha causada pelas emissões de GEE.

Isso deve ser feito com o desenvolvimento de conhecimentos científicos, transferência de tecnologia e tratamento preferencial em financiamento, assistência técnica e serviços de organizações internacionais direcionados às pessoas vulneráveis ​​aos efeitos adversos das alterações climáticas.

Ademais, para o Tribunal, o artigo 192 da CNUDM impõe uma obrigação geral aos Estados (também due diligence) de proteger e preservar o ambiente marinho, em todas as áreas marítimas, que pode ser invocada para combater qualquer forma de degradação do ambiente marinho e de seus recursos vivos, incluindo aquelas decorrentes de alterações climáticas (como o aquecimento dos oceanos e a subida do nível do mar, e a acidificação dos oceanos). Essa obrigação pode ser invocada também para restaurar habitats e ecossistemas marinhos degradados em decorrência de alterações climáticas.

Esse dever estatal impõe o respeito ao princípio da precaução e a garantia de que agentes não estatais sob a jurisdição dos Estados adiram a estas medidas ambientalmente protetivas.

O Tribunal mencionou que, se o Estado descumprir seus deveres de prevenir, reduzir e controlar a poluição marinha causada por emissão de GEE, pode ser internacionalmente responsabilizado, o que dependerá da análise do conceito de stringent due diligence obligation (dever de cuidado rígido), cujo conteúdo, contudo, não foi esclarecido na opinião consultiva [3].

Embora o tribunal tenha afirmado que, no cumprimento dos seus deveres, a atuação estatal deve ser guiada por critérios objetivos, levando em consideração informações cientificas (best available science), regras, padrões internacionais, também mencionou que outros favores relevantes seriam levados em consideração, sem especificá-los.

A opinião consultiva também reforçou o caráter flexível e dinâmico (living instrument) da CNUDM, que propicia que um tratado denso (conhecido como a constituição dos oceanos [4]) e que data da década de 1980, seja interpretado de forma contemporânea, dialogando com normas previstas em outros tratados (a exemplo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, o Protocolo de Quioto, o Acordo de Paris, a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (MARPOL), a Convenção sobre Aviação Civil Internacional e o Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio), o que reforça a natureza sistêmica do Direito Internacional [5].

O Tribunal também mencionou que as “as alterações climáticas causam preocupações de direitos humanos” (parágrafo 66). Embora tenha sido tímida, de forma similar ao que já mencionou em outros casos do Tribunal Internacional de Direito do Mar (a exemplo do caso MV Saiga nº 2, Juno Trader, Ara Libertad e incidente Erica Lexie), a Opinião consultiva também reconheceu assim o efeito irradiador dos direitos humanos para outras áreas do direito internacional [6].

Decisão histórica

A opinião consultiva do Tribunal Internacional do Direito do Mar é uma decisão histórica e um passo importante no combate aos efeitos danosos das mudanças climáticas.

Apesar de não serem juridicamente vinculantes, as opiniões consultivas definem o conteúdo e alcance (em abstrato) de normas internacionais, influenciando a adoção de políticas por Estados e de decisões jurídicas internacionais e nacionais futuras (em concreto). Servem também sinalizar que Estados que adotam uma interpretação divergente (nacional) das normas internacionais podem em tese ser futuramente responsabilizados no plano internacional.

Nesse caso, 168 Estados ratificaram a CNUDM, inclusive o Brasil, e se sujeitam a interpretação que é conferida a suas normas pelo Tribunal Internacional de Direito do Mar. Logo, terão que adotar medidas internas para cumprir com as obrigações delimitadas na opinião consultiva, sob pena de futuramente correrem o risco de serem demandados e quiçá responsabilizados pelo seu descumprimento perante o próprio Tribunal.

Ademais, o Tribunal Internacional de Direito do Mar é um dos intérpretes autênticos da CNUDM, motivo pelo qual o entendimento fixado na sua recente opinião consultiva baliza também a interpretação das normas da CNUDM a ser utilizada no controle de convencionalidade realizado por tribunais nacionais brasileiros.

A despeito de seus méritos, a opinião consultiva não teve a pretensão de esgotar o debate sobre o tema, seja porque foi direcionada às obrigações previstas ou decorrentes da CNUDM, seja porque não versou expressamente sobre as consequências legais do descumprimento das obrigações fixadas (reponsabilidade internacional do Estado), as quais foram pontualmente mencionadas apenas quando necessárias para esclarecer determinados deveres estatais.

A natureza transnacional e o caráter interdisciplinar do meio ambiente tornam urgente a fixação de direitos, obrigações e responsabilidade internacional relacionadas às mudanças climáticas, em normas já existentes e em normas futuras.

Os desastres ambientais em várias partes do globo mostram a urgência de adoção de medidas por todos os Estados. No Brasil, a recente tragédia, decorrente de enchentes, que assola o estado do Rio Grande do Sul é um exemplo dos efeitos adversos causados pelas mudanças climáticas nos últimos anos.

Em breve, a Corte Internacional de Justiça e a Corte Interamericana de Direitos Humanos também vão se manifestar sobre as obrigações dos Estados na proteção do clima e meio ambiente à luz respectivamente, das normas de direito internacional geral e da Convenção Americana de Direitos Humanos [7], provavelmente travando um diálogo com a recente opinião consultiva do Tribunal de Internacional de Direito do Mar, evidenciando o papel dos tribunais internacionais para dar efetividade das normas internacionais e para garantir a unidade e coerência do direito internacional. Aguardamos ansiosos.

 


[1] RITZMANN TORRES, Paula. O Tribunal Internacional do Direito do mar: Funcionamento, Jurisdição e Jurisprudência. Belo Horizonte: Arraes, 2019, p. 133-135.

[2] BESSON, Samantha. La due diligence en droit international. In: Recueil des cours de l’Académie du droit international de La Haye, v. 409, 2020, pp. 161-368, p. 171.

[3] DESIERTO, Diane. “Stringent Due Diligence”, Duties of Cooperation and Assistance to Climate Vulnerable States, and the Selective Integration of External Rules in the ITLOS Advisory Opinion on Climate Change and International Law. In: EJIL Talk Blog of the European Journal of International Law, 3 de junho de 2024. Disponível em: https://www.ejiltalk.org/stringent-due-diligence-duties-of-cooperation-and-assistance-to-climate-vulnerable-states-and-the-selective-integration-of-external-rules-in-the-itlos-advisory-opinion-on-climate-change-and-inte/. Acesso em: 14.6.2024.

[4] ONU. ‘A Constitution for the Oceans’. Remarks by Tommy T.B. Koh, of Singapore, President of the Third United Nations Conference on the Law of the Sea. 6 to 11 December 1982 at the final session of the Conference at Montego Bay.  No mesmo sentido, CASELLA, Paulo Borba. 30 Anos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. In: Revista da Escola de Guerra Naval, v. 18, n. 2, dez. 2012. Rio de Janeiro: Escola de Guerra Naval, pp. 93-104, cit. p. 101.

[5] MAROTTA RANGEL, Vicente. A problemática contemporânea do Direito do Mar. In: BRANT, L. (Coord.). O Brasil e os novos desafios do Direito Internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pp. 323-339, cit. p. 328.

[6] CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 185.

[7] LIMA, Lucas Carlos. O parecer consultivo de mudanças climáticas na CIDH. In: Revista Consultor Jurídico, 15 de maio de 2024. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2023-mai-15/lucas-lima-parecer-mudancas-climaticas-cidh/. Acesso em: 12.6.2024

Autores

  • é advogada, doutora e mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná e em Relações Internacionais pela UniCuritiba e autora do livro “O Tribunal Internacional do Direito do mar: Funcionamento, Jurisdição e Jurisprudência”.

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