Repensando as Drogas

Um plano para a área de segurança pública

 

21 de junho de 2024, 12h20

Notícias recentes dão ciência de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva convidou oito ministros que foram governadores para discutirem e formularem um plano para a área de segurança pública.

“Todos os Negros”, foto de 1982, Prêmio Esso em 1983

Segundo a notícia, o presidente da República afirmou: “Eu acho que a gente sempre tem que se atualizar em tudo, por isso a importância do foco no combate ao crime organizado e ao tráfico de armas e numa ação articulada entre as forças policiais estaduais e federais”. (leia aqui)

É difícil achar um tema em que o governo esteja tão perdido quanto este. Esse suposto foco no combate ao crime organizado é a tônica de todas as políticas criminais dos últimos 50 anos, com os resultados que vemos todos os dias. Deveria valer a máxima de que “insanidade é agir da mesma maneira e esperar resultados diferentes”.

Tendo em vista o cenário desolador de ideias e sugestões nesse campo, o grupo Repensando a Guerra às Drogas apresenta algumas sugestões para o governo federal, e para quem mais quiser ler, na área de segurança pública.

O debate nesse campo está há tanto tempo baseado em premissas erradas e destoa completamente do que determina a Constituição da República que é necessário tecer certos comentários antes de iniciar as propostas.

Desde a redemocratização não houve mudança de rumos relevante na área de segurança pública à concepção anterior.

Na época da ditadura cívico-militar se adotou um modelo de segurança pública baseado nas premissas de segurança nacional, que vê uma parcela da população como um inimigo social que precisa ser combatido. Esse inimigo era e continua sendo o negro, jovem, periférico e as ações policiais e estatais são todas voltadas contra esse público-alvo.

É a mentalidade de segurança nacional que cria a imagem do inimigo social traficante negro e perigoso e foca a atuação policial na apreensão de drogas como forma de reduzir outros crimes. A premissa de que drogas geram crimes e que combatida a circulação de drogas há redução de violência é refutada pela ciência.

Se admitia naquela época abertamente a tortura e eram incentivados os grupos de extermínio. É difícil dizer que isso mudou, ante as críticas sofridas pelo aparato de justiça sobre a conivência com a letalidade policial, vide o relatório de 2021 da Cidh (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Talvez a única mudança relevante desde a redemocratização seja o aumento exponencial da população carcerária, pela adoção de um modelo de estado neoliberal e penitenciário, à la Ronald Reagan. O Brasil saltou de 90 mil presos em 1990 para 800 mil atualmente. Chega a ser estranho sair de um regime ditatorial e o democrático que o segue apresentar tamanho aumento na população carcerária. No mais, continuamos com o mesmo Código Penal e de Processo Penal, com sua mentalidade, em essência, da década de 1940.

Enquanto isso os índices de criminalidade violenta continuam praticamente inalterados.

O primeiro passo, portanto, é reconhecer que o modelo atual é completamente equivocado. Continua o programa de segurança da época do regime militar. Passou o momento de adequá-lo às premissas da Constituição da República. Antes de partir para ações é necessário corrigir o que está errado.

Partidos de centro-esquerda e de centro-direita não deveriam defender um modelo de segurança pública que não foi criado por seu espectro político e se manter reféns de uma narrativa que não condiz com sua visão de sociedade. É muito mais adequado que o critiquem e, apesar de ser necessária uma certa coragem para sair do censo comum, tem-se certeza que um plano sincero seria bem aceito por uma boa parcela da população.

É necessário, portanto, diagnosticar corretamente o problema da segurança:

– Não existe uma crise de segurança pública no Brasil. A violência é fruto de um projeto de segurança. É fruto do projeto de sociedade excludente de sociedade e de uma política criminal da época da ditadura militar.

– A atuação da polícia não é voltada para a redução da violência e nem para o atendimento da população. A atuação da polícia é voltada para vigiar a classe pobre do país e evitar revoltas populares. Por isso não se reduz a violência. Isso não é culpa das forças policiais, que são subalternas ao Executivo e seguem ordens.

Dito e compreendido isso, é necessário alterar a forma das forças policiais atuarem, mudança de cultura institucional. É necessário também propor algumas alterações na legislação penal e processual penal, leis completamente ultrapassadas e que seguem valores da década de 1940. Esses dois tópicos que serão tratados nessa sugestão.

Mudança de cultura institucional nas forças policiais.

Nesse campo, sugere:

1 – Alterar os critérios de qualidade de trabalho das forças policiais. É equivocado medir o trabalho policial com base em números de prisão, apreensão de armas de fogo ou práticas invasivas a direitos fundamentais, como buscas pessoais. Essas medidas devem ser vistas como excepcionais, não como a razão de ser das forças policiais. Prender uma pessoa é algo negativo, deve ser evitado e resguardado para casos mais graves.

O trabalho da Polícia Militar deve ser medido pela qualidade de atendimento à população. Quanto tempo demora para atender determinadas ocorrências, como roubo, certos casos mais graves de furto, casos de agressão da Lei Maria da Penha; percentual da tropa utilizada em patrulhamento em comparação ao utilizado para serviços administrativos; horas de patrulhamento ostensivo. Esses são exemplos de bons critérios para medir a qualidade do trabalho policial.

Já o trabalho da Polícia Civil deve ser medido pelo percentual de apuração de alguns crimes mais graves, como estupro e homicídio. É difícil, todavia, realizar muitas cobranças de uma força policial que, via de regra, é bastante sucateada e suscetível a ingerências políticas. Caso se deseje que realize um trabalho de qualidade como o da Polícia Federal devem ser primeiro garantidas condições estruturais análogas.

Essa ideia não é nenhuma novidade e é defendida por Nils Christie, um famoso criminologista norueguês.

2 – É necessário criar normas para cumprimento de decisões judiciais sobre direitos fundamentais, de modo a evitar nulidades de operações policiais, bem como abusos, que são grande causa da perda de legitimidade das forças policiais perante a população pobre do país. Atualmente há um amplo quadro de desrespeito à inviolabilidade domiciliar e buscas pessoais realizadas aleatoriamente sem respeito ao direito à intimidade. Isso mina a legitimidade das forças policiais perante essa parcela da população, que tem seus direitos desrespeitados.

3 – É de curial importância estimular e exigir o aparelhamento de todos os policiais com câmeras corporais, com medidas para evitar fraudes e interrupções de gravações em momentos delicados. É civilizatório uma força policial sujeita a mecanismos de controle e que disponha de meios modernos de produzir provas muito mais seguras para o Processo Penal.

4 – É necessário adotar posturas que retirem pressão do trabalho policial, especialmente do que está na linha de frente, refutado o modelo atual que exige de policiais uma atuação, algo entre o heróico, o ilegal e o suicida. As forças policiais atualmente trabalham em condições péssimas, muitas vezes são incentivadas a entrar em confrontos e praticar atos violentos completamente desnecessários, com riscos à própria vida. Isso vem causa diversas mazelas psiquiátricas em policiais, que estão entre as classes de trabalhadores com maiores índices de suicídio. É preciso reconhecer a gravidade desse problema e adotar medidas adequadas, não apenas retóricas, para atenuá-lo.

É necessário atrelar essa mudança a repasses de verbas federais.

Alterações legislativas ou realizáveis por decretos

A parte geral do Código Penal é de 1940 e em grande medida reflete os valores patrimonialistas e retrógrados da sociedade daquela época. Há crimes punidos com pena muito leve e outros em que há um tratamento incondizente com a disponibilidade do direito tutelado. É de se considerar, ademais, que uma pena mínima abaixo de cinco anos resultará em uma condenação em regime aberto ou substituição por restritiva de direitos, razão pela qual crimes graves devem ser punidos, ao menos, com pena mínima de cinco anos de reclusão.

É necessário punir atos violentos e lesivos à integridade física ao menos com regime semiaberto. Afinal, se há alguma área em que o Direito Penal se justifica é para coibir a violência. Isso serve igualmente, para os homicídios culposos em trânsito, em determinadas circunstâncias, em que a pena é tão branda que se força o dolo para a punição ser minimamente condizente com a gravidade do ocorrido.

Não se acredita no caráter ressocializador da pena e nem que um aumento de pena seja suficiente para reduzir determinados crimes. Não obstante, é inconcebível uma sociedade que criminaliza apenas condutas comuns à classe pobre e mantém a classe média imune à prisão. No que a classe média pratica de violência deve também ser punida.

Assim, deveria ser proposto o endurecimento da legislação penal, com imposição de pena mínima de cinco anos para:

– Lesão corporal dolosa “grave” e maior ainda para a “gravíssima”, sendo o caso de Maria da Penha ou não;

– Roubo e outros crimes contra o patrimônio com emprego de violência real e que a vítima seja lesionada.

– Homicídios culposos em trânsito caso o condutor esteja embriagado, sem habilitação ou em algumas outras circunstâncias correlatas.

Em relação ao furto e outros crimes patrimoniais sem violência, é de se exigir representação formal, tendo em vista a disponibilidade do patrimônio. No caso de sociedades empresárias de grande porte vítimas, a ação penal deveria ser privada. Na Alemanha é assim.

Não obstante, há atos graves que são punidos com pena baixa. O ingresso em residências para a prática de furto deve ser mais duramente apenado, pelos transtornos que causa e ante a possibilidade de evoluir para um caso de latrocínio.

Além disso, o peculato e outros crimes praticados contra o erário deveriam ser modulados conforme a quantidade de recursos desviada ou subtraída. Grandes subtrações, maiores que mil salários mínimos, por exemplo, deveria ser apenado com pena deveras elevada, talvez uma pena mínima de doze anos.

Além de adequar a legislação penal a uma ênfase na vida humana e na integridade física, seria interessante do ponto de vista sociológico acompanhar os debates destas propostas no Congresso.

O Código Penal e de Processo Penal merecem uma revisão muito mais ampla para adequá-los à Constituição como um todo, não com remendos. Ao menos essas alterações, que tratam de situações mais comuns poderiam ser atacados com prioridade.

As consequências de atos ilícitos não são tratadas apenas pelo Direito Penal. É necessário propor critérios para indenizações de Direito Civil para alterar o quadro atual em que a vida e direitos de pessoas de classes mais elevadas são valoradas em patamares muito superiores ao de pessoas de baixa renda.

Deveriam ser propostos critérios de indenização fixos por danos morais em alguns casos como morte, lesões graves, independentemente da classe social de quem é lesionado e de quem lesiona. Parece óbvio isso decorrer do princípio da igualdade, previsto no artigo 5o, caput, da CRFB. Seria uma medida muito importante para deixar de tratar pessoas pobres como descartáveis, com as ridículas indenizações atuais deferidas a pessoas dessa classe social.

A legislação de drogas é outro ponto que merece profunda atenção. É uma política equivocada, que fortalece o crime organizado, causa encarceramento em massa, transformou áreas pobres em cenários de guerra e não reduz o uso abusivo de drogas. A guerra às drogas é uma guerra perdida e quanto mais durar mais danos irá causar.

A proibição das drogas gestou o crime organizado é o grande fator que contribui para o seu fortalecimento. Não existiu Al Capone e a máfia nos EUA antes da Lei Seca e não existiu Comando Vermelho, PCC e tantos outros grupos criminosos antes da Lei de Drogas. É a proibição do comércio de substâncias que são desejadas e apresentam uma demanda inelástica que joga no colo do crime um negócio multibilionário. Enquanto persistir a política de guerra às drogas o crime organizado apenas irá se fortalecer e exercer cada vez mais sua influência negativa.

É preciso também deixar claro que quem é contrário à política atual, de guerra às drogas, não é favorável às drogas nem ao seu uso abusivo.

A política eficiente para reduzir o uso abusivo de drogas é a de regulamentação restritiva, como a aplicada para o tabaco. O tabaco é a única droga que o Brasil conseguiu reduzir o uso, apesar de ser a droga que mais causa dependência, muito mais que as ilícitas.

Tanto proibir drogas, como ocorre com cocaína, maconha e outras ilícitas, como uma legalização muito frouxa, como ocorre com o álcool são contrárias à tutela da saúde pública. E, nesse tocante, é preciso esclarecer que a droga mais deletéria, de modo geral, é o álcool, mais problemática que todas as drogas proibidas.

O correto para a saúde pública seria propor a regulamentação restritiva das drogas ilícitas e adotar a mesma postura em relação ao álcool. Isso observado que as drogas são diferentes entre si e que a sua regulamentação deve guardar relação com suas propriedades particulares.

A possibilidade disso ser aprovada é muito diminuta. Além do tabu que envolve a discussão sobre drogas ilícitas, certamente haveria uma pressão enorme para não restringir propaganda e criar restrições para o consumo de bebidas alcoólicas, como ocorre em diversos outros países.

De qualquer forma, esse é um problema central para a sociedade brasileira, central para a narrativa que defende a barbárie e o autoritarismo como solução aos problemas nacionais, gera muitos danos colaterais e é muito arraigado na concepção da população pela repetição incessante de informações equivocadas.

Para deixar de ser refém dessa narrativa é preciso a coragem de lançar luz e argumentos racionais nesse campo e defender uma postura correta. Mesmo derrotado, seria louvável e certamente renderia o ótimo fruto de quebrar a hegemonia da  narrativa atual.

De medidas efetivas para atenuar os problemas causados pela Lei de Drogas, recorda-se que essa legislação estabelece diversas normas penais em branco e defere uma grande margem de ação ao Executivo. Assim, isso poderia ser utilizado para fixar quantidades mínimas de porte de drogas nas portarias da Anvisa, conforme a liberdade dada pelo artigo 1o, parágrafo único, da Lei 11.343 de 2006 e regulado o uso medicinal da cannabis e outras drogas.

Além de racionalizar a utilização dos recursos públicos e das forças policiais, permitindo-se que foquem em fatos efetivamente graves, isso atenuaria sobremaneira o problema de superlotação carcerária, que se encontra em estado inconstitucional de coisas.

Cerca de um terço dos 800 mil condenados lá está por tráfico de drogas, quase 300 mil pessoas, portanto. Essas condenações costumam ser pelo porte de quantidades pequenas de drogas. Uma fixação de critérios mínimos por Decreto seria medida capaz de tirar das cadeias centenas de milhares de pessoas que não praticaram atos graves e não deveriam estar presas.

Há obviamente muitas outras medidas que poderiam ser propostas e elaboradas e seria necessário detalhar esse plano. Acredita-se que essas medidas expostas como linha geral teriam o condão de alterar um pouco o funcionamento das instituições penais. Trariam alguma legitimidade a esse aparato e poderia reduzir, um pouco, a violência e gerar algum alento na população, que tem toda a razão de se sentir indignada por tudo a que é submetida pela atual política de segurança pública.

É preciso deixar claro, para finalizar, que melhoras realmente profundas na segurança pública e índices de violência aceitáveis e condizentes com os de países desenvolvidos que adotam políticas criminais corretas (caso dos países nórdicos e europeus em geral, não dos Estados Unidos que são uma lástima nessa questão) só serão atingidos quando a desigualdade social for reduzida e os direitos sociais, como educação, lazer, habitação e emprego, e necessidades básicas de todas as pessoas sejam atendidos. Em grande parte, os problemas de violência são muito mais sociais do que policiais.

Enfim, aguardamos ansiosamente os termos do 114o pacote para combater o crime organizado desde a redemocratização.

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