Opinião

'PL dos Estupradores': restrição dos direitos das mulheres e nova era medieval

Autor

  • Celeste Leite dos Santos

    é promotora de Justiça idealizadora do Memorial Avarc em memória às Vítimas da Covid-19 coordenadora do grupo de trabalho do projeto de lei do Estatuto da Vítima e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.

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21 de junho de 2024, 7h01

O debate nacional em torno de temas de família ganhou holofotes com o Projeto de Lei (PL) 1.904, que também pode ser reconhecido como o “PL dos Estupradores”. O texto altera o Código Penal e estabelece de 6 a 20 anos de prisão para mulheres que, vítimas de estupro, fizeram aborto após 22 semanas de gestação — pena, aliás, que é o dobro da estabelecida para o próprio criminoso, para o estuprador — de seis a dez anos de reclusão. Para compreender como chegamos a esse absurdo, é preciso retomar a um passado longínquo.

Paulo Pinto/Agência Brasil

No início da Idade Média, entre os séculos 10 e 11, as mulheres, antes submetidas ao jugo masculino, passaram a se emancipar. Com a apropriação do espaço público por parte delas, os homens, então, idealizaram o que, hoje, reconhecemos como violência contra a mulher.

Da Idade Média para cá, estereótipos de gênero foram criados na tentativa de desqualificar e inviabilizar a mulher em sua autonomia — de sorte que aquelas que estivessem sozinhas nas ruas não eram, por exemplo, consideradas “honestas”, “de família”, e, portanto, podiam ter seus corpos apropriados por qualquer homem. Com o avanço do público feminino na sociedade, e com a conquista de espaços e de independência patrimonial e pessoal, cresceu ainda mais a intolerância, e veio a “caça às bruxas”.

Em pleno século 21, desde a Covid-19 e todos os resultados sociais e de saúde pública inerentes à pandemia, venho defendendo que corremos um sério risco de vivenciarmos uma nova Idade Média.

As mulheres, hoje, se sobressaem em eficiência, podendo, finalmente, conciliar a vida pessoal e profissional plena com a seara doméstica e familiar. Passam a almejar e a ocupar postos que antes eram impensáveis — incluindo os construídos pelos homens e para os homens. São o que quiserem, onde quiserem, caso queiram.

No combate ao avanço da autonomia da mulher, o público masculino usa as armas que tem e conhece — a força bruta. Os homens valem-se da ideia de que, pelo controle dos nossos corpos, podem, também, ter domínio de nossas mentes e anseios, mantendo-se, assim, o status quo de hierarquia, de “quem manda”, de “quem pode” e de “quem dita as regras”. Igualdade não é aceitável. Isonomia, parceira, união e respeito passam longe. “Manda quem pode, obedece (e se sujeita) quem tem juízo”, já dizia o ditado. E, pelo visto, perante a lei, o bom senso também se faz de rogado.

Punição de vítimas

Spacca

Eis que entra em pauta no Brasil o “Projeto dos Estupradores”, que pune vítimas mais do que seus próprios algozes, ao passo em que as equipara a homicidas. Mesmo em países que punem práticas abortivas — a fim de disciplinar a prática e combater qualquer tipo de banalização — essa repreensão é desvinculada da perigosa equiparação com o homicídio, sendo inserida no contexto da saúde pública e da ordem social.

Houvesse qualquer preocupação com a vítima de estupro e o produto da violência (vítimas indiretas), não estaríamos discutindo, neste momento, a criminalização de hipóteses de aborto legal no Brasil.

Mas o que esperar de um Congresso que lidera, apressadamente, a aprovação de um projeto de violência institucional contra meninas e mulheres, mas se recusa a conferir urgência ao Estatuto da Vítima, sob o argumento de que não é o caso de se proporcionar proteção a grupos vulneráveis de nossa sociedade? Como deixar para o Poder Judiciário brasileiro analisar, casuisticamente, a especial proteção que deva ser dada a vítimas vulneráveis?

Infelizmente, esse é só o começo de uma era de restrição de direitos das mulheres, em que a crueldade humana se manifesta de sua forma mais explícita, e com direito ao apoio de vozes não só masculinas, mas, também, femininas.

A aprovação do Estatuto da Vítima é mais que urgente em nosso país! Política pública não se faz com demagogia. Nem invertendo os papéis. Mas, sim, com prevenção, planejamento e defesa das vítimas diretas, indiretas e coletivas. Trata-se, afinal, da salvaguarda da sociedade como um todo, e de parte de nossa história.

A punição não deve, jamais, ser descartada em caso comprovado, em questão de exageros e de desvirtuação do objeto. Aborto é assunto sério, afinal, e não menos importante e relevante do que as sequelas deixadas por um estupro — muitos, diga-se de passagem, cometidos dentro do lar da vítima, por pessoa próxima.

Em suma, não podemos permitir que o Brasil seja palco da revitimização de milhares de meninas e de mulheres, vilipendiadas na alma, cujo único pecado, pelo visto, é a própria existência.

Autores

  • é presidente do Instituto Brasileiro de Atenção Integral à Vítima (Pró-Vítima); promotora de Justiça em último grau do Colégio Recursal do Ministério Público de São Paulo; doutora em Direito Civil; mestre em Direito Penal; especialista em Interesses Difusos e Coletivos; e idealizadora do Estatuto da Vítima.

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