Opinião

Inconstitucional, equiparação do aborto ao homicídio ofende todas as mulheres

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  • Adib Abdouni

    é advogado constitucionalista e criminalista e autor do livro "Fake News e os Limites da Liberdade de Expressão".

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22 de junho de 2024, 6h30

O Projeto de Lei 1.904/24 que equipara o aborto feito após 22 semanas de gestação (presunção de viabilidade fetal) ao crime de homicídio simples, previsto no artigo 121 do Código Penal, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro, foi apresentado pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder evangélico, com pedido de urgência acerca de sua tramitação, formulado pelo coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, deputado Eli Borges (PL-TO).

Esse fato político chama a atenção, dada a relevância do tema em debate e das repercussões sociais que daí se irradiam, haja vista que a proposta legislativa desborda de uma simples pauta conservadora.

Vale lembrar que o Brasil é uma república constitucionalmente laica (Constituição, artigo 19, I), portanto, absolutamente neutra quanto às religiões, de sorte que as leis reguladoras da sociedade brasileira, democraticamente, devem refletir essa desvinculação.

Quer dizer, apesar da neutralidade estatal em relação às demandas religiosas, a Constituição não se descuidou de assegurar a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença afeta às mais diversas denominações religiosas — sem que qualquer uma delas seja privilegiada ou exerça influência na consecução de políticas públicas — com a garantia do livre exercício dos cultos religiosos, na forma do postulado constitucional que se extrai dos incisos VI e VIII do artigo 5º da Carta da República.

Inconstitucional

De tal sorte, a aludida proposta de alteração legislativa, além de dissociar-se da autonomia entre a política e a religião, revela-se inconstitucional, haja vista que seu conteúdo não se coaduna com a Constituição Federal, notadamente com os preceitos que garantem a dignidade da pessoa humana, a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.

Paulo Pinto/Agência Brasil

Assim, deve-se ter em conta que as razões de política criminal que motivam uma alteração legislativa — notadamente aquelas que tratam de temas sensíveis à mulher —, devem ter em mira a busca pela expressão constitucional da equiparação plena de gênero (Constituição, artigos 3º, IV e 5º, I), ante a histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens, que acabou por institucionalizar desigualdades e a promoção de visões excludentes e discriminatórias.

Ainda mais quando falamos no impacto dessa proposta de recrudescimento penal sobre mulheres pobres, vulneráveis, e, sobretudo, precariamente assistidas pelo Estado, com acesso dificultado a médicos e clínicas privadas, que buscam no sistema público de saúde — com evidenciada morosidade de atendimento — o direito de submeterem, antes do obstáculo temporal proposto das 22 semanas, ao aborto legal.

Óbice esse que, evidentemente, ao invés de trazer resultado preventivos positivos ao não aborto, trará consequências espúrias, na procura de clínicas clandestinas que trazem consigo consequências nefastas de mutilação, lesões graves e óbitos de mulheres.

Por essa razão, para que não se confira uma proteção insuficiente nem aos direitos das mulheres, nem à vida do nascituro, é que se reconhece na proposta legislativa a sua inconstitucionalidade. O legislador, com fundamento e nos limites da Carta da República, tem liberdade de conformação para definir crimes e penas, mas não para avançar de maneira que colida com direitos fundamentais, como os direitos sexuais e reprodutivos, a autonomia, a saúde, a integridade física e psíquica e a igualdade, posto que o conjunto normativo que integra o projeto de lei, não pode ser causador de lesão maior.

Essa é característica essencial dos direitos fundamentais, vez que oponíveis às maiorias políticas, de modo que funcionam como limite ao legislador, inclusive para impedir a acentuação da criminalização do aborto e evitar a produção de repercussão desproporcionalmente grave sobre a mulher.

Compreensão essa que não deve levar ao entendimento de que se pretenda fazer a defesa da disseminação indiscriminada do procedimento de interrupção da gravidez, haja vista que o aborto é uma prática que se deve ser evitada.

O que não significa dizer que o Estado tenha o direito de tornar a vida dessa mulher ainda mais traumática, processando-a criminalmente, em desatendimento do princípio da proporcionalidade que se destina a assegurar a razoabilidade substantiva dos atos estatais, seu equilíbrio e justa medida.

Assim, tornar a norma penal mais rigorosa sobre o aborto constitui medida de caráter evidentemente duvidosa, quanto à sua adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir resultado relevante sobre o número de abortos praticados no país, e sim, impedir que mulheres o façam de modo seguro.

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