Opinião

O Tribunal Superior do Trabalho errou?

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22 de junho de 2024, 6h04

Recente decisão do Tribunal Superior do Trabalho provocou reação de Lenio Streck. No texto “TST legisla e TJ-SP explica prisão de 170 anos por livre convencimento“, publicado nesta ConJur, voltou-se contra acórdão de órgão fracionário do tribunal que aparentemente [1] conferiu a juiz do trabalho um protagonismo perigoso a propósito da instrução probatória.

TST

Examinando os autos, verifica-se que o tribunal decidiu, por maioria, prover embargos de divergência para restabelecer acórdão de Tribunal Regional do Trabalho, “com determinação de retorno dos autos à Turma do TST para análise do feito, como entender de direito […]”. O acórdão ainda não foi publicado.

Todavia, na decisão primeva decidiu-se pelo conhecimento do recurso de revista da reclamada “quanto ao tema ‘preliminar de nulidade por cerceamento do direito de defesa.

Indeferimento do depoimento pessoal da reclamante’ por violação do artigo 5º, LV”, da CF/88, para, no mérito, dar provimento e “anular os atos processuais desde a fase de instrução (salvo quanto às provas já produzidas nos autos) e determinar o retorno dos autos à vara do trabalho de origem para reabertura da audiência para a colheita do depoimento pessoal da reclamante e prática de demais atos processuais que entenda pertinentes, como entender de direito”.

Logo, órgão do TST modificou a decisão da turma do mesmo tribunal, pois, conforme a crítica de Lenio, “decidiu que o juiz pode indeferir o depoimento de qualquer das partes em processo trabalhista. Isto é, o indeferimento da oitiva da parte contrária não configura cerceamento de defesa”.

De forma acertada, o autor reconheceu que o precedente do TST preconizava que, “se o juiz já tem convencimento, não é necessário ouvir as partes”; e assim, restaria “saber como se sabe que ele já tem convicção e de que modo ele pode dar esse salto cognitivo”.

Ora, ainda que aos juízes seja dado o poder-dever de decidir, disso não se segue que possam escolher como os advogados poderão trabalhar (conforme artigo 6º, caput, do Estatuto da Advocacia). E a prova oral é extremamente útil, só podendo ser negada se o seu pedido vier genérico. Não sendo esse o caso, i. e., se o pedido de produção dessa prova vier minimamente motivado, eventual indeferimento representará cerceamento — notadamente de defesa, na medida em que a parte prejudicada no caso concreto aparentemente era a reclamada. [2]

Spacca

Prosseguiu Lenio fazendo referência à CF/88 e ao CPC e como a decisão do TST teria contrariado tais diplomas. Isso porque para ele o artigo 385 da lei processual teria pleno cabimento no direito do trabalho; o direito de inquirir a parte contrária não seria um direito menor ou imune à jurisdição constitucional; e o juiz não poderia ter tanto poder.

Lenio sustenta essa aplicação do CPC na medida em que concretiza comando constitucional atinente ao devido processo legal.

Necessário, no ponto, consignar-se que pelo menos desde 1988 [3] não há falar em discricionariedade [4] de magistrados, que são obrigados a decidir conforme a Constituição, as leis da república e a prova produzida nos autos, bem assim os precedentes dos tribunais, e não conforme suas convicções ou presunções. Não há livre convencimento ou livre convicção, mas decisão amplamente motivada e fundamentada.

Sem livre apreciação

Para Guilherme Barcelos, em uma democracia não podem os órgãos do Judiciário formar suas convicções a partir de livre apreciação, e, assim, decidir a partir de livre convencimento, na medida em que o artigo 93, caput e inciso IX, da CF/88 exige motivação/fundamentação das decisões, sendo isso uma garantia ao jurisdicionado — no sentido de que as decisões serão fundamentadas com base nos argumentos das partes, provas dos autos e em textos normativos, e nunca em presunções. [5]

Em seu dicionário de hermenêutica, no verbete “coerência e integridade”, Lenio Streck diz que não poderá o aplicador decidir seguindo sua consciência, na medida em que o “livre convencimento significa o total afastamento do julgador dos elementos de coerência e integridade”. [6]

No paradigma pós-positivista [7], pois, as decisões são hermeneuticamente controladas, conforme leciona Pablo Miozzo, não havendo espaço para qualquer discricionariedade: “Não são escolhas arbitrárias ou apenas volitivas, são atos hermenêuticos e, portanto, hermeneuticamente e intersubjetivamente passíveis de controle”. [8]

A decisão judicial, com efeito, decorre de um processo dialógico e precisa seguir critérios previstos na Constituição e em leis. O juiz decide porque essa é a racionalidade dos processos judiciais; de modo que é integrante do processo, como os advogados, partes e ministério público — e não proprietário do processo.

O texto de Lenio provocou a reação de outro autor aqui na ConJur: Igor Zwicker.

No texto “TST não legisla, mas cumpre e faz cumprir a Constituição“, o autor voltou-se contra a crítica de Lenio, sustentando que não divisava ativismo por parte da Corte.

Após breve referência à estrutura do TST e competência de seus órgãos fracionários, com base na octogenária CLT, Igor referiu o seguinte acerca da decisão criticada por Lenio:

O relator dos embargos, ministro Breno Medeiros, assinalou que, no Processo do Trabalho, a escuta pessoal das partes é uma faculdade do juiz, conforme o artigo 848 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Trata-se, segundo ele, de prerrogativa exclusiva do magistrado, a quem a lei confere amplos poderes na direção do processo, autorizando-o a indeferir provas que considere inúteis para a solução da controvérsia.

Ele explicou ainda que o Código de Processo Civil (CPC), ao conferir a uma das partes a prerrogativa de requerer o depoimento de outra, disciplina uma questão já tratada na CLT e, portanto, não cabe sua aplicação no Processo do Trabalho. A decisão foi tomada por maioria, vencido o ministro Augusto César. – Destaques no original.

Adiante, sustenta que “sem muito esforço […] é possível desconstruir o primeiro argumento do ilustre colunista [Lenio], de que o [TST] ‘mais uma vez decide contra a lei, substituindo-se ao legislador'”, pois tratar-se-ia — esse poder do juiz do trabalho — de uma opção do legislador.

Atente o leitor, no ponto, que a CLT é um decreto-lei de 1943, conforme artigo 180 da Carta de 1937, que diz: “Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União”.

E fazendo referência a dispositivo do indigitado diploma, sustenta o autor que “terminada a defesa, seguir-se-á a instrução do processo, podendo o presidente, ex officio ou a requerimento de qualquer juiz temporário, interrogar os litigantes”. E que tratar-se-ia de “uma faculdade da magistrada ou do magistrado”.

Em razão do artigo 769 da CLT, diante do artigo 848 do mesmo diploma, o CPC não poderia ser acionado.

Como próximo argumento, referenciou o artigo 765 da CLT, que seria “expresso em prever que as juízas e os juízes do trabalho ‘terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas'”.

No ponto, sustentou haver um paralelo com o artigo 370 do CPC/2015, “que atribui à magistrada e ao magistrado determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito, indeferindo-se, ’em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias'”.

Note o leitor dos trechos acima que, mesmo no paradigma constitucional, o juiz do trabalho aparentemente possuiria ampla liberdade na direção do processo, enquanto os demais juízes, não submetidos à CLT, precisariam decidir de forma fundamentada sobre indeferimento de diligências inúteis ou meramente protelatórias.

Ora, se há ampla liberdade, o juiz do trabalho pode indeferir a produção de prova ainda que não seja inútil ou protelatória. E poderá também deferir provas inúteis ou protelatórias. Tudo sem fundamentação. Ampla liberdade é ampla liberdade.

Prossegue Igor fazendo referência a julgado de 2004 em que o TST decidiu da mesma forma, qual seja, de que “A prerrogativa conferida ao juiz de dispensar o depoimento da parte há de ser apenas nas situações em que não mais subsista controvérsia sobre os fatos, à luz dos limites balizados pela petição inicial e contestação, não advindo, assim, prejuízo algum ao litigante”. Ou seja, mantém o juiz do trabalho com ampla liberdade para dirigir o processo como achar melhor, para além do que as partes, por seus advogados, venham a sustentar.

A crítica de Lenio cabe também para esse julgado de 2004.

Adiante refere a confissão, que geraria a desnecessidade da produção de outras provas, nos termos da CLT: “fatos confessados prescindem da produção de outras provas”.

Lembre o leitor da expressão latina confessio est regina probationum, que certamente precisa ser avaliada com serenidade pelos juízes, como inclusive preconizado recentemente pelo STJ, conforme noticiado pela ConJur [9].

Em conclusão, disse o autor:

A encerrar, vejo com pesar o injusto julgamento que tem rotineiramente sofrido, em tempos sombrios, a Justiça do Trabalho, o seu órgão máximo — TST — e suas juízas e juízes. Em tempos de “uberização”, “pejotização” e em meio a um mar de “colaboradores”, a importância a ser dada à Justiça Constitucional do Trabalho deve ser urgente e imperiosa. Sob pena de voltarmos, guardadas as proporções, ao primeiro ciclo da Revolução Industrial.

Poder ao juiz do trabalho

Lenio não necessita que eu escreva em sua defesa. Mas não poderia deixar de me manifestar, até para contribuir para o debate proposto por Igor Zwicker.

O primeiro autor em momento algum lançou julgamento injusto contra quem quer que seja. Pelo contrário, criticou uma decisão em aparente desarmonia com a Constituição. Uma decisão que confere ao juiz do trabalho um poder que não possui espaço desde 1988. Um poder que torna os advogados e membros do MP desnecessários.

Um poder que confere ao juiz um lugar de proprietário do processo, quando ele é apenas mais um integrante do complexo sistema jurídico brasileiro e possui obrigações legais e constitucionais rígidas para o exercício das suas elevadas funções.

Argumentos baseados em literalidade de um diploma com mais de 80 anos e nascido no marco de uma constituição outorgada (1937), data venia, não são suficientes para infirmar a respeitosa crítica de Lenio, lastreada na Constituição de 1988 e no CPC de 2015, que racionalizou o processo civil, afastando entulhos autoritários do diploma de 1973.

Como último argumento em defesa do primeiro autor e de sua crítica a acórdão do TST, que ainda não foi publicado, destaca-se entendimento do STF pela aplicação do artigo 400 do Código de Processo Penal, que garante a realização de interrogatório do réu ao final da instrução a todos os procedimentos penais militares com instrução probatória não finalizada até 10/03/2016.

O CPP Militar, tão anterior a 1988 quanto a CLT, não é omisso no ponto. É expresso: “Art. 302. O acusado será qualificado e interrogado num só ato, no lugar, dia e hora designados pelo juiz, após o recebimento da denúncia; e, se presente à instrução criminal ou preso, antes de ouvidas as testemunhas”.

Diz ainda o CPPM: “Art. 406. Durante o interrogatório o acusado ficará de pé, salvo se o seu estado de saúde não o permitir”.

E o STF entendeu pela adequação do sistema acusatório democrático aos preceitos constitucionais da Constituição de 88, atribuindo máxima efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa, para, por ser mais benéfica e harmoniosa com a Constituição, fazer preponderar, no processo penal militar, a regra do artigo 400 do CPP.

Respondendo à pergunta do título destas humildes linhas, ressalvado o inteiro teor do acórdão: sim, o TST errou.

Por fim, como dito por Alberto Toron da tribuna do Supremo, se o tribunal se eleva ouvindo outras vozes, seguro concluir-se pela pertinência da crítica construtiva de Lenio, que visa justamente contribuir com o Tribunal Superior do Trabalho, enriquecendo a Corte.


[1] Acórdão não publicado pelo menos até a manhã do dia 18 de junho de 2024.

[2] Nesse sentido, recentemente o STJ, a propósito do julgamento do REsp 2.098.923-PR (Informativo 813) assentou que “É vedado ao juízo recusar a intimação judicial das testemunhas de defesa, nos termos do art. 396-A do CPP, por falta de justificação do pedido, substituindo a intimação por declarações escritas das testemunhas consideradas pelo juízo como meramente abonatórias configurando violação do princípio da paridade de armas e do direito de ampla defesa”; e que “O indeferimento do pedido da intimação de testemunhas de defesa pelo juízo criminal baseada unicamente na ausência de justificativa para a intimação pessoal, previsto no art. 396-A do CPP, configura cerceamento de defesa e infringe os princípios do contraditório e da ampla defesa”. Nos termos do voto condutor, “É fundamental ressaltar que a dinâmica do processo penal, solidamente ancorada nos princípios da oralidade, contraditório e ampla defesa, exige que as partes tenham a liberdade de apresentar uma vasta gama de provas relevantes para a descoberta da verdade”; e “A autoridade judicial detém a prerrogativa de recusar diligências irrelevantes ou impertinentes; contudo, essa prerrogativa deve ser exercida com fundamentação clara, especialmente quando afeta o direito de defesa”. – Destaquei. A razão de decidir cabe a qualquer processo judicial.

[3] Mesmo que em período anterior não pudessem decidir fora desses parâmetros, i. e., as Constituições não poderiam ser desrespeitadas, seguro concluir-se que a Constituição de 1988 revela inequívoco avanço na limitação da atuação estatal em prol do indivíduo.

[4] Há na doutrina quem faça distinção entre discricionariedade e arbitrariedade.

[5] BARCELOS, Guilherme. Crítica Hermenêutica do direito eleitoral: o julgamento chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral. Curitiba: Juruá, 2020. p. 195-196.

[6] STRECK. Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017. p. 34-35;

[7] Pós-positivismo é expressão altamente disputada na teoria do Direito, e aqui utiliza-se na forma concebida por Lenio Streck.

[8] MIOZZO apud MOREIRA PINTO, Samuel Saliba. O controle hermenêutico jurisdicional na teoria e metódica estruturantes do Direito de Friedrich Müller. Revista Da Faculdade De Direito Da FMP, 13(2), 231- 266. Disponível em: https://revistas.fmp.edu.br/index.php/FMP-Revista/article/view/78/112. Acesso em: 18 jun. 2024.

[9] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-12/stj-limita-efeitos-da-confissao-do-suspeito-para-investigacao-e-condenacao/. Acesso em: 18 jun. 2024.

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