Diário de Classe

Atentado à superficialidade: repensando o ensino jurídico com Streck

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22 de junho de 2024, 8h00

Semana passada, Óliver Vedana, em “O marketing e a inversão de prioridades“, retomou uma reflexão importante acerca dos rumos do direito no Brasil. A prática tem mostrado como o aprofundamento teórico fica em segundo plano, dando lugar a uma formação direcionada para o marketing pessoal e para a criação de uma imagem (posicionamento). Ou seja, a abordagem de algo fundamental para as democracias contemporâneas, como o direito, tem sido substituída por uma visão superficial e mercadológica.

Tratou-se do aprofundamento da temática já trabalhada em outro texto aqui do Diário de Classe, com o título “A sociedade do espetáculo e o esvaziamento das fundamentações“. O fenômeno apontado por meu colega é de extrema relevância (pois reflete a ideia de que a imagem é mais importante do que o conteúdo) e é especialmente perigoso no campo jurídico, na medida em que a prática profissional deficiente e a ausência da fundamentação das decisões colocam o próprio Estado democrático de Direito em xeque. Jogando na retranca, contudo, explico que compreendo as questões de mercado e a necessidade de vender o serviço, mas reitero as palavras de Óliver: “A crítica é direcionada ao parecer que não é. À maximização da busca da aparência em detrimento ao ser. O esforço em parecer ser, maior do que o esforço em realmente ser”.

Ensino jurídico em crise

Este texto aborda a questão do ensino jurídico neste cenário. Como fica o “esforço em realmente ser” quando só as aparências e o imediatismo importam? A prática do direito se distancia cada vez mais da complexidade das bases teóricas e filosóficas, e há um evidente vínculo entre o atual estado da arte da formação dos juristas com o ensino jurídico. O tema é objeto do livro que ainda será lançado pelo professor Lenio Streck, com o título “O ensino jurídico (e)m crise“, servindo este escrito de convite para a leitura na íntegra da obra.

Lecionar em nível de graduação em direito é (como não poderia deixar de ser) um desafio. Os acadêmicos precisam compreender o fenômeno jurídico como um todo, sendo imprescindível tratar de temas sensíveis e complexos como teoria do direito e hermenêutica. Assim, tratar destes temas passa pelo aprofundamento e o questionamento das próprias bases que sustentam, por exemplo, a legislação, que deve ser interpretada de forma crítica e reflexiva, pois sem sofisticar os argumentos, a formação jurídica se torna meramente técnica e instrumental, incapaz de lidar com as complexidades do direito na prática.

Nos tempos em que a inteligência artificial é vista como um oráculo (faço referência a outro texto meu aqui nesta ConJur (“Encontramos um oráculo, é o fim de toda angústia“), o desafio se agrava. É certo que a sociedade caminha a passos largos no sentido de democratizar o acesso à inteligência artificial generativa, então não nos cabe mais rejeitar o avanço da tecnologia e pregar um apego às ferramentas primitivas.

Assim como o professor Lenio Streck, não sou contra a tecnologia, mas não se pode perder de vista a classificação da inteligência artificial como ferramenta, que nos serve para fazer algo, não que nos entrega as respostas prontas e prejudica a nossa capacidade de ser humano (remeto o leitor, novamente, ao texto “Encontramos um oráculo, é o fim de toda angústia”).

Comentando aqui a experiência em sala de aula, posso relatar como pode ser frustrante (e confuso) avaliar os alunos por meio do desenvolvimento de um texto. Das duas uma: ou os acadêmicos se utilizaram da inteligência artificial para desenvolver textos sem fazer um filtro das referências que embasaram os escritos (eis a vigarice da inteligência artificial denunciada em O ChatGPT, a classe dos inúteis e o cão que empurrava crianças no rio!”); ou os alunos em fases iniciais do curso de graduação são profundos conhecedores da teoria habermasiana e são capazes de explicar em detalhes categorias sequer trabalhadas em sala, como atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários, no que diz respeito à filosofia da linguagem. Meu palpite é de que o primeiro cenário é mais provável.

Reitero aqui: não sou contra o uso da ferramenta, sou contra o uso acrítico da inteligência artificial. Não podemos delegar nossa condição de ser humano ao algoritmo. De fato, isso é filosoficamente incoerente, como exposto no texto “Encontramos um oráculo, é o fim de toda angústia”. De todo modo, a humanidade parece não parar de tentar fugir da “angústia do estranhamento” por meio de respostas prontas, que antecipam sentidos, num retorno às cartografias da pré-modernidade [1].

Este é mais um dos desafios a serem superados pelo ensino (não só) jurídico: o perfil do acadêmico. Antes de fazermos com que os alunos compreendam a matéria em si, deve-se brigar pela sua atenção, sempre com dinâmicas, respostas rápidas e pré-moldadas que respondam aos problemas práticos dos alunos. Aparentemente, cabe agora ao professor da graduação elaborar um mapa mental que explique a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer e como isso se aplica na elaboração de minutas de sentenças por estagiários.

A constante nos corredores da graduação é escutar reclamações. Os alunos reclamam, dentre outras questões, do perfil dos professores e (pasme, excelência), da falta de conteúdo passado pelos seus mestres. Já a principal queixa dos professores é a falta de interesse e atenção dos alunos, que os leva, aparentemente, a entregar algo aquém das suas habilidades e densidade teórica.

Deste caldo, espera-se cada vez menos dos professores, que têm uma visão (talvez) distorcida das reais capacidades dos alunos. Como resultado, temos um ensino jurídico cada vez mais mecânico e raso, mero reprodutor da dogmática e incapaz de lidar com as complexidades do direito. A referência é sempre responder a questões de concurso e à prova da OAB, não a profunda compreensão do fenômeno jurídico, em uma abordagem crítica e reflexiva.

Ao mesmo tempo, ainda que em fases iniciais do curso, é visível o engajamento dos discentes em discutir questões filosóficas. Falo isso para exaltar o interesse daqueles que iniciam os estudos jurídicos. Mesmo ansiosos para compreender as categorias próprias das leis e da ciência do direito, o fato é que o ensino médio e a vida os aproximou (bem ou mal) mais da filosofia do que do direito. Assim, tenho boas experiências ao tratar de complexidades da teoria do direito e da hermenêutica em sala de aula (temas como a existência da verdade e objetividade no direito), pois os alunos demonstram ao menos disposição para questionar e debater.

O que quero dizer é: existe um terreno fértil para o desenvolvimento de um pensamento jurídico mais robusto e fundamentado. Tudo indica que há, sim, espaço para extrapolar os elementos técnicos do direito e a exploração rasa da dogmática jurídica em sede da graduação em direito, abrangendo, inclusive, discussões acerca das suas bases epistemológicas do direito, as diferentes correntes de pensamento jurídico e as implicações práticas dessas teorias. Quem sabe uma postura menos negativa por parte dos professores permita o desenvolvimento destas potencialidades, sujeitando os acadêmicos a desafios maiores do que os atualmente propostos.

Realidade do direito

Diante desta necessidade de repensar o ensino jurídico e suas prioridades, é fundamental o aporte que o professor Lenio Streck faz à discussão com o seu novo “O ensino jurídico (e)m crise”. Afinal, a atual realidade do direito já é produto de um ensino jurídico inapropriado e, então, cabe a nós reavaliarmos estes elementos para garantir o futuro do direito e da democracia.

O ponto central e a grande virtude da crítica do professor ao ensino jurídico está em identificar como este caldo de mediocridade se retroalimenta e resulta em um círculo vicioso reprodutor do realismo jurídico à brasileira. Coisa que Streck denuncia há décadas é que falta à doutrina efetivamente doutrinar, de modo que assistimos a uma jurisprudencialização do direito. O direito deixou de ser direito enquanto produto de uma teoria atenta aos desdobramentos da filosofia e à condição hermenêutica, pois se transfigurou nas proposições de autoridades sobre o direito. Em termos claros, o direito passou a ser aquilo que os tribunais dizem que é, constituindo uma dogmática acrítica que se basta em reproduzir seus conceitos.

Retornar às cartografias da pré-modernidade, como apontado acima, passa também por não refletir nem questionar aquilo que nos é dado pela dogmática. O ensino jurídico tem se limitado a sistematizar esta dogmática e é assim que se constitui o senso comum teórico dos juristas, lembrando sempre Warat [2], “local” ainda habitado por expressões como “livre convencimento”, “verdade real”, entre outros. É também por aí que caminha a atual relevância superior de parecer ser do que ser, do qual tratou o colega Óliver nos textos referenciados acima.

É assim que se anula o papel negativo da linguagem e a capacidade crítica de ser humano. Ora, a experiência é sempre filtrada pela linguagem, que abre o ser humano para o mundo e não labora somente no sentido de construir uma ontologia. A partir da dialética da pergunta e da resposta em Gadamer, não ocorre uma “formação, sem rupturas, de generalidades típicas. Essa formação ocorre, antes, pelo fato de que as generalizações falsas são constantemente refutadas pela experiência, e coisas tidas por típicas hão de ser destipificadas“. Ainda nas palavras de Gadamer: “A negatividade da experiência possui, por conseguinte, um particular sentido produtivo[3].

Enfim, conforme mencionado, a crise se retroalimenta, de modo que a crise no ensino jurídico representa a crise no próprio direito. Tratar o direito como mera técnica é o que contribui neste sentido, com a simples reprodução da dogmática, sem espaço para a crítica, culminando no realismo jurídico à brasileira citado anteriormente. A dogmática tem conquistado uma autonomia que Streck chama de perigosa, justamente porque atrofia o direito e o próprio ensino jurídico.

A fim de ilustrar o problema e evidenciar como os professores lidam com os alunos da forma simplista delineada neste texto, faço aqui um relato. Não faz muito tempo que comentei ter conversado (ainda que de forma superficial) com os alunos das fases iniciais da graduação sobre as ideias do professor Lenio Streck e a sua Crítica Hermenêutica do Direito. Outros colegas professores torceram o nariz e, mesmo não tendo condições de reproduzir ipsis litteris o que me foi dito (não por conta do uso de palavras de baixo calão, mas por não possuir uma memória boa), eu me arrisco a parafrasear: “O Streck é muito bom e importante para falar de hermenêutica, mas não conversa com a graduação“.

O que resta, então, para a graduação e para o futuro do direito, se não é indicado falar sobre o que é bom? Eu aposto nos alunos, sempre. Creio que a formação jurídica tenha de se reinventar para que seja um trabalho cooperativo, sem afastar alunos dos professores apostando nas competências uns dos outros.

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[1] Conferir o verbete próprio no STRECK, Lenio Luiz. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito – São Paulo: Editora Dialética, 2023.

[2] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito I. Porto Alegre: Fabris, 1994.

[3] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Traços Fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meuer, São Paulo: Vozes, 1999. p. 521-522.

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