Ambiente Jurídico

As recentes catástrofes urbanas e o Direito dos Desastres

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22 de junho de 2024, 8h00

Os recentes acontecimentos no Brasil e no mundo têm colocado em evidência a dimensão dos movimentos naturais e seu reflexo na vida do planeta, em especial na espécie humana e agravada pela maneira insensata com que a civilização vem se desenvolvendo. Tal dimensão e frequência deu origem ao hoje chamado Direito dos Desastres e à análise científica, técnica, administrativa e jurídica dos desastres naturais, suas causas e seus reflexos diversos [1].

O assunto é regulado pela Lei Federal nº 12.608, de 10/4/2012 [2], que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) e prevê o dever da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios de adotarem medidas de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação voltadas à proteção e defesa civil, com a colaboração de entidades públicas e privadas e da sociedade civil em geral; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sinpdec), composto por um órgão central, um órgão consultivo [3], órgãos regionais, estaduais e municipais de proteção e defesa civil, órgãos setoriais e órgãos de apoio, comunitários e voluntários de atuação significativa na área; e autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres. A lei dispõe sobre o planejamento geral para catástrofes, o planejamento setorizado e a definição de competências para o gerenciamento.

Em linhas gerais, compete à União a elaboração do Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, a coordenação geral do sistema e assistência aos demais entes; aos estados o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, de forma articulada com a União e os municípios; e aos municípios – entes responsáveis pela disciplina do uso e ocupação do solo – a implementação de ações de proteção e defesa civil, a identificação e mapeamento de áreas de risco de desastres, sua fiscalização e a realização de intervenção preventiva e evacuação da população das áreas de risco.

A Lei Federal nº 14.750, de 14/12/2023 [4], atribuiu aos empreendedores públicos e privados o dever de análise prévia de risco, elaboração e implantação de plano de contingência em caso de risco de acidente ou desastre, monitoramento, emissão de alerta para evacuação à população potencialmente atingida, prover residência provisória, atendimento especial e reinclusão social dos atingidos, recuperação da área degradada, eventual indenização e assistência física e mental aos atingidos por desastres [5].

O Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil [6] foi elaborado e traz detalhes e mapas do país, das regiões, dos estados e dos municípios; traz o cálculo do risco conforme o Índice de Capacidade Municipal, os cenários de mudança do clima e o Índice de Risco Qualitativo, fornecendo uma ferramenta valiosa para a administração pública e privada. A Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec), vinculada ao Sinpdec, organiza a atuação dos três níveis de governo; os municípios, diretamente atingidos pelos desastres, elaboram o seu Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil com base na Lei Federal nº 12.608/2012, estando alguns desses planos disponíveis no site do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional [7].

Terminologia

No Brasil, os desastres naturais e tecnológicos (provocados) são divididos em grupos e subgrupos a partir da Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade) elaborada pelo Gerenciamento de Desastres do Centro Nacional de Gerenciamento de Risco e Desastres (Cenad) [8]. Para os naturais, são considerados cinco grupos: geológicos, hidrológicos, meteorológicos, climatológicos e biológicos. Já os tecnológicos (ou provocados) são separados em ocorrências relacionadas a substâncias radioativas, produtos perigosos, incêndios urbanos, obras civis e transporte de passageiros e de cargas não perigosas. Os desastres que geram maior impacto no Brasil estão relacionados ao excesso ou à falta de chuvas.

Spacca
Ricardo Cintra Torres de Carvalho - desembargador TJ

Conforme indicado no trabalho elaborado pelo Cadip (página 50 e seguintes), no grupo dos desastres naturais geológicos estão os terremotos (subdivididos em tremor de terra: vibrações do terreno que provocam oscilações verticais e horizontais na superfície da Terra (ondas sísmicas), e tsunami: série de ondas geradas pelo deslocamento de um grande volume de água causado geralmente por terremotos, erupções vulcânicas ou movimentos de massa), as emanações vulcânicas, os movimentos de massa (subdivididos em quedas, tombamentos e rolamentos; deslizamentos; corridas de massa e subsidências e colapsos [9]) e as erosões.

No grupo dos desastres naturais hidrológicos estão as inundações, as enxurradas e os alagamentos. No grupo dos desastres naturais meteorológicos, estão os sistemas de grande escala/escala regional (subdivididos em ciclones e frentes frias/zonas de convergência), as tempestades (subdivididas em tornados [10], tempestade de raios, granizo, chuvas intensas e vendavais) e as temperaturas extremas, por ondas prolongadas de calor e frio.

No grupo dos desastres naturais climatológicos está o período de seca, que pode ser dividido em estiagem, seca, incêndio florestal e baixa umidade do ar (níveis abaixo de 20%). No grupo dos desastres naturais biológicos estão as epidemias (doenças infecciosas virais, bacterianas, parasíticas e fúngicas) e as infestações/pragas (infestações de animais, de algas e outras infestações).

Os desastres tecnológicos são aqueles relacionados a substâncias radioativas, que incluem desastres siderais (quedas de satélites que possam liberar material radioativo), desastres com substâncias e equipamentos utilizados em pesquisas, indústrias e usinas nucleares, relacionados com riscos de intensa poluição ambiental provocada por resíduos radioativos e com outras fontes de liberação de radionuclídeos para o meio ambiente, com escapamento acidental ou não acidental de radiação originária de fontes radioativas diversas e que excede os níveis de segurança estabelecidos em norma da CNEN; a produtos perigosos (desastres em fábricas e distritos industriais com liberação de produtos químicos por explosão ou incêndio, contaminação da água por liberação ou derramamento de produtos químicos no sistema de águas ou em ambiente lacustre, fluvial, marinho e aquífero. São classificados ainda os desastres relacionados a conflitos bélicos, ao transporte de produtos perigosos por água, ar e terra.

O Plano Nacional elaborado pela União e os Planos de Contingência elaborados pelas prefeituras, somando aos diversos estudos promovidos pelas universidades e entidades públicas e privadas denotam que a administração nos três níveis tem ciência e consciência das áreas de risco baixo, médio e alto e que tais riscos podem ser mitigados, minorados ou evitados em ações de prevenção. A cobertura jornalística repetidamente menciona tais estudos e as medidas a serem adotadas [11].

Direito dos Desastres

Como anotado no estudo mencionado, de forma irremediável a atividade humana está ligada às causas desses acontecimentos, seja por ações individuais, seja por atividades industriais, comerciais e de exploração de recursos naturais. Essa tendência à maior ocorrência de desastres tem estimulado o desenvolvimento de uma nova área jurídica, o Direito dos Desastres, que objetiva, em síntese, instrumentalizar a sociedade para protegê-la diante de eventos catastróficos naturais ou causados pela ação humana, coordenando ações em numa cadeia de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação.

De natureza eminentemente interdisciplinar, o Direito dos Desastres transcende o Direito Ambiental, englobando outras searas do Direito, tais como Direito Urbanístico, Administrativo, Civil e Penal. Neste cenário, do ponto de vista do Direito Público, interessam as responsabilidades dos entes estatais diante de tais eventos, tanto as relacionadas à prevenção e preparação, quanto as relacionadas aos danos, possibilidades e competências para restaurá-los, assim como a recomposição das infraestruturas dos serviços públicos afetados e outras questões reflexamente envolvidas, abrangendo aspectos civis, securitários, previdenciários, econômicos e tributários. São os chamados riscos complexos, cada vez mais presente na atual sociedade de riscos [12].

A dimensão do artigo não permite uma análise extensa e aprofundada das consequências legais dos desastres e da responsabilidade de seus diversos participantes ou do entendimento dos tribunais. Menciono alguns pontos a serem enfocados pelos estudiosos, entre outros: (a) a responsabilidade da administração pela adoção das medidas de prevenção, algumas onerosas em tempo e dinheiro, e sua eventual exigência pelo Judiciário; (b) o enquadramento das catástrofes ou desastres extremos como ocorrido recentemente no Rio Grande do Sul ou em 19/2/2023 no litoral norte de São Paulo [13] na responsabilidade subjetiva por omissão da administração ou na irresponsabilidade decorrente do evento de consequência incontrolável pelas medidas adotadas ou passíveis de adoção; (c) afastada a responsabilidade civil ou administrativa, se a assistência social devida aos atingidos, e em que extensão, pode ser exigida em juízo; (d) a responsabilidade objetiva das empresas de seguros, conforme os termos de suas apólices e a descrição dos danos; (e) a eventual corresponsabilidade do particular, em caso de construção irregular, insegura ou em área de risco notório; (f) a caracterização do evento como justificativa do descumprimento dos contratos públicos e privados, até a minoração ou eliminação do dano.

 


[1] O presente artigo se baseia na publicação de 5-6-2024 do Centro de Apoio ao Direito Público (Cadip) do Tribunal de Justiça de São Paulo, produzido pelos des. Vicente de Abreu Amadei e Maria Laura Moura Tavares e sua equipe, disponível em Catástrofes urbanas e o Direito dos Desastres.

[2] L 12.608 (planalto.gov.br)

[3]  Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil (Conpdec), composto por órgãos e entidades públicas e privadas com atuação significativa na proteção e defesa civil.

[4] L14.750 (planalto.gov.br)

[5] “Distribuidora de energia deverá ter plano para evento climático: medida é parte das novas regras para renovação das concessões”, jornal O Globo, 21-6-2024, pág. 19.

[6] https://drive.google.com/file/d/1hjjOmKJ9LgVkBLh68mgOfGC59EiFRk89/view?usp=sharing

[7] https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/protecao-e-defesa-civil/boas-praticas/planos-de-contingencia-plancon

[8] https://www.gov.br/mdr/pt-br/ultimas-noticias/entenda-a-diferenca-entre-os-tipos-de-desastres-naturais-e-tecnologicos-registrados-no-brasil

[9] Subsidências e colapsos: afundamento rápido ou gradual do terreno devido ao colapso de cavidades, redução da porosidade do solo ou deformação de material argiloso.

[10] Tornados: coluna de ar que gira de forma violenta quando entra em contato com a terra e a base de uma nuvem de grande desenvolvimento vertical. A coluna de ar pode percorrer vários quilômetros e deixa rastro de destruição pelo caminho percorrido.

[11] “Ilhas de calor expõem a fragilidade de áreas com menos verde: regiões com menor renda são mas mais vulneráveis ao clima extremo, comprova plataforma desenvolvida por USP, UFBA, UFSCar e Universidade Lusófona”, jornal Estado de São Paulo, 17-6-2024, pág. A-12; “Em 23,9% da área da capital paulista, ideal seria evitar novas construções: Carta Geográfica de São Paulo de 2024 indica áreas mais suscetíveis a fenômenos como inundação e deslizamento; maior parte dos terrenos sem vulnerabilidade está ocupada”, jornal Estado de São Paulo, 20-6-2024, pág. A-12. A matéria traz um mapa indicando vinte unidades geotécnicas suscetíveis a fenômenos naturais.

[12] Sociedade de risco: “uma forma sistemática de lidar com perigos e inseguranças induzidas e introduzidas pela própria modernização” Ulrich Beck (3 September 1992: 21). Risk Society: Towards a New Modernity. SAGE Publications. pp. 260

[13] https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2023/02/26/temporal-devastador-no-litoral-norte-de-sp-completa-uma-semana-veja-resumo-da-tragedia.ghtml. As chuvas que caíram entre o sábado (18 e o domingo (19) no litoral paulista foram as maiores registradas em 24 horas na história do país, segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).

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